Tenho medo de ir ao dentista.
Não, errado. A frase correta, que se aplica a meu caso (porque é de meu caso
que estamos falando aqui, a princípio, ou seja, partimos, como toda crônica requer,
do caso pessoal do cronista para que se possa produzir o fenômeno da
universalização do texto, obtendo assim a identificação com as experiências
pessoais de todos os leitores). Fechei parêntesis e não concluí a frase. Isso é
um erro, cometido pelo abuso da prolixidade e pela desnecessária aula sobre a
essência da crônica. Comecemos de novo.
Dizia que tenho medo de ir ao
dentista, mas que a frase assim, generalizada, estava errada ou, melhor,
imprecisa. O correto, em se tratando de meu caso, seria dizer que tenho medo é
de ir à minha dentista, em específico. Ou seja, não temo o ato simples e
prosaico de me dirigir até o consultório de qualquer um desses tão importantes
profissionais e abrir-lhe a boca, a fim de que ele proceda aos procedimentos
(aviso de repetição empobrecedora de texto) necessários para a manutenção de minha
saúde bucal. Não, esse tipo de paúra (“medo”, em dialeto, eis que eu agora uso singelos
termos em dialeto), pois que a abandonei junto com a infância.
Meu temor agora é de outra
natureza, mais brando, mais próximo, já que o negócio aqui precisa ser preciso
(novo aviso de repetição empobrecedora de texto), mais próximo do simples
receio. O que tenho, então, para ser preciso, é receio de ir à minha dentista.
Pronto. Conseguimos, com a ajuda dos pacientes leitores, encontrar a frase
correta para o início deste texto: tenho receio de ir à minha dentista (agora
vamos ao motivo).
Tenho receio porque ela,
compenetrada sempre na sequência do manuseio de seus aparelhos, a enfiá-los e
retirá-los, cada um por sua vez, de forma alternada, dentro de minha boca (a
broca, a pinça, a haste de metal que cutuca, o algodão, o sugador, o ferrinho
nem-ouso-imaginar-para-que-serve, o caninho de enxágue), ela acaba me
descabelando todo e salpicando minhas bochechas e minha testa com respingos de
água e de diversos produtos. Arruma meu sorriso e desalinha o conjunto. Saio da
cadeira e ganho as calçadas parecendo ter acabado de fugir de uma das
trincheiras da Primeira Guerra Mundial.
E como recebo esses olhares
espantados e estranhados no caminho até o carro? Ora, alargando orgulhosamente
o sorriso, agora reluzente e brilhante. Afinal, o resultado de enfrentar os
medos acaba sempre sendo positivo. E, semana que vem, retorno ao consultório
municiado de pente e lenço, porque também não dá pra seguir a vida toda sendo
baúco (outra vez o dialeto... esse não vou traduzir).
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de agosto de 2014)
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