Ontem de manhã, depois de
despertar de sonhos conturbados, vi-me em minha cama metamorfoseado numa massa
humana informe que demorou vários segundos para se recompor e conseguir, enfim,
encarar o mundo em uma nova semana de trabalho. Sempre que sou acordado de
forma antinatural, por um despertador ou algum barulho e/ou movimento externo
inesperado, demoro um tempo para redescobrir quem sou eu, onde estou, como me
chamo, o que devo fazer, esses elementos todos que, quando reunidos e
apreendidos, resultam na consciência que temos sobre nós mesmos, ou seja, nossa
identidade.
Durante esses infindáveis
segundos após os despertares traumáticos, vejo-me mergulhado em um
extraordinário limbo de consciência no qual não sou nada, não pertenço a nada,
não significo nada. Sou um sem-nome, um sem-ser, uma não-pessoa, um não-nada,
um nada-tudo sem individualidade. Uma situação bem kafkiana, poderiam dizer o
senhor e a senhora que me leem, e estariam cobertos de razão. Durante alguns
segundos, vejo-me entranhado em uma teia moldada pela mesma essência da
angústia estupefaciente típica que permeia todos os livros escritos por Franz
Kafka (1883-1924).
E não é para menos. Depois que
me recomponho e redescubro que uma de minhas primeiras obrigações do dia é
escrever a crônica do jornal Pioneiro, retomo a vida e sigo em frente. E no
processo incessante de busca por um tema que possa magnetizar a atenção do
leitor, detectei que, neste ano, celebra-se o centenário da primeira edição da
obra “A Metamorfose”, lançada na Europa em 1915.
O livro é um dos mais lidos e
celebrados do escritor, comumente resumido como enfocando o drama do personagem
Gregor Samsa que, certo dia, ao acordar, vê-se transformado em um inseto
gigantesco (a maioria dos leitores o imagina na forma de uma barata, mas eu,
sabe-se lá por quais derrapadas da psiquê, vejo Samsa em sua cama como um
imenso louva-a-deus). Há cem anos, portanto, Kafka nos legou, com sua obra, a
alegoria perfeita para o estranhamento que temos frente a nós mesmos ao longo
das transformações que a vida nos exige. O que fazer com essas transformações é
o desafio que se impõe ao Gregor Samsa que habita cada um de nós.
)Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de janeiro de 2015)
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