Quando eu era criança,
acreditava piamente que meu avô materno era uma espécie de super-herói,
invulnerável e imbatível. Eu escutava as histórias que ele contava e o
enquadrava como um ser especial entre os personagens do mundo que aos poucos ia
se abrindo aos meus olhos. Nesse aspecto, eu estava coberto de razão.
Certa feita, na fazenda que ele
tinha no interior de São Borja, passou a manhã inteira serrando toras de
madeira com a motosserra e só parou quando minha avó, por volta de onze horas,
pediu que ele matasse um pato para ser transformado em almoço. Apressado,
resolveu fazer o serviço utilizando um revólver calibre 22 (tenente reformado do
exército, possui licença especial para porte de armas). Escolheu aquele
aparentemente mais saboroso e fez a mira. Porém, as mãos tremiam devido ao
esforço contínuo com a motosserra, e decidiu apoiar os braços na forquilha de
uma árvore, envolvendo a arma com as duas mãos.
Refez a mira no pato e puxou o gatilho. O som
do disparo, no entanto, foi “plé” ao invés do esperado “bang”. E o pato, ao
invés de cair estatelado, fez “quá” de susto e seguiu andando. No dedo esquerdo
de meu avô, todo ensanguentado, alojara-se a bala. Sem querer, envolvera o cano
da arma com os dedos da mão esquerda e acabara desferindo um tiro no próprio indicador.
Entrou em casa apressado, sob os questionamentos de minha avó: “Cadê o pato?”.
E respondeu: “Um deles está lá fora, o outro, aqui dentro”. Sem se abalar,
pegou um facão, arrancou o projétil fora, passou alguma coisa no dedo (Merthiolate,
Cobrina, Frixal?), tomou um gole de algo (Olina, Underberg?) e foi dormir “que
amanhã estaria bom”. A mesma frase e o mesmo método eu sei que ele usou outra
feita, quando tirava mel das caixas de abelhas e foi atacado pelos insetos,
levando diversas ferroadas. “Vou dormir que amanhã estarei bom”, dizia.
Seguindo esse mantra, de alguma
forma, completará 90 anos de vida no início da semana que vem. Não recomendo
seguir à risca suas atitudes em casos como esses. Essa gente nascida há quase
um século era fabricada em moldes menos frágeis e delicados do que os nossos
atuais. Mas também vinham imbuídos de uma maneira menos complicada de se relacionar
com a vida. Essa, sim, é a parte que deveríamos aprender a seguir com mais
atenção.
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