Poxa, mas assim fica difícil! Se
nem eu me ajudo, quem vai poder me ajudar? Essa conta aqui tinha de ter sido
paga ontem, dia 23. Como fui esquecer? Estava na agenda, direitinho, o
compromisso devidamente lançado. E esqueci. Como pude? O que explica? Por onde
andou minha cabeça ontem o dia todo, que não efetuei o pagamento dessa conta,
que religiosamente vence todo o dia 23, há tantos anos? Bom, agora não adianta
ficar chorando sobre o suco de uva derramado. É preciso sair de casa e ir até
uma agência ou posto bancário para quitar a pendência, porque essa conta aqui
só oferece essa alternativa. Fazer o quê?
Levanto-me da cadeira e, pela
janela do escritório de casa (“home-office”, meu contador cansa de me alertar:
“home-office”, bem mais chique), meu olhar atribulado recai sobre o gato preto
que refestela o couro sobre o telhado de zinco da garagem do vizinho. Uma
réstia de sol surgiu por entre as nuvens de sempre e ele, rápido como o gato
que é, não perdeu tempo e está ali, esquentando o corpo espichado ao largo, que
de burro não tem é nada. “Gato que brincas na rua”... Não era assim que o poeta
iniciava o poema? “Gato que”... Bom, bom, vamos lá, há uma conta atrasada a
pagar e a rotina de trabalho do dia acaba de ser alterada, não é hora de olhar
gatos e pensar em poemas. Chave do carro? Aqui. Documentos? Aqui. A maldita
conta? Aqui. Vamos lá.
Vou num pé e não volto noutro,
por causa do trânsito de início da tarde. Engarrafa aqui. Engarrafa ali.
Acidente na sinaleira obriga a desviar quatro quadras longe do destino. Achar
lugar para estacionar... Onde? Onde? Ali não dá... Ali não... Ah, enfim, aqui.
Entro na agência, fila quilométrica, como era de se esperar. O celular toca, as
demandas começam a se atropelar. Mas não há problema que não tenha solução.
Chega a minha vez, pago a conta, retorno para casa, adentro o escri... o
home-office e, de novo, o olhar atravessa a janela direto ao gato. Ainda preto,
ainda refestelado ao sol, só que, agora, mudou de lado. Como era mesmo o poema
pessoano? Ah: “Gato que brincas na rua/ Como se fosse na cama,/ Invejo a sorte
que é tua/ Porque nem sorte se chama”.
Sim, apesar de tudo, de toda a
atribulação diária e de não podermos ser gatos ao sol na rua, pelo menos temos
a sorte de poder recordar poesias. Verdade: temos mesmo é sorte.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de setembro de 2015)
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