sexta-feira, 1 de março de 2013

Sopros antigos


Aqueles eram tempos de joelhos e pés encardidos. As casas tinham pátios com gramados e terra e era comum haver num canto do quintal um montinho de areia sobrado de alguma reforma, no qual os gatos enterravam suas necessidades e nós depois brincávamos faceiros construindo estradinhas para o tráfego dos caminhões de plástico e dos tratores de madeira. Eu tinha carrinhos de chumbo e passava as tardes lustrando o chão de meu quarto com os joelhos, a criar cidades com quadras moldadas pela disposição ordenada de várias revistas, entre as quais surgiam ruas e esquinas imaginárias.
Quando vinham os amigos, jogávamos bola fazendo a parede do galpão de goleira ou voávamos de bicicleta sobre rampas erigidas com tijolos e tábuas. Caíamos muito e esfolávamos joelhos e cotovelos, que pareciam terem sido criados exatamente para isso. Depois, nossos adereços consistiam em band-aids e no vermelhidão do Mertiolate passado nas feridas, processo que ardia muito e era amenizado pelo sopro carinhoso e alentador de nossas mães, à noite.
Tínhamos de lavar os pés no bidezinho do banheiro antes de irmos para a cama, e havia hora certa para ir para a cama. Mas era comum ficarmos ainda muito tempo de olhos abertos na escuridão do quarto revivendo tintim por tintim as aventuras empreendidas ao longo daquelas intermináveis tardes de infância. Adormecíamos ao sabor do som distante das conversas dos adultos, submergindo assim em uma atmosfera de aconchego que vai se esvaindo com o avançar do tempo e o acúmulo dos aniversários.
Por mais que os escovássemos, os garrões dificilmente ficavam realmente limpos, pois não era fácil eliminar o acúmulo dos vestígios daquelas infâncias serelepes vivenciadas entre irmãos, primos, vizinhos e coleguinhas. Uma fina tampinha de pele mais tarde surgia sobre os machucados, ao cicatrizar, e os mais corajosos entre nós gostavam de se exibir arrancando-as lentamente como se não sentissem a dor aguda que penetrava na espinha dos outros que assistiam impressionados à cena.
Depois, com o tempo, a gente se transforma em adultos de pés limpos, joelhos lisos e cotovelos de reunião. Já aqueles que forem dotados de boa memória e gosto pela nostalgia, terão um pouco mais de sorte.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de março de 2013)

Um comentário:

Rafaela disse...

Minha mãe lavava os pés do meu irmão com escova e às vezes pegava alguma coisa que pudesse ser esfoliante para tentar tirar os mais grosso dos garrões encardidos. :)

Bjs,
Rafaela