Um doce e gélido espírito
infantil nos invade quando acontece essa coisa de nevar. As pessoas saem às
ruas com sorrisos largos a tomar-lhes a área dos rostos e lançam-se para fora
do aconchego das casas sem dar bola ao frio de encarangar pinguim que rola na
rua. Tudo para ver a neve, curtir a neve, produzir bolas de neve e jogar na
namorada para vê-la dar gritinhos, fazer fotos para compartilhar com os amigos
nordestinos pela rede social (eles lá, de calção e chinelo de dedo, morrendo de
inveja de nós aqui, embalsamados em casacos e mantas), moldar desajeitados
bonecos de neve com as crianças e fazer de conta que se está em Aspen.
Um espesso cobertor branco
pairou ontem por sobre toda a cidade ao raiar do dia nessa nossa Caxias do Sul
que, este ano, vem penando um inverno rigoroso como aqueles de nossa saudosa
infância (nessas horas é que nos certificamos de que “saudosa” mesmo era a infância,
mas não o rigor do inverno). Já de manhã cedinho a rua é invadida por vizinhos
que desentocam para brincar e fotografar a paisagem de cartão postal europeu
que se descortina no jardim de suas próprias casas. “Que belo presente”, me diz
um desconhecido passante, em meio a um sorriso que mal aparece, ensanduichado
entre a gola alta do blusão e as abas da touca a cobrir-lhe as orelhas.
Mais adiante, esquina abaixo, um
automóvel para no meio-fio e despeja uma família completa que salta a construir
bonecos de neve. Os dois que eu tentara fazer ainda na noite anterior, quando a
nevasca se iniciara, jazem semimortos ao lado da cerca, meio derretidos,
pendendo ambos para o mesmo lado. Coitados. Confesso que desde a origem eles
pouco lembravam o formato clássico dos típicos bonecos de neve norte-americanos
que vemos nos filmes, dada a minha incompetência (ou inexperiência) em
produzi-los, haja vista a rara frequência de nevascas desse porte por aqui.
Estavam mais era para anões estropiados de jardim e, se eu tivesse levado a
cabo a intenção de construir sete deles, teria feito uma foto em meio à turma e
postado na internet como “Marcos Frionando, o Branco de Neve e seus Sete
Anões”, mas fui demovido da ideia por um providencial chamado para dentro
porque eu iria acabar “pegando uma gripe daquelas”.
Essas neves decenais nos aliviam
momentaneamente os espíritos e descongelam a criança que, quando queremos,
ainda guardamos escondidinha nos freezer de nossas almas. Devia nevar mais por
essas plagas...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de agosto de 2013)
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