quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Não foi por medo de avião

Tenho como verdade (devo ter lido em algum lugar) o fato de que o escritor colombiano Gabriel García Márquez não gostava de viajar de avião. Fico imaginando o grau de superação pessoal a que ele se submeteu para vencer a fobia e atravessar o Oceano Atlântico em 1982 para receber o Nobel de Literatura, na Suécia, ou para fazer visitas regulares a seu velho amigo Fidel Castro, em Cuba.
Tenho também para mim (li em lugar outro) que o igualmente famoso escritor brasileiro Jorge Amado compartilhava com o colega colombiano o mesmo temor de aeroplanos, e radicalmente só se locomovia por terra. Eu, nessa minha notória insignificância, não preciso temer voar até a Suécia em busca de prêmio literário e tampouco privo da amizade de El Comandante. Porém, congelo de medo de aviões igual a García Márquez e a Jorge Amado. Ao menos nisso, igual a eles.
Mas ao contrário do que se possa pensar, eu não temo voar de aviões; eu tenho medo mesmo é de cair com eles. Os aeroplanos pertencem à categoria rara das certezas absolutas que podemos ter na existência: primeiro, a certeza de que morreremos; segundo, a de que todo avião que decola retorna ao solo – de uma ou de outra maneira. Sempre que recebo a bandeja com comidinha distribuída pelas sorridentes aeromoças, saboreio cada garfada da refeição com gosto de plástico como o ritual de um apenado em seus derradeiros momentos no corredor da morte. E fico de olho no semblante delas, das aeromoças. Não porque sejam belas e charmosas (quase sempre são, eu sei, eu sei), mas porque tento identificar no rosto delas qualquer alteração súbita que indique o fato de que tudo vai mal e vamos nos esborrachar lá embaixo apesar de os assentos serem flutuantes.

Mas, diferentemente de García Márquez e de Jorge Amado, eu não me esquivo de voar, sempre que necessário. Tremo de medo da decolagem ao pouso; devoro o que aterrissa em minha bandeja; leio e releio as instruções do saco de vômito; lanço olhares desconsolados às gélidas aeromoças e rezo para todos os deuses em que não creio na hora de voltar ao solo. Mas não tem problema: vou até a Suécia se um dia isso for necessário. Ou até Cuba brindar um rum com Fidel, se ele me convidar. Não seria por isso...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de fevereiro de 2015)

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