Mostra-me tua cama e dir-te-ei
quem és. Como? Não, madama, que é isso? Longe de mim pensar coisas dessas.
Ainda mais da senhora! Está a precipitar-se, até parece que não me conhece!
Hein? Justamente porque me conhece bem é que... Mas, madama! Que horror! Deixemos
disso e comecemos de novo, sem interrupções e sem observações antes da hora.
Qual é a hora? Ao final do texto, madama, ao final do texto. Restart.
Mostra-me, então, tua cama, como
eu dizia, e dir-te-ei quem és. Sim, isso mesmo. Refiro-me à cama em que dormes
e da qual ergues teu ser completo, corpo e alma, todas as manhãs, para tomar
posição e enfrentar a batalha da vida, da tua própria vida, dia após dia, na
tecelagem da biografia que te coube erigir e pela qual respondes, dos mínimos
atos aos mais sublimes. E entre os tais mínimos, és responsável pelo estado em
que deixas toda a manhã o leito que te abrigou ao longo das horas noturnas,
embalando teu repouso, acalentando teus sonhos, absorvendo teus pesadelos, abafando
teus roncos (sim, eu sei madama, a senhora, não, a senhora, não), escutando
tuas reflexões, amparando teus desesperos, dando-te o aconchego necessário para
que recuperes tuas energias e preenchas de novo os cântaros de coragem, ânimo e
força de que tanto necessitas para dela erguer-te e seres tu mais uma vez. É,
sim, dela que falo, e de como a tratas.
Porque há quem diga, e daí o
dito que disse eu no iniciar dos dois anteriores parágrafos, né, madama, caso
não houvesse interrupções, pois há quem diga (sim, eu vi, agora eu mesmo
interrompi a mim mesmo, desculpa), há quem diga, arre, agora me perdi. Acontece,
até com mundanos cronistas. Ah, lembrei. Há quem diga, pois, que é possível
avaliar o caráter de alguém se julgarmos a forma como esse alguém deixa sua
cama ao dela levantar, todas as manhãs. Sim, porque arrumar o próprio leito
pode se configurar em um ritual simbólico de demonstração de carinho próprio,
denotando que uma cama arrumadinha, o lençol estendido, o travesseiro afofado
em seu cantinho, são evidências da organização e da determinação que existem
latentes dentro de você para superar os desafios que se enfileiram à sua espera
a partir da porta do quarto. Já uma cama esculhambada...
Que é, madama? A senhora tem
quem arrume para a senhora? Ah, bem, sim, tem disso, mas tudo bem, ok, a
questão é que estará arrumada assim que dela elevares teu corpinho. Eu só
estava falando de símbolos. Nem todos servem para todos. No fim, enfronhei-me
onde não devia...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de fevereiro de 2016)
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