Ela dorme. Gosto de observá-la
dormir. Renova-se em mim um profundo sentimento de ternura sempre que a vejo
adormecida ao meu lado. Talvez seja devido à frágil exposição a que a pessoa se
coloca quando admite entregar-se ao sono ao lado de alguém, explicitando a
extrema confiança que deposita nesse alguém. Faz-se necessário, então, ser
merecedor dessa extrema confiança. Sinto-me merecedor e sigo observando-a.
Detenho-me a apreciar seus
traços quando adormecida. Uma suavidade angelical parece apossar-se de suas
feições nesses longos e profundos momentos, como se sua verdadeira essência
viesse à tona e ficasse exposta, em toda a sua candura. Os lábios entreabertos,
as pálpebras cerradas, a linha das sobrancelhas descansadas, os cabelos
espalhando-se displicentes por toda a área do travesseiro. É bonito de ver. O
que será que sonha? Passeia por mundos coloridos e fantásticos, desses
existentes somente no mais profundo dos abismos do subconsciente? Quem os
habita? A quem ela encontra quando flutua por esses oníricos domínios? O que
faz? O que pensa? Quais as angústias e insatisfações que vê compensadas e
equilibradas a partir dos enredos aparentemente insanos, aos quais agora se
entrega, conduzida pelo secreto roteirista de seus sonhos? Navega por um mar amarelo?
Enfrenta leões de seis cabeças destemidamente? É engolida por um girassol
gigante? Cai em um abismo e não consegue gritar por socorro?
Acho que sim, porque, agora, resmunga
algo incompreensível e vira-se para o outro lado, como que adivinhando meu
observar a seu lado. Mas segue dormindo. Lembro que eu nutria o mesmo fascínio
silencioso pelas intermináveis horas de sono às quais se entregava
diuturnamente Bioy, o gato que me deu a honra de habitar meu lar ao longo de
sete felizes anos, algum tempo atrás. Imagino que também sonhava sonhos -
sonhos de gato -, uma vez que resmungava e se espreguiçava dormindo no meu
colo. Se subia no meu colo para ali adormecer, é porque também confiava. Eu
encarava isso como o maior dos elogios e das honrarias, afinal, ser digno da
confiança de um gato não é para qualquer um.
Dias atrás transportei de carro
meu afilhado de quase quatro anos de idade de um lado ao outro da cidade e ele
adormeceu na cadeirinha instalada no banco traseiro. Acredito que confie na
direção do dindo. Fiquei, de novo, lisonjeado. Fora isso, só torço para nunca causar
sono no leitor. Aí sim, desconfiarei da confiança...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de janeiro de 2016)
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