Dia desses fui acometido por um “momento Rubem Barrichelo” e fiquei parado, imóvel, vendo tudo passar por mim e pensando “aonde é que isso tudo vai parar”? O que me causou tamanho estranhamento foi uma reportagem que vi num noticioso televisivo sobre algo que até então eu sequer supunha poder existir: os chamados “entorpecentes virtuais”. Fiquei estupefato (não confundir com estupefaciado).
Pois a coisa funciona assim, e é de deixar os cabelos em pé: inventaram “drogas” virtuais que simulam os efeitos de drogas, entorpecentes e remédios reais, por meio de ondas sonoras especialmente criadas para recriar no cérebro as condições neurológicas que produzem estes efeitos. Ou seja: você compra uma “dose” de bebida alcoólica virtual (só para ficar num exemplo mais levinho), baixa o programinha, coloca fones de ouvidos e fica escutando os sons estranhos durante um período que varia de acordo com o produto adquirido (pode ir de 15 minutos a até uma hora). Depois, é tirar os fones e “curtir” o efeito. Doideira, não?
Preocupante, na verdade. Primeiro, pelo conceito em si, que é o de disponibilizar estupefacientes pela internet a quem quer que seja e que esteja disposto a pagar pelo “produto”. Depois, pelas consequências do negócio, ainda totalmente desconhecidas e imprevisíveis. E vai que os tais sons causem danos ao cérebro? Seria lógico, afinal, é exatamente isso o que causam todos os tipos de drogas existentes no mundo real. Quem vai controlar? Quem vai coibir? Quem vai fiscalizar e combater? Preocupante... bem preocupante.
Como o troço ainda é muito recente, existem controvérsias a respeito da real eficácia das tais i-doses. Há quem diga que tudo não passa de placebos, ou seja, são sons inócuos e que só fazem efeito devido à auto-sugestão de quem se dispõe a absorver a i-dose e embarcar na viagem. Tipo igual à hipnose: só fica hipnotizado quem se dispõe a ficar. Mesmo assim, são sons que mexem com os neurônios, e pode-se, sim, estar brincando com coisa séria. Só o futuro dirá. E mais uma coisa para pais e educadores em geral ficarem atentos e vigilantes no vasto mundo da internet, onde todos navegam a seu bel-prazer.
Eu, de minha parte, agradeço e passo longe. Prefiro continuar com minha cervejinha de final de semana e com o chá de boldo, cada vez mais em alta aqui em casa...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 29/10/2010)
Blog destinado à publicação de crônicas e textos assinados pelo jornalista e escritor Marcos Fernando Kirst em jornais e revistas, além de textos aleatórios quando for o caso.
sexta-feira, 29 de outubro de 2010
domingo, 24 de outubro de 2010
Velho, quem?
Tenho comigo a impressão de que o legado deixado pelo rock and roll à humanidade tem um alcance muito mais profundo do que apenas uma revolução de costumes e de atitudes ligada a conceitos como rebeldia, liberdade, contestação e outros. Quando vejo na ativa, em plena forma física e criativa, figuras como Bob Dylan, Mick Jagger, Paul McCartney, Eric Clapton, Ringo Starr, Neil Young e outros dinossauros, todos quase septuagenários, concluo que essa turma tem grande parcela de responsabilidade pela revolução do conceito de velhice que a espécie humana está vivenciando nos tempos modernos.
É interessante constatar que esses próprios artistas, no início de suas carreiras, lá pelos idos dos anos 60, com 20 e poucos anos, não concebiam vislumbrar a si mesmos ainda na ativa no cenário rock quando ultrapassassem as idades de seus pais, aos 40 e poucos anos de idade. Para eles, o lema era desconfiar de quem passasse da casa dos 30. Para a surpresa deles e do mundo todo, as feras do rock viraram quarentões tão ativos e criativos (alguns deles ficando ainda melhores com a chegada da maturidade) quanto o eram na juventude, e perceberam que não havia razão alguma para que pendurassem as guitarras e fossem jogar dominó.
E como quando se começa a descer uma ladeira a velocidade só tende a aumentar, logo acordaram cinquentões e, dois pulinhos mais tarde, estavam sessentões e compondo e cantando e tocando e gravando e arrastando multidões para seus shows, apesar dos cabelos brancos, das rugas nas faces, dos filhos adultos e do crescente séquito de netinhos que os fazem corujas e orgulhosos. Nem mesmo o Jethro Tull defende mais a sentença que pretendia enterrar o rock sob a palheta da juventude. “Too young to die, too old to rock and roll” (“jovem demais para morrer, velho demais para o rock and roll”) virou uma frase preconceituosa, sem sentido e anacrônica, já que os próprios velhos roqueiros provam que não existe idade limite para o rock.
Junto a isso, provam e demonstram que também não existe idade para conquistar e realizar sonhos, para viver, para fazer rock, para amar, para ser, enfim, feliz. Yeah, yeah, yeah!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22/10/2010)
É interessante constatar que esses próprios artistas, no início de suas carreiras, lá pelos idos dos anos 60, com 20 e poucos anos, não concebiam vislumbrar a si mesmos ainda na ativa no cenário rock quando ultrapassassem as idades de seus pais, aos 40 e poucos anos de idade. Para eles, o lema era desconfiar de quem passasse da casa dos 30. Para a surpresa deles e do mundo todo, as feras do rock viraram quarentões tão ativos e criativos (alguns deles ficando ainda melhores com a chegada da maturidade) quanto o eram na juventude, e perceberam que não havia razão alguma para que pendurassem as guitarras e fossem jogar dominó.
E como quando se começa a descer uma ladeira a velocidade só tende a aumentar, logo acordaram cinquentões e, dois pulinhos mais tarde, estavam sessentões e compondo e cantando e tocando e gravando e arrastando multidões para seus shows, apesar dos cabelos brancos, das rugas nas faces, dos filhos adultos e do crescente séquito de netinhos que os fazem corujas e orgulhosos. Nem mesmo o Jethro Tull defende mais a sentença que pretendia enterrar o rock sob a palheta da juventude. “Too young to die, too old to rock and roll” (“jovem demais para morrer, velho demais para o rock and roll”) virou uma frase preconceituosa, sem sentido e anacrônica, já que os próprios velhos roqueiros provam que não existe idade limite para o rock.
Junto a isso, provam e demonstram que também não existe idade para conquistar e realizar sonhos, para viver, para fazer rock, para amar, para ser, enfim, feliz. Yeah, yeah, yeah!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22/10/2010)
domingo, 17 de outubro de 2010
A medida de nossos umbigos
Uma vez que todos nós somos seres autocentrados, egocêntricos e autorreferentes, não é de se estranhar que passemos nossas existências alimentando preconceitos e maus julgamentos sobre os outros embasados no fato de que os analisamos e os medimos a partir das qualidades que pressupomos existir em nós mesmos. Nós próprios somos a medida para o que há de melhor na humanidade, de mais correto, mais bonito, elegante, charmoso, inteligente, espirituoso, politicamente correto, engraçado, esperto e fofo. Ou vai me dizer que você não acha tudo isso de você mesmo?
O problema é que ninguém está se dando ao trabalho, nestes dias de recenseamento e de preocupações com a superpopulação do planeta, de também aferir as consequências por certo danosas da proliferação desenfreada de egos humanos a inflarem e exigirem mais e mais espaço por sobre a superfície da Terra. Porque a coisa, como podemos ver analisando friamente o entorno social que nos cerca, funciona normalmente assim: você é o centro do universo, e tudo gira em torno de seu umbigo, seja ele do tipo fechadinho, ou puxado para fora igual a laranja-de-umbigo ou avaletado para dentro. Nossos umbigos atraem tudo para o seu próprio centro, reproduzindo a imagem dos buracos negros, que absorvem, dizem, até mesmo a luz. Umbigos iluminados, portanto, esses nossos.
As pessoas à nossa volta são ou mais feias ou mais bonitas do que a gente; ou mais magras ou mais gordas; ou mais espertas ou mais burras; ou mais felizes ou mais estropiadas; ou mais abonadas ou mais miseráveis; ou mais sortudas ou mais azaradas. Mas sempre a régua para medi-las somos nós mesmos. Compomos, nós, seres humanos, um agrupamento de seis bilhões de centros do universo se entrechocando por sobre a Terra. “Fulano é um gordão mesmo”, dizemos nós de Fulano, que pesa 130 quilos, para a alegria de nossos magérrimos 120. “Beltrana é uma es-can-da-loooooooo-saaaaaaaaaa”, berramos para as amigas no salão de beleza contra Beltrana (que está obviamente ausente), fazendo nosso singelo escandalozinho.
Nossa sorte é que não somos iguais uns aos outros. Apenas semelhantes em nosso cultivo ao narcisismo.
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 15/10/10)
O problema é que ninguém está se dando ao trabalho, nestes dias de recenseamento e de preocupações com a superpopulação do planeta, de também aferir as consequências por certo danosas da proliferação desenfreada de egos humanos a inflarem e exigirem mais e mais espaço por sobre a superfície da Terra. Porque a coisa, como podemos ver analisando friamente o entorno social que nos cerca, funciona normalmente assim: você é o centro do universo, e tudo gira em torno de seu umbigo, seja ele do tipo fechadinho, ou puxado para fora igual a laranja-de-umbigo ou avaletado para dentro. Nossos umbigos atraem tudo para o seu próprio centro, reproduzindo a imagem dos buracos negros, que absorvem, dizem, até mesmo a luz. Umbigos iluminados, portanto, esses nossos.
As pessoas à nossa volta são ou mais feias ou mais bonitas do que a gente; ou mais magras ou mais gordas; ou mais espertas ou mais burras; ou mais felizes ou mais estropiadas; ou mais abonadas ou mais miseráveis; ou mais sortudas ou mais azaradas. Mas sempre a régua para medi-las somos nós mesmos. Compomos, nós, seres humanos, um agrupamento de seis bilhões de centros do universo se entrechocando por sobre a Terra. “Fulano é um gordão mesmo”, dizemos nós de Fulano, que pesa 130 quilos, para a alegria de nossos magérrimos 120. “Beltrana é uma es-can-da-loooooooo-saaaaaaaaaa”, berramos para as amigas no salão de beleza contra Beltrana (que está obviamente ausente), fazendo nosso singelo escandalozinho.
Nossa sorte é que não somos iguais uns aos outros. Apenas semelhantes em nosso cultivo ao narcisismo.
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 15/10/10)
quinta-feira, 14 de outubro de 2010
To be or not to beatle?
(Em homenagem à vinda de Paul McCartney a Porto Alegre em 7 de novembro, reproduzo a segunda de três crônicas-Beatle que publiquei no site www.thebeatles.com.br)
Eu, na verdade, sou um beatlemaníaco tardio. Fruto, digamos, da “segunda safra” de contagiados pela doença Beatle, aquela que faz você despertar um dia para aquilo que descobre ser um conjunto genial de canções e nunca mais conseguir deixar de escutá-las mais uma vez, e mais outra, e uma vez mais, e de novo, e... Bom, mas é isto: quando fui me dar por conta de alguma coisa na vida, os Beatles já haviam se separado há muito tempo e John Lennon já tinha ido para o céu. Mas também não surgi de um ovo e tampouco fui expelido aqui para baixo de repente pela descarga de um disco voador... O fato é que foi assim, ó:
Eu vim ao mundo ainda na Era Beatle, ou seja, em 8 de julho de 1966, pouco depois do lançamento do álbum “Revolver”, enquanto provavelmente John, Paul, George e Ringo se recuperavam da traumática estada nas Filipinas (quero crer que não foi por causa de Imelda que ganhei o nome “Marcos”) e se preparavam para aquela que viria a ser a última turnê da banda, que aconteceria em agosto, nos Estados Unidos. Ou seja: enquanto meus pais escutavam meus choros e gritos que destranqüilizavam a até então pacata Rua dos Viajantes, a parte civilizada do mundo já começava a se deleitar com pérolas musicais que viriam a permanecer para sempre como “Eleanor Rigby”, “Taxman”, “Tomorrow never knows”, “Yellow submarine”, “I want to tell you” e outras. Lá em casa, enquanto isto, tentava-se combater a faixa número um do Top Ten da Família (“Marquinhos´screams”) contrapondo as faixas de “Rubber Soul”, conforme já explicitado na crônica anterior (“Gu-gu dá-dá be-beatles”).
Mas eu mal caminhava ou articulava frases quando o mundo maravilhou-se com “Sgt Pepper´s”, em 1967. Depois, passou-me completamente despercebido o lançamento de um álbum duplo com capa branca e, além disto, a única turnê mágica e misteriosa que eu fazia era em meio aos meus carrinhos de chumbo Matchbox e junto ao porquinho de pano que levava comigo para receber vacina no posto de saúde. Primeiro ele, depois eu, naturalmente. Devia ser “Piggies” já ecoando subliminarmente em meu cérebro, vai saber...
Quando cantaram “Let it Be” eu não estava nem aí e, quando o sonho acabou, no início de 1970, eu tinha três anos e meio e recém começava a ter capacidade para moldar os meus próprios sonhos. Fui crescendo e “Rubber Soul”, o único disco (disco mesmo, de vinil, bolacha preta a ser beijada pela agulha) que eu tinha do quarteto, se acotovelava entre outros na prateleira, jazendo ali, inócuo, incólume, insípido e inodoro. Cresci, alfabetizei-me, e assisti pelo Jornal Nacional a comoção mundial pelo assassinato de John Lennon, quando já não me eram estranhas composições como “Give Peace a Chance” e “Imagine”, mas não me uni ao pranto pela morte estúpida de um ex-Beatle. Não naquela ocasião, pelo menos. Eu já andava pelos 14 anos e me preparava para começar a formatar meu próprio gosto musical. Ganhava mesada e descarregava tudo em livros de Monteiro Lobato e de Agatha Christie, além de gibis dos super-heróis Marvel lançados aqui na época pelas editoras Bloch e Ebal. Mas, um belo dia, minha avó me deu de Natal um disco dos Secos & Molhados.
Ops! Minha avó me deu um disco dos Secos & Molhados?????!!!!!!?????!!!!!!!!!!!!!
Sim, mas péraí, isso foi bem antes, em 1974, quando eu tinha sete anos. Ela me deu o disco (minha avó! Me deu um disco dos Secos & Molhados!!! Os caminhos de Deus são inescrutáveis, todos sabemos disto, mas... putz... minha avó me dar um... bom, deixapralá...), aquele que tem na capa as quatro cabeças pintadas e servidas em bandejas. A imagem me assustava e deixei o disco guardado, meio que escondido, por um bom tempo, para evitar pesadelos. Daí, então, lá no final de 1980, vasculhando a prateleira dos discos depois da morte de John Lennon, encontrei este dos Secos & Molhados que minha avó havia me dado anos antes e coloquei-o na vitrola Telefunken para escutar. E gostei do que ouvi. Comecei a prestar atenção no arranjo de abertura de “Sangue Latino” (o baixo e o chocalho abrindo a música, as cordas que vêm do fundo e vão crescendo, preparando a entrada da voz andrógina de Ney Matogrosso...). Putz, aquilo era muito louco! Será que havia mais discos assim enfiados ali no meio, além dos disquinhos de historietas de Walt Disney, que já haviam sido abandonados junto ao babeiro e à mamadeira?
Será que existiam por ali músicas como “Imagine” e “Give Peace a Chance”, do John Lennon que havia morrido? Vasculhei todos os discos e não encontrei nada mais que me agradasse. O “Rubber Soul” estava lá, mas passou batido a estas primeiras audições ansiosas e desinformadas. Precisava, então, dar uma destinação mais ampla aos cruzeiros que compunham a mesada, além dos gibis do Homem-Aranha, das Caçadas de Pedrinho e de O Caso dos Dez Negrinhos. Resolvi comprar discos.
E lá vieram eles: Abba, Boney M., Gengis Khan, trilha internacional da novela Dancin´ Days... Uau! Mas, calma, não se desesperem, o final da história é feliz... Fui resgatado a tempo por um tio apenas sete anos mais velho do que eu que, em 1982, veio morar com a gente e trouxe consigo uma verdadeira parafernália musical: um aparelho de som modulado (até então eu só conhecia três-em-um), com equalizador, um par de caixas monstruosas e discos, muitos discos. Entre eles, “Let it Be”... As músicas misteriosas apreciadas por aquele tio invadiam o corredor e todos os aposentos da casa nas tardes quentúmidas em Ijuí, escapando por debaixo das frestas da porta do quarto que estava agora destinado a ele. E não é que as faixas daquele disco de capa preta com fotos de quatro cabeludos pareciam ter a mesma complexidade de composição que eu identificara pouco antes no Secos & Molhados presenteado pela minha avó (aliás, mãe deste tio)? Que coisa diferente aquela “I´ve Got a Feeling”... e “Get Back”, e “Two of Us”... Decidi que gostava daquele álbum, e passei a desejar conhecer mais sobre a banda. Que se chamava... The Beatles! Mas… como? Então eram os mesmos caras de “Rubber Soul”, que a vida inteira estivera esquecido ali em casa, na prateleira dos discos?
Ver com outros olhos, escutar com outros ouvidos... A psicologia chama de “insight” o momento em que você percebe algo por conta própria, o instante mágico e inesquecível em que alguma coisa se elucida... Como podiam os mesmos caras produzirem sons tão diferentes como os verificados em “Rubber Soul” e em “Let it Be?” E não é que aquele disco que era meu há anos continha músicas tão interessantes quanto as de “Let it Be” e as dos Secos & Molhados? “Michelle”... “Norwegian Wood”… “I´m Looking Through You”… Hummm… Havia um universo a ser descoberto ali....
O que mais existia entre aqueles dois álbuns, o que viera antes deles e o que acontecera e ainda aconteceria depois... bem, foram estas as motivações que me levaram a começar minha trilha por uma estrada mágica e misteriosa, em uma jornada repleta de sabores novos pelo inesgotável universo Beatle, que persiste e se renova até hoje.
“Follow Me”. Não é isso, Paul?
* Marcos Fernando Kirst é jornalista, gaúcho, e tem dois tios que o resgataram a tempo do lado escuro da era “disco”.
Eu vim ao mundo ainda na Era Beatle, ou seja, em 8 de julho de 1966, pouco depois do lançamento do álbum “Revolver”, enquanto provavelmente John, Paul, George e Ringo se recuperavam da traumática estada nas Filipinas (quero crer que não foi por causa de Imelda que ganhei o nome “Marcos”) e se preparavam para aquela que viria a ser a última turnê da banda, que aconteceria em agosto, nos Estados Unidos. Ou seja: enquanto meus pais escutavam meus choros e gritos que destranqüilizavam a até então pacata Rua dos Viajantes, a parte civilizada do mundo já começava a se deleitar com pérolas musicais que viriam a permanecer para sempre como “Eleanor Rigby”, “Taxman”, “Tomorrow never knows”, “Yellow submarine”, “I want to tell you” e outras. Lá em casa, enquanto isto, tentava-se combater a faixa número um do Top Ten da Família (“Marquinhos´screams”) contrapondo as faixas de “Rubber Soul”, conforme já explicitado na crônica anterior (“Gu-gu dá-dá be-beatles”).
Mas eu mal caminhava ou articulava frases quando o mundo maravilhou-se com “Sgt Pepper´s”, em 1967. Depois, passou-me completamente despercebido o lançamento de um álbum duplo com capa branca e, além disto, a única turnê mágica e misteriosa que eu fazia era em meio aos meus carrinhos de chumbo Matchbox e junto ao porquinho de pano que levava comigo para receber vacina no posto de saúde. Primeiro ele, depois eu, naturalmente. Devia ser “Piggies” já ecoando subliminarmente em meu cérebro, vai saber...
Quando cantaram “Let it Be” eu não estava nem aí e, quando o sonho acabou, no início de 1970, eu tinha três anos e meio e recém começava a ter capacidade para moldar os meus próprios sonhos. Fui crescendo e “Rubber Soul”, o único disco (disco mesmo, de vinil, bolacha preta a ser beijada pela agulha) que eu tinha do quarteto, se acotovelava entre outros na prateleira, jazendo ali, inócuo, incólume, insípido e inodoro. Cresci, alfabetizei-me, e assisti pelo Jornal Nacional a comoção mundial pelo assassinato de John Lennon, quando já não me eram estranhas composições como “Give Peace a Chance” e “Imagine”, mas não me uni ao pranto pela morte estúpida de um ex-Beatle. Não naquela ocasião, pelo menos. Eu já andava pelos 14 anos e me preparava para começar a formatar meu próprio gosto musical. Ganhava mesada e descarregava tudo em livros de Monteiro Lobato e de Agatha Christie, além de gibis dos super-heróis Marvel lançados aqui na época pelas editoras Bloch e Ebal. Mas, um belo dia, minha avó me deu de Natal um disco dos Secos & Molhados.
Ops! Minha avó me deu um disco dos Secos & Molhados?????!!!!!!?????!!!!!!!!!!!!!
Sim, mas péraí, isso foi bem antes, em 1974, quando eu tinha sete anos. Ela me deu o disco (minha avó! Me deu um disco dos Secos & Molhados!!! Os caminhos de Deus são inescrutáveis, todos sabemos disto, mas... putz... minha avó me dar um... bom, deixapralá...), aquele que tem na capa as quatro cabeças pintadas e servidas em bandejas. A imagem me assustava e deixei o disco guardado, meio que escondido, por um bom tempo, para evitar pesadelos. Daí, então, lá no final de 1980, vasculhando a prateleira dos discos depois da morte de John Lennon, encontrei este dos Secos & Molhados que minha avó havia me dado anos antes e coloquei-o na vitrola Telefunken para escutar. E gostei do que ouvi. Comecei a prestar atenção no arranjo de abertura de “Sangue Latino” (o baixo e o chocalho abrindo a música, as cordas que vêm do fundo e vão crescendo, preparando a entrada da voz andrógina de Ney Matogrosso...). Putz, aquilo era muito louco! Será que havia mais discos assim enfiados ali no meio, além dos disquinhos de historietas de Walt Disney, que já haviam sido abandonados junto ao babeiro e à mamadeira?
Será que existiam por ali músicas como “Imagine” e “Give Peace a Chance”, do John Lennon que havia morrido? Vasculhei todos os discos e não encontrei nada mais que me agradasse. O “Rubber Soul” estava lá, mas passou batido a estas primeiras audições ansiosas e desinformadas. Precisava, então, dar uma destinação mais ampla aos cruzeiros que compunham a mesada, além dos gibis do Homem-Aranha, das Caçadas de Pedrinho e de O Caso dos Dez Negrinhos. Resolvi comprar discos.
E lá vieram eles: Abba, Boney M., Gengis Khan, trilha internacional da novela Dancin´ Days... Uau! Mas, calma, não se desesperem, o final da história é feliz... Fui resgatado a tempo por um tio apenas sete anos mais velho do que eu que, em 1982, veio morar com a gente e trouxe consigo uma verdadeira parafernália musical: um aparelho de som modulado (até então eu só conhecia três-em-um), com equalizador, um par de caixas monstruosas e discos, muitos discos. Entre eles, “Let it Be”... As músicas misteriosas apreciadas por aquele tio invadiam o corredor e todos os aposentos da casa nas tardes quentúmidas em Ijuí, escapando por debaixo das frestas da porta do quarto que estava agora destinado a ele. E não é que as faixas daquele disco de capa preta com fotos de quatro cabeludos pareciam ter a mesma complexidade de composição que eu identificara pouco antes no Secos & Molhados presenteado pela minha avó (aliás, mãe deste tio)? Que coisa diferente aquela “I´ve Got a Feeling”... e “Get Back”, e “Two of Us”... Decidi que gostava daquele álbum, e passei a desejar conhecer mais sobre a banda. Que se chamava... The Beatles! Mas… como? Então eram os mesmos caras de “Rubber Soul”, que a vida inteira estivera esquecido ali em casa, na prateleira dos discos?
Ver com outros olhos, escutar com outros ouvidos... A psicologia chama de “insight” o momento em que você percebe algo por conta própria, o instante mágico e inesquecível em que alguma coisa se elucida... Como podiam os mesmos caras produzirem sons tão diferentes como os verificados em “Rubber Soul” e em “Let it Be?” E não é que aquele disco que era meu há anos continha músicas tão interessantes quanto as de “Let it Be” e as dos Secos & Molhados? “Michelle”... “Norwegian Wood”… “I´m Looking Through You”… Hummm… Havia um universo a ser descoberto ali....
O que mais existia entre aqueles dois álbuns, o que viera antes deles e o que acontecera e ainda aconteceria depois... bem, foram estas as motivações que me levaram a começar minha trilha por uma estrada mágica e misteriosa, em uma jornada repleta de sabores novos pelo inesgotável universo Beatle, que persiste e se renova até hoje.
“Follow Me”. Não é isso, Paul?
* Marcos Fernando Kirst é jornalista, gaúcho, e tem dois tios que o resgataram a tempo do lado escuro da era “disco”.
sexta-feira, 8 de outubro de 2010
Velozes feirantes
(Crédito do fotógrafo: Chimia)
Circulo por entre os estandes da Feira do Livro com um cuidado redobrado nas manhãs e tardes dos dias de semana, quando o movimento, durante os horários tradicionais de expediente, permite o surgimento de espaço para transitar com certa dose de desenvoltura. Mas é preciso estar alerta. Minhas décadas de presença em ambientes de feiras de livros me permitem saber que não devo me iludir, e que é justamente aí que mora o perigo. Engana-se quem pensa que, por ser dia de semana e horário de trabalho, fica mais fácil perambular despreocupadamente de um lado para o outro entre as barraquinhas, ziguezagueando o olhar pelas sedutoras capas e títulos de todos aqueles livros que estamos doidaços para levar para casa. Nananinanina!
É nesses momentos que nosso trote livresco costuma ser interceptado por pequenos bólidos de cerca de um metro e pouquinho mais de altura que surgem zunindo a gente nunca sabe de onde e cruzam perigosamente quase por entre as nossas pernas, quando não metem um “chega-prá-lá” com os cotovelinhos afundando nossas frágeis barrigas passeadeiras e feirantes, alertando-nos para a presença de um dos elementos que mais fascinam e justificam a realização de feiras de livros: as crianças. Fique então sabendo e vai o alerta, você aí que se julga esperto e deseja passear pela Feira de segunda a sexta, em horário comercial: os corredores estão mais livres, é verdade, mas pertencem às crianças, e o limite de velocidade costuma estar flexibilizado.
Elas passam zunindo para lá e para cá, os cabelinhos esvoaçantes, a gargalhada solta sublinhando o prazeroso encontro das pequenas mãozinhas com o volume dos livros recém capturados. O deleite do contato com o livro encantador costuma ser compartilhado à larga e anunciado sem autocensuras, verdadeiramente esparramado por entre os estandes e as pernas de adultos desavisados. Que felicidade deve ser essa, a de ser livro infantil e cair nas graças de um pequeno grande leitor, que sai correndo com ele pela praça, espalhafatando satisfação literária!
Abram alas! Numa boa Feira do Livro, como essa nossa, criança está sempre na preferencial.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 08-10-10)
É nesses momentos que nosso trote livresco costuma ser interceptado por pequenos bólidos de cerca de um metro e pouquinho mais de altura que surgem zunindo a gente nunca sabe de onde e cruzam perigosamente quase por entre as nossas pernas, quando não metem um “chega-prá-lá” com os cotovelinhos afundando nossas frágeis barrigas passeadeiras e feirantes, alertando-nos para a presença de um dos elementos que mais fascinam e justificam a realização de feiras de livros: as crianças. Fique então sabendo e vai o alerta, você aí que se julga esperto e deseja passear pela Feira de segunda a sexta, em horário comercial: os corredores estão mais livres, é verdade, mas pertencem às crianças, e o limite de velocidade costuma estar flexibilizado.
Elas passam zunindo para lá e para cá, os cabelinhos esvoaçantes, a gargalhada solta sublinhando o prazeroso encontro das pequenas mãozinhas com o volume dos livros recém capturados. O deleite do contato com o livro encantador costuma ser compartilhado à larga e anunciado sem autocensuras, verdadeiramente esparramado por entre os estandes e as pernas de adultos desavisados. Que felicidade deve ser essa, a de ser livro infantil e cair nas graças de um pequeno grande leitor, que sai correndo com ele pela praça, espalhafatando satisfação literária!
Abram alas! Numa boa Feira do Livro, como essa nossa, criança está sempre na preferencial.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 08-10-10)
domingo, 3 de outubro de 2010
Agora então é "bullying"
No meu tempo (aiaiai... quando o cara começa oito entre dez textos com “no meu tempo”, é mesmo um sinal dos tempos)... Bom, mas, quando eu era criança, lá nos idos dos anos 60 e 70, não existia esse negócio de bullying. Existia, sim, era a simples e clara opressão dos meninos mais fortes e malvados sobre os mais tímidos e raquíticos, e das meninas mais ferinas e desenvoltas sobre as meiguinhas e retraídas. Isso daí que agora recebeu denominação estrangeira para tentar glamourizar aquilo que não tem glamour nenhum não foi inventado hoje, e move – infelizmente – as relações de poder entre os seres humanos desde que desabamos dos galhos das árvores e começamos a tentar nos diferenciar dos macacos (cada vez mais ingrata tarefa, aliás).
Independentemente de como se denomine o ato, com expressão em língua pátria ou importada, sua essência não muda, e não passa da simples exteriorização de uma das características mais nocivas que existem latentes dentro da alma humana: a perversidade. Oprimir e humilhar por qualquer meio que seja (e, muitas vezes, a partir de todos os meios disponíveis) outra pessoa é uma tendência que nasce junto com a condição humana, bem como diversos outros traços que remontam ao primitivismo de nossas almas. Domar essas características, superá-las e transformá-las é o desafio que se impõe a todo o ser humano que nasce em sociedade e pretende viver nela de maneira construtiva e civilizada. Trata-se de uma meta a ser perseguida diuturnamente por cada um de nós, do início ao fim de nossas jornadas.
O problema surge quando essas noções básicas e fundamentais de civilidade não são apresentadas cedo às criaturas humanas. E, quanto mais tarde o forem, mais tarde demais será para que nossos semelhantes possam superar suas características incivilizadas e domar os selvagens que teimam em vir à tona e preponderar na (de)formação de seus caráteres. Se não queremos mais o bullying nas escolas ou onde quer que seja, precisamos nos preocupar mais com a formação de nossos filhos, primeiramente, em nossas próprias casas. Com os nossos próprios exemplos. A questão é quando nos olhamos no espelho e nos deparamos, nós mesmos, com o reflexo dos macacos que teimamos em continuar sendo...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 1/10/2010)
Independentemente de como se denomine o ato, com expressão em língua pátria ou importada, sua essência não muda, e não passa da simples exteriorização de uma das características mais nocivas que existem latentes dentro da alma humana: a perversidade. Oprimir e humilhar por qualquer meio que seja (e, muitas vezes, a partir de todos os meios disponíveis) outra pessoa é uma tendência que nasce junto com a condição humana, bem como diversos outros traços que remontam ao primitivismo de nossas almas. Domar essas características, superá-las e transformá-las é o desafio que se impõe a todo o ser humano que nasce em sociedade e pretende viver nela de maneira construtiva e civilizada. Trata-se de uma meta a ser perseguida diuturnamente por cada um de nós, do início ao fim de nossas jornadas.
O problema surge quando essas noções básicas e fundamentais de civilidade não são apresentadas cedo às criaturas humanas. E, quanto mais tarde o forem, mais tarde demais será para que nossos semelhantes possam superar suas características incivilizadas e domar os selvagens que teimam em vir à tona e preponderar na (de)formação de seus caráteres. Se não queremos mais o bullying nas escolas ou onde quer que seja, precisamos nos preocupar mais com a formação de nossos filhos, primeiramente, em nossas próprias casas. Com os nossos próprios exemplos. A questão é quando nos olhamos no espelho e nos deparamos, nós mesmos, com o reflexo dos macacos que teimamos em continuar sendo...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 1/10/2010)
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
Livros iluminam a praça
A partir do meio-dia desta sexta-feira, os livros voltam a assentar-se na Praça Dante Alighieri para a realização de mais uma Feira do Livro de Caxias do Sul. Na nossa cidade, a praça da Feira tem nome de escritor clássico. Pode-se desejar mais? Sob o lema “Ler é iluminar-se”, tenho a honra, o orgulho e o desafio de desempenhar o papel de patrono desta 26ª edição do evento literário de maior porte de todo o interior do Estado. Irmanado a mim nessa jornada, conto com o apoio, a presença e a fé do Frei Aldo Colombo, o justo homenageado da Feira deste ano, que também tem uma biografia profissional e pessoal ligada à defesa e propagação da leitura e dos livros.
A Feira do Livro representa o ponto culminante anual de todo um trabalho permanente e incansável em favor da promoção da leitura em nossa cidade, por parte dos esforços conjugados de vários setores do poder público, de livreiros, de educadores, de escolas, da imprensa, de empresas privadas, de editores, de escritores, de promotores culturais, de incentivadores da leitura em geral. É durante os dias de Feira que essa gente toda se encontra na praça para celebrar a alegria que é fazer parte desse verdadeiro Planeta Livro que toma forma e existe nos corações e nas mentes de todos os seres que amam a literatura.
Basta circular pelo ambiente da Feira para ser contagiado pelo clima de alegria, aconchego e compartilhamento da sensação positiva e saudável que emana do contato com a leitura. A presença cada vez maior das crianças em meio aos livros é algo que emociona, contagia e desanuvia as visões apocalípticas de futuro que às vezes teimamos em manter. Sempre haverá esperança enquanto uma criança deleitar-se no gesto de abrir um livro. Tenho fé genuína nisso.
Sob a batuta abnegada e incansável da Luiza Darsie da Motta, diretora do Programa Permanente de Estímulo à Leitura (PPEL), órgão ligado à Secretaria da Cultura e responsável pela organização e realização do evento, juntamente com toda a sua batalhadora equipe, tenho certeza de que teremos 17 dias de aconchego literário em nossa praça. Bem-vindos à Feira do Livro, e boas leituras a todos!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de outubro de 1910)
A Feira do Livro representa o ponto culminante anual de todo um trabalho permanente e incansável em favor da promoção da leitura em nossa cidade, por parte dos esforços conjugados de vários setores do poder público, de livreiros, de educadores, de escolas, da imprensa, de empresas privadas, de editores, de escritores, de promotores culturais, de incentivadores da leitura em geral. É durante os dias de Feira que essa gente toda se encontra na praça para celebrar a alegria que é fazer parte desse verdadeiro Planeta Livro que toma forma e existe nos corações e nas mentes de todos os seres que amam a literatura.
Basta circular pelo ambiente da Feira para ser contagiado pelo clima de alegria, aconchego e compartilhamento da sensação positiva e saudável que emana do contato com a leitura. A presença cada vez maior das crianças em meio aos livros é algo que emociona, contagia e desanuvia as visões apocalípticas de futuro que às vezes teimamos em manter. Sempre haverá esperança enquanto uma criança deleitar-se no gesto de abrir um livro. Tenho fé genuína nisso.
Sob a batuta abnegada e incansável da Luiza Darsie da Motta, diretora do Programa Permanente de Estímulo à Leitura (PPEL), órgão ligado à Secretaria da Cultura e responsável pela organização e realização do evento, juntamente com toda a sua batalhadora equipe, tenho certeza de que teremos 17 dias de aconchego literário em nossa praça. Bem-vindos à Feira do Livro, e boas leituras a todos!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de outubro de 1910)
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