quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O parafuso perdido

“E aí, solucionou o seu parafuso?”, me pergunta, cheio de simpatia, o frentista do posto de gasolina em que abasteço meu carro. Primeiro, a surpresa por ele ter me reconhecido (“Ah, aí está o cliente do parafuso”) em meio a tantos outros motoristas que conduzem suas conduções até ali para solucionar as mais variadas demandas automobilísticas. Depois, o constrangimento de ter de dar explicações para que a esposa, sentada ao lado, conseguisse entender o que é que andava se passando, uma vez que, nesses dias de estresses característicos de final de ano, ela mesma tem desconfiado de que eu me comporto como se estivesse com um parafuso a menos.
Na verdade, o que existe é um parafuso a mais nessa história. Um parafuso que, não sei quando, nem onde, muito menos como (e nem ouso querer refletir sobre o por quê), botou-se a mirar o pneu traseiro direito de meu carro e cravou-se nele há não sei quanto tempo. Todos sabemos (ou deveríamos saber) que a coexistência entre parafusos e pneus não é pacífica, apesar de íntima, uma vez que o parafuso, devido à sua natureza penetrante, não consegue reprimir o ímpeto de, sempre que em contato com um pneu, perfurar-lhe a carne de borracha e fincar-se fundo nele, como um prego a supliciar um crucificado, sem dó, nem piedade.
O pneu, uma vez empalado pelo objeto pontiagudo e aparafusante, tem a tendência de ir-se esvaziando aos poucos exatamente como a carne que sangra, e que diabos isso de eu não conseguir represar metáforas crucificantes nessa época natalina, deixemos disso antes que mal me entendam. Resultado: um belo dia, o motorista chega no carro e depara com um dos pneus (o empalado, ou o emparafusado) murcho e chocho. Com o pouco de ar que ainda lhe resta nas entranhas, dirige-se até o posto mais próximo onde pede ao moço que o calibre de emergência e, ao fazê-lo, ele, o moço do posto, aponta o problema: “Este pneu está furado. Tem um parafuso nele. E deve estar ali há tempo, o ar é que foi saindo aos pouquinhos”, sentencia.
Resolvido o mistério: então foi ali que o parafuso que eu dei de ter a menos se refugiou quando resolveu libertar-se de mim. Quando for ao borracheiro consertar o estrago, pedirei para que me guarde o parafuso. Minha esposa, eu sei, anda desconfiada de que posso precisar dele para reequilibrar a quantidade dos que ela julga deveriam existir em minha cabeça, de onde não haveria nunca de ficar com nenhum a menos.
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Gilberto Blume retorna de férias e retoma a partir de amanhã este espaço. Grato a ele pela confiança e aos leitores pelo prestígio.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de dezembro de 2013)

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