domingo, 22 de dezembro de 2013

O ralho do carteiro


Dia desses recebi uma multa de trânsito. Para poder escrever esta crônica, sou obrigado a admitir, caro leitor, que cometi uma infração e que sou culpado. Não deveria, eu sei, mas aconteceu. Passei a 67 km/h em um trecho no qual só poderia trafegar a, no máximo, 60 km/h. Distraí-me, voei as tranças acima do permitido e a lombada eletrônica deu-me no lombo. Paciência. Paga-se e procura-se redobrar a atenção para não repetir a façanha. Até aí, tudo certo.
Problema mesmo é o carteiro que distribui a correspondência no meu bairro. Ele faz cara de brabo quando vem entregar multa. Para receber a notificação, é preciso assinar o nome num papelzinho na prancheta dele. Ele chega de moto, buzina na frente de casa, me espera sair porta afora e pergunta, inquisitivo, em tom de Torquemada: “Senhor Marcos Fernando?”. Pois sim, sou eu. Apresento-me já meio de orelha baixa, visualizo o logotipo do Detran numa das faces do envelope e entendo tudo. “Lá vem multa”, articulo, tentando estabelecer contato e empatia enquanto o carteiro, compenetrado e mudo, preenche números de protocolo no formulário, a moto com o motor ligado, barulhando defronte ao portão, fazendo questão, parece, de anunciar a toda a vizinhança que “o senhor Marcos Fernando aí andou levando multa”.
E pensa mais o carteiro, enquanto escreve, escreve, escreve com a caneta Bic na prancheta. Amuado do lado de cá da cerca, aguardo a entrega do papel enquanto escuto na alma os pensamentos irados do carteiro: “Brincadeira esses caras, aí. Ficam cometendo infração e depois eu é que tenho de carregar as multas deles pela cidade. Não me interessa se é infração leve, média, grave ou gravíssima. Multa é multa. Fez o que não devia. Não se comportou direito. Faz babada e depois eu é que tenho de ficar trazendo primeiro a notificação para defesa e, mais tarde, retornar aqui de novo para trazer a guia de recolhimento. Por que é que não anda na linha? Tudo bem ter de carregar o malote com correspondência, com conta do cartão de crédito, conta do telefone, da tevê a cabo, mala-direta, cartão de Natal, a revista Veja, a Playboy... ah, não, a Playboy é do vizinho da frente, mas pô... brincadeira esses caras”.

Recebo o papel, assino na linha pontilhada e ele arranca, a moto martelando em meu ouvido as reprimendas surdas que só eu escutei. Tenho andado direitinho desde então. Que medo que tenho desse carteiro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de dezembro de 2013)

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