Preciso reconhecer e aceitar:
sou um bisbilhoteiro irremediável. Dizem que o primeiro passo, certeiro e
seguro, para a cura de nossos defeitos, é reconhecê-los e aceitá-los, para, em
posse disso, proceder à transformação de seu eu em algo melhor, superior, mais
evoluído e limpinho. Pois esse meu eu precisa urgentemente de uma lavagem
completa, por dentro e por fora, incluindo motor e passagem de cera nas rodas,
e nada daquela meia-boca de lavagem expressa ou mangueirinha.
É que sou um bisbilhoteiro da
vida alheia e, se minhas avós estivessem vivas, ralhariam comigo dizendo que eu
precisaria tomar jeito. Pensando aqui e agora sobre isso, concluo que esse
traço torto de minha personalidade veio instalado em mim desde os primórdios de
minha existência. Sim, porque, quando eu era criança pequena lá em Ijuí, com
uma altura que já colocava meus olhos ao nível das mesas, eu tinha paixão por
circular solto por entre os corredores dos restaurantes, terminada a minha
refeição repleta de nacos de polenta frita, para espionar o que estavam comendo
os demais clientes do estabelecimento. Devorado o sagu, saía a perambular minha
cabecinha de cabelos brancos até estacionar o par de óculos pretos – que eu já
portava aos sete anos de idade – junto com o queixo sobre as mesas dos outros
para ver o que andavam saboreando e depois fazer relatos detalhados aos meus
pais e à minha irmã.
Alguma tia mais condescendente
diria que na verdade aquilo não passava de um encantador indício da alma
habitada desde pequeno pelo repórter que eu viria a ser um dia, ou do escritor
e cronista, afeito a prestar atenção nos detalhes e reportá-los com precisão
aos demais. Mas eu acho que tudo isso não passa de bisbilhotice mesmo. Coisa de
xereta profissional. Se não, por que é que então agora, na adultice, não
consigo resistir à tentação de ficar especulando as mercadorias que as pessoas
colocam em seus carrinhos nos supermercados, brincando mentalmente de enquadrar
a vida de cada um a partir daquilo que consome?
“Hum, um velhote fazendo estoque
de fraldas... certamente é um avô atencioso... Opa, essa moça pegou dezenas de
iogurte; deve ser para os filhos, ou é uma gulosa mesmo. Pega menos
refrigerante, cara, olha só essa sua barriga...” E assim vou pelos corredores
dos supermercados, conduzindo impunemente meu carrinho e minha bisbilhotice,
até que um dia algo me contenha.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de fevereiro de 2014)
Um comentário:
Se algum dia desistir do jornalismo, pode se tornar personal shopper, vai saber ajudar as pessoas as tomarem decisões na hora de fazer as compras.
Bj
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