Aquele velho par de chinelos de
lã esgarçado pelo tempo e pelos dedões do pé, cuja ponta já começa a ficar
ralinha, prenúncio de furo a rebentar logo, logo. Aquele blusão de dez anos
atrás, que já passeou pelos agitos da noite, cujo uso agora ficou restrito aos
domínios da casa, ou melhor, do quarto de dormir, transformado no mais
confortável e aconchegante pijama do planeta. Aquela xícara que veio nem
sabemos de onde, mas que compõe a mesa do café da manhã todo o santo dia há
anos, mesmo com a lasquinha na borda decorrente de uma lavada estabanada de
louça, e na qual o sabor do café com leite fica inigualável. O que essas peças
têm em comum?
Primeiro, que, se depender de
nossa vontade, são objetos que jamais irão para o descarte. As campanhas
sazonais de doações de roupas receberão, sim, aquela calça de dois anos atrás,
o casaco em ótimo estado que sai do guarda-roupas por uma questão de espaço, o
par de sapatos que ainda reluz como novo, sim. Esses a gente doa adiante sem
sofrer a dor da separação. Mas o chinelinho
aquele de quase-furo, que envolve nosso pé por já ter se transformado em uma
cápsula anatômica perfeita, totalmente personalizada (ou seria pé-sonalizada?),
esse não sai de casa nem que a vaca tussa, e ainda assim, se tossir a vaca, tem
aqui um xaropinho de ervas verdes que minha sogra faz que é milagroso e posso
ceder uma colher ao bicho, caso queira limpar a garganta.
Segundo, são objetos de
estimação que, de alguma forma (ajudem-me, psicólogas), produzem uma
representação material, táctil e visual do conchego interno que buscamos nas
pequenas coisas do cotidiano para simbolizar a segurança psíquica de que
precisamos para enfrentar os desafios do dia a dia (acertei na percepção ou
bati na trave?). O chinelo furado, o blusão esgarçado e a xícara lascada são
bengalas psicológicas que nos permitem uma conexão com a sensação infantil de
aconchego materno perdida com o processo de adultização a que somos submetidos pelo
andar das horas.
Podemos deixar para trás o peito
materno, os ursinhos de pelúcia e as espinhas. Mas aquela xícara lascada segue
ali, firme, em mais um café da manhã.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de setembro de 2014)
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