quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O bisbilhoteiro impune

Preciso reconhecer e aceitar: sou um bisbilhoteiro irremediável. Dizem que o primeiro passo, certeiro e seguro, para a cura de nossos defeitos, é reconhecê-los e aceitá-los, para, em posse disso, proceder à transformação de seu eu em algo melhor, superior, mais evoluído e limpinho. Pois esse meu eu precisa urgentemente de uma lavagem completa, por dentro e por fora, incluindo motor e passagem de cera nas rodas, e nada daquela meia-boca de lavagem expressa ou mangueirinha.
É que sou um bisbilhoteiro da vida alheia e, se minhas avós estivessem vivas, ralhariam comigo dizendo que eu precisaria tomar jeito. Pensando aqui e agora sobre isso, concluo que esse traço torto de minha personalidade veio instalado em mim desde os primórdios de minha existência. Sim, porque, quando eu era criança pequena lá em Ijuí, com uma altura que já colocava meus olhos ao nível das mesas, eu tinha paixão por circular solto por entre os corredores dos restaurantes, terminada a minha refeição repleta de nacos de polenta frita, para espionar o que estavam comendo os demais clientes do estabelecimento. Devorado o sagu, saía a perambular minha cabecinha de cabelos brancos até estacionar o par de óculos pretos – que eu já portava aos sete anos de idade – junto com o queixo sobre as mesas dos outros para ver o que andavam saboreando e depois fazer relatos detalhados aos meus pais e à minha irmã.
Alguma tia mais condescendente diria que na verdade aquilo não passava de um encantador indício da alma habitada desde pequeno pelo repórter que eu viria a ser um dia, ou do escritor e cronista, afeito a prestar atenção nos detalhes e reportá-los com precisão aos demais. Mas eu acho que tudo isso não passa de bisbilhotice mesmo. Coisa de xereta profissional. Se não, por que é que então agora, na adultice, não consigo resistir à tentação de ficar especulando as mercadorias que as pessoas colocam em seus carrinhos nos supermercados, brincando mentalmente de enquadrar a vida de cada um a partir daquilo que consome?

“Hum, um velhote fazendo estoque de fraldas... certamente é um avô atencioso... Opa, essa moça pegou dezenas de iogurte; deve ser para os filhos, ou é uma gulosa mesmo. Pega menos refrigerante, cara, olha só essa sua barriga...” E assim vou pelos corredores dos supermercados, conduzindo impunemente meu carrinho e minha bisbilhotice, até que um dia algo me contenha.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de fevereiro de 2014)

Um comentário:

Rafaela disse...

Se algum dia desistir do jornalismo, pode se tornar personal shopper, vai saber ajudar as pessoas as tomarem decisões na hora de fazer as compras.
Bj