Ah, que pena! Choveu tanto, mas
tanto ultimamente, que os buracos não só invadiram e se acharam no direito de
tomar posse das ruas, avenidas e perimetrais asfaltadas de toda a cidade, como
também tiveram tempo para contaminar o calçamento de paralelepípedos que
atapeta a rua defronte ao prédio em que moro. Daqui de cima, pela janela do
escritório caseiro (“home-office”, como sugere meu contador que eu denomine a
peça, para conferir-lhe mais elegância), detecto uma das pedras levantada pela
força das águas, abrindo assim espaço para o acomodamento de um indesejável
buraco bem no meio da rua. Que droga!
A rua de paralelepípedos
relativamente recém colocados, há pouco mais de um ano, ainda conservava a
pureza da simetria de suas linhas, os paralelepípedos paralelamente emparelhados
lado a lado, linha por linha, subindo em formação certeira desde a esquina de
baixo da rua até os cem metros acima, como um exército de soldadinhos de basalto
marchando em formação rumo à meta, na verdade um destino inalcançável decorrente
de um exército imóvel cuja função é justamente proporcionar o bom curso da
mobilidade dos outros sobre o escudo seguro advindo do laço firme entre cada
pedrinha. Porém, no meio do caminho surgiu um buraco, uma imperfeição a destoar
da uniformidade visual obtida pela simetria só possível de ser atingida a
partir da formação dos paralelepípedos simetricamente acotovelados entre si.
O buraco é a nota desafinada na
sinfonia dos paralelepípedos; é a célula danosa a comprometer a saúde do tecido
paralelepipedal; é o ácaro a contaminar o tapete basáltico dos paralelepípedos;
é a laranja podre no meio do cesto de paralelepípedos maduros e frescos; é o
erro tipográfico que mancha a página até então imaculada da poesia
paralelepípeda, na qual cada pedrinha faz as vezes de uma letra e cinco ou seis
delas compõem um verso. Eu achava, até então, que era impossível extrair poesia
de pedras de basalto e que paralelepípedos só haviam auxiliado a compor beleza
estética uma única vez na vida, e em inglês, quando “cobblestones” foi usada
por Paul Simon em um dos versos de sua genial canção “Sound of silence”.
Que nada! O ataque do buraco
abriu meus olhos para a poesia dos paralelepípedos que atapetam parte da visão
diária que tenho de minha janela. Paralelepípedos e buracos... De fato, a
poesia mora nos olhos de quem a quer ver...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de julho de 2015)
Nenhum comentário:
Postar um comentário