“Borracharia dia e noite”, dizia
a placa à beira da estrada. “O que será que fazem ali? Enchem a cara de cerveja
do raiar do sol até o avanço da madrugada, se emborrachando ininterruptamente?”,
me questionava eu, em silêncio, sentado no banco do carona. Pensamentos assim
(e alguns outros bem mais filosóficos, profundos e humanos, garanto) me visitam
a mente quando tenho a (rara) oportunidade de passear no banco do carona. Como
é bom estar no banco do carona.
Desobrigado a atentar para as
armadilhas do trânsito frenético, a conduzir o veículo pelas quebradas corretas
que desembocarão no destino almejado e a convergir todos os sentidos e esforços
na materialização de um trajeto seguro, a chance de poder aninhar-se no banco
do carona representa para mim um momento inegociável de relax mental capaz de
proporcionar uma recarga de bateria psíquica única e inigualável. Se confio no
(na) motorista, largo a alma a flanar pelas paisagens urbanas ou rurais que vão
desenrolando seus flagrantes de humanidades à medida em que são tocadas
fugazmente pelo crivo de meu olhar atento e descansado.
A moça que passeia com o
cãozinho pela calçada; o casal maduro de abrigo, boné e óculos escuros, a fazer
sua caminhada diária; o velhinho que não se desapega do hábito de levar a
cadeira para a varanda no fim de tarde para testemunhar a vida sorvendo
chimarrões silenciosos; a criança que fez arte e sai correndo marota porta
afora, deixando para dentro da casa os gritos maternos; a silhueta do cavalo que
pasta solitário no alto da campina; a casa de joão-de-barro que se equilibra no
alto do poste de luz; a casinha centenária encolhida entre dois prédios no
trajeto diário e que sempre me fugiu às vistas de motorista; as placas com dizeres
esdrúxulos que são engraçadas justamente por terem sido elaboradas sem a
intenção de provocarem graça alguma, como a “borracharia dia e noite” ou a “comida
por a quilo”.
O escritor francês Marcel
Proust, no início do século passado, temia, com a popularização dos automóveis,
que a velocidade das viagens dizimasse nas pessoas a capacidade de observarem as
paisagens do mundo com a mansidão necessária. Não proponho a volta das
charretes, mas talvez eu devesse viajar mais de ônibus.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de dezembro de 2013)
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