Do topo de um prédio alto, muito
alto, posicionado bem no coração central da cidade, um giro de 360 graus me proporciona
uma visão ampla do avanço ininterrupto das crias da civilização sobre a
hospitalidade ingênua da natureza, primitiva habitante dessa serra. A linha do
horizonte, em seus quatro cantos, já está praticamente toda tocada pelo
concreto das construções e pelo asfalto das rodovias, que levam, trazem e assentam
os protagonistas diários da pujança coletiva que empurra a história para
frente, tirando do meio do caminho as pedras e também as formigas, a relva, as
flores, os ninhos dos pássaros e algumas formas antigas de ser gente.
Cá embaixo, uma demanda incomum
me põe a perambular com olhar diferente pelas vias centrais lotadas de
compromissos alheios, cotovelos apressados e buzinas intolerantes. Em meio ao
burburinho das esquinas que tanto conheço, meu olhar procura hoje não o tempo
certo do semáforo para cruzar a rua junto ao cardume, mas sim os vestígios de
uma existência que insiste em manter-se viva por detrás das placas de
propaganda e do cruzamento apressado dos ônibus carregando atrasos. A partir de
então, cada passada abre um portal para um mundo que permanece alheio à
urbanidade nossa de cada dia.
Nos fundos da casa espremida entre
os dois prédios, o empresário aposentado, chapéu de palha na cabeça, cutuca a
terra com a enxada, organizando sua horta repleta de ervas aromáticas. Na
esquina entre os dois cruzamentos de todos os dias, surge um armazém com cheiro
de história, em cujas prateleiras de madeira desfilam o fumo em corda, as
caixas de palheiros, os coadores de pano para café, os fervedores de leite, as
bacias de louça, os fluidos para isqueiro, as formas de alumínio para pão e
bolo, a creolina, a pedra para limpar chapa de fogão a lenha, as ratoeiras, os serrotes,
os bilboquês e os piões de madeira. Ao lado da sinaleira, na desbotada casa ancestral,
a velha senhora cultiva gatos e mantém a solidão do lado de fora.
São pequenos oásis de
resistência, dentro dos quais biografias pulsam sem pressa. Raros são os olhos que
os enxergam e nem todas as passadas levam a eles. A credencial, meus caros, é
ter olhos de passarinho.
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