A noite havia se debruçado sobre
a vizinhança não fazia muito. O crepúsculo já se despedira, o entardecer
recolhera para dentro das casas as famílias que agora jantavam assistindo
juntas ao Jornal Nacional. Naqueles idos dos anos 1980, o famoso noticiário televisivo
ia ao ar mais cedo, antecipando a novela das oito que, de fato, começava às
oito. Lembro que era calor. As janelas e portas da casa na Rua dos Viajantes,
lá na minha Ijuí natal, escancaravam-se no convite insistente à brisa que teimava
em não cruzar por aquelas bandas. Ouviam-se grilos e cigarras lá fora. Nos
quartos escuros zumbiam mosquitos. Nada refrescava.
Eu, adolescente, após o jantar,
já me recolhera a meu quarto a fim de fazer a lição de casa ou (mais
provavelmente) ler um livro ou datilografar uma carta a algum correspondente
entre os muitos que mantinha Brasil afora. Era noite e estava quente. De
repente, movimentação na sala de estar. Fui ver o que havia e deparei com a cena
inesperada: minha mãe sentada no sofá acalentando, no colo, o garotinho de
cinco anos de idade, filho da vizinha do outro lado da esquina. Ele chorava. Havia
desespero em seu choro. Fugira de casa. Por algum motivo, fora repreendido
pelos pais e, sentindo-se injustiçado, decidira tomar a corajosa decisão de abandonar
o lar, em represália. Mesmo assim, fugiu para não muito longe e encontrou porto
seguro nos braços de minha mãe, que lhe acolheu o choro e a mágoa. Após
conseguir acalmar o pequeno fujão, minha mãe tratou de avisar por telefone aos
vizinhos que o garoto se encontrava ali em casa, seguro, e em breve retornaria.
Foi o que se deu, pouco depois.
A birra passou e ele retornou, resignado, lágrimas engolidas, à própria casa
atravessando a rua, sob os olhares zelosos de minha mãe. Chamava-se Lucas. Deve
ser (claro que é) um homem crescido, hoje, o Lucas, a quem não vi mais desde
que fui-me de Ijuí a enfrentar o mundo. Um enfrentamento que nos exige coragem
todos os dias de nossas vidas, desde muito cedo, como no episódio da fuga de
Lucas, que, naquela noite, protagonizou uma lição de proatividade com risco
calculado. Fugiu, sim, deu seu recado externo e interno, mas logo depois entendeu
a importância de recuar e atravessar de volta a rua, aos braços do aconchego de
seu lar. Saber agir, saber recuar... Lições de casa não se restringem às folhas
dos livros escolares. O pulsar da vida preenche páginas e páginas delas a quem
as souber decifrar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de fevereiro de 2016)
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