Todo poeta, todo artista, todo
escritor, todo cronista cultiva o hábito de cantar, enaltecer a sua ou as suas
musas. A prática começou lá na Grécia antiga, quando os primeiros narradores de
feitos épicos invocavam a proteção e a ajuda das nove Musas, a inspirarem suas
tarefas de cantar aos homens os feitos de deuses, de semideuses e de heróis. Dali
em diante, ao longo dos séculos, tornou-se hábito procurar agradar as musas no
intuito de delas receber os favores da inspiração e, aquilo que era visto como
realidade tangível na época dos antigos gregos, virou uma espécie de ritual
lúdico a perdurar até os dias de hoje, em que cada criador elege musas a seu
bel-prazer como fonte de inspiração.
O avançar da História provocou a
descida das Musas do Olimpo e, hoje, a musa não precisa mais ser deusa para ser
musa, apesar do fato intrínseco de, ao ser eleita musa, tornar-se deusa aos
olhos de seu admirador. E o Brasil, claro, é um celeiro de musas (e musos, vá
lá). A primeiríssima brasileira a estupidificar os olhos de alguém devido à sua
formosura foi uma índia anônima que circulava entre a tribo que testemunhou a
chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral nas praias do Brasil ensolaradas em
22 de abril de 1500.
Na carta que enviou à Corte
Portuguesa relatando a descoberta da nova terra, o escriba Pero Vaz de Caminha não
deixa passar o encanto da bela índia: “E uma daquelas moças era toda tingida de
baixo para cima daquela tintura e, certo era, tão bem feita e tão redonda e
graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera
vergonha por não terem a sua como a dela”. Quem seria essa índia formosa que
seduziu o olhar de Pero Vaz de Caminha? Jamais se saberá, visto que desapareceu
para dentro da mata junto com a tribo, tendo imortalizado o fato de sua
existência e de seu poder de encantamento pela pena do escriba. A índia anônima
de Caminha foi a primeira bela brasileira a virar musa, abrindo picada para as
posteriores Capitu, com seus “olhos de ressaca” machadianos; Helô Pinheiro,
cheia de graça a embalar Tom Jobim e Vinicius de Moraes e tantas outras. A cada
qual, a sua musa (ou muso), o que é muito bom e democrático. Melhor mesmo é
detectar que, assim como a anônima bela índia de Caminha, temos, todos, o
potencial latente de servir de inspiração a outrem, sem sequer imaginarmos
isso, e não só pela aparência física. Também há responsabilidade em
simplesmente ser, mesmo que às vezes se queira fugir para a mata.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de fevereiro de 2016)
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