Esses dias quase perdi um amigo
devido a um balaço que dei-lhe na cara. Mas calma, leitor, que já me explico,
para que não me julgue mal ou pense que passei a escrever de trás das grades. O
acontecido deu-se no centro da cidade quando, súbito, deparei com Argentino,
amigo a quem não via há alguns meses. Chupava eu uma balinha refrescante no
momento daquele alvissareiro encontro, em que a alegria da surpresa acionou em
mim o ato reflexo de abrir os braços e botar-me a exclamar um caloroso “tudo
bem?”, expressão que meu cérebro rapidamente elegera para abrir nossas
conversações de esquina.
Como todos sabemos, a sílaba
“tu”, parte inicial compositiva da palavra “tudo”, exige, para ser articulada,
que a ponta da língua do sujeito falante arremeta com certa força contra a
parede interna dos dois dentes frontais da arcada superior, para depois
retornar ao meio do céu da boca de forma mais suave a fim de produzir o som da
segunda e última sílaba: “do”. O problema é que a tal balinha, que rodopiava desgovernada
pelos recantos de minha boca, resolveu intrometer-se entre a dita parede dos
dentes e a ponta de minha língua justo no instante em que o “tu” era
pronunciado, vindo a ser expelida com força considerável para fora de minha
boca e a acertar desavergonhadamente uma das bochechas de meu amigo, que assim
levou de mim o já confessado balaço na cara.
Amistoso como é, Argentino
resignou-se a limpar a face com a manga da camisa e, prestativo, já se agachava
para pinçar na calçada a serelepe balinha a fim de devolvê-la aos domínios de
minha boca, o que de pronto agradeci e consegui demovê-lo da ideia não sem
alguma dificuldade, chegando a desconfiar de que poderia haver no gesto dele
uma certa intenção de vingança, mas acho que não. O fato é que rimos e fomos
tomar um café no Bar da Esquina, onde nos pusemos a refletir sobre a verdade de
que as palavras podem mesmo ferir as pessoas como se fossem balaços. Algumas são
capazes de ferir na cara e outras, como cimitarras afiadas, podem dilacerar almas.
“Precisamos estar habilitados a portar palavras, e sempre manuseá-las com
cuidado”, ponderou Argentino. “Toda a razão tu tens, meu amigo”, respondi
cautelosamente, agora sem balinhas na boca.
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