Acredito que eu deveria ter por
volta de uns dez anos de idade quando meu pai chegou em casa uma certa manhã
carregando aquela grande caixa de papelão e a depositou sobre a mesa da
varanda. Fui ver o que era e deparei com um punhado de pintinhos de um dia
acotovelados ali dentro, formando uma massa amarela compacta de pios, penugens
e olhares aterrados. Quis saber para que aquilo e meu pai me explicou que os
havia comprado a fim de leva-los à fazenda que possuía no interior de São
Borja, onde esperava-se que se transformassem logo em frangos e, a seguir, em
galinhas poedeiras.
“Com sorte, haverá um ou outro
galo no meio desse bando”, disse ele. Fiquei impressionado com o fato de ser
possível “comprar vida”, expressão que utilizei na época. Fascinado com a
novidade, passei o restante da manhã em volta da caixa, observando os pequenos
serezinhos que recém haviam vindo ao mundo e que ignoravam, temerosos, o
destino que lhes era traçado. Indefesos, aconchegavam os corpinhos minúsculos e
frágeis uns aos outros, na busca instintiva por proteção, segurança, amparo.
Eu, enorme para eles, parecia representar a encarnação de um deus poderoso
capaz de, em um gesto, ceifar-lhes a vida a meu bel prazer, a qualquer
instante. A ideia causou-me mal-estar e ampliou a empatia que eu ia nutrindo
por aquelas dezenas de bichinhos.
Um deles, em especial, me chamou
a atenção. Parecia ser alguns milímetros mais alto do que os demais e se
destacava na multidão de pintos não só pela altura, mas também pelo
comportamento: pouco se mexia e ficava estático em um canto da caixa, não
procurando os companheiros e dando a impressão de ser também rechaçado por
eles. O dó que senti da criatura foi tamanho que pedi a meu pai para ficar com
ele em casa. Ele concordou e foi assim que o bicho se transformou em pinto de
estimação. Como era maior do que os outros, tive a certeza de que se tratava de
um galo, e batizei-o de Soiza (não me perguntem a razão do nome).
Em poucas semanas, já apartado
dos seus irmãos que seguiram para São Borja, o grande e tímido Soiza virou
frango e, alimentado com ração e carinho, não demorou a se transformar em uma
bela e ruiva... galinha! Pois é, aprendi ali, na prática, que as aparências
podem enganar. Meu galo era galinha, mas continuei gostado dele (dela) e o nome
Soiza permaneceu até o dia em que desapareceu do pátio em uma das visitas da
minha avó, expert em panelões maravilhosos de galinhada. Afinal, Soiza, há um
destino a ser cumprido...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de dezembro de 2013)
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