Aqueles eram tempos de joelhos e
pés encardidos. As casas tinham pátios com gramados e terra e era comum haver
num canto do quintal um montinho de areia sobrado de alguma reforma, no qual os
gatos enterravam suas necessidades e nós depois brincávamos faceiros
construindo estradinhas para o tráfego dos caminhões de plástico e dos tratores
de madeira. Eu tinha carrinhos de chumbo e passava as tardes lustrando o chão
de meu quarto com os joelhos, a criar cidades com quadras moldadas pela
disposição ordenada de várias revistas, entre as quais surgiam ruas e esquinas
imaginárias.
Quando vinham os amigos,
jogávamos bola fazendo a parede do galpão de goleira ou voávamos de bicicleta
sobre rampas erigidas com tijolos e tábuas. Caíamos muito e esfolávamos joelhos
e cotovelos, que pareciam terem sido criados exatamente para isso. Depois,
nossos adereços consistiam em band-aids e no vermelhidão do Mertiolate passado
nas feridas, processo que ardia muito e era amenizado pelo sopro carinhoso e
alentador de nossas mães, à noite.
Tínhamos de lavar os pés no bidezinho
do banheiro antes de irmos para a cama, e havia hora certa para ir para a cama.
Mas era comum ficarmos ainda muito tempo de olhos abertos na escuridão do
quarto revivendo tintim por tintim as aventuras empreendidas ao longo daquelas intermináveis
tardes de infância. Adormecíamos ao sabor do som distante das conversas dos
adultos, submergindo assim em uma atmosfera de aconchego que vai se esvaindo
com o avançar do tempo e o acúmulo dos aniversários.
Por mais que os escovássemos, os
garrões dificilmente ficavam realmente limpos, pois não era fácil eliminar o
acúmulo dos vestígios daquelas infâncias serelepes vivenciadas entre irmãos,
primos, vizinhos e coleguinhas. Uma fina tampinha de pele mais tarde surgia
sobre os machucados, ao cicatrizar, e os mais corajosos entre nós gostavam de
se exibir arrancando-as lentamente como se não sentissem a dor aguda que
penetrava na espinha dos outros que assistiam impressionados à cena.
Depois, com o tempo, a gente se
transforma em adultos de pés limpos, joelhos lisos e cotovelos de reunião. Já
aqueles que forem dotados de boa memória e gosto pela nostalgia, terão um pouco
mais de sorte.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de março de 2013)
Um comentário:
Minha mãe lavava os pés do meu irmão com escova e às vezes pegava alguma coisa que pudesse ser esfoliante para tentar tirar os mais grosso dos garrões encardidos. :)
Bjs,
Rafaela
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