“Tó, a janta hoje é apenas
isso”, disse eu noite dessas, arremessando ao pratinho da esposa recém chegada
do trabalho uma das duas unidades de sardinha que eu encontrara no interior da
latinha que acabava de abrir. Eu estava exausto ao final daquele dia, o corpo
moído, a mente esgotada, a alma flácida, o ânimo zerado. Em condições assim,
sei por experiência própria, deve-se evitar botar-se a cozinhar. Corre-se o
risco de o risoto sair murcho, os medalhões resultarem empedrados, a sopa
mostrar-se turva, o caldo entornar, a lentilha flambar e a fome ficar crônica.
Sob essas condições anormais de
temperatura e pressão, o melhor mesmo é partir para os enlatados, que oferecem
solução rápida e fácil para uma demanda que, a bem da verdade, é básica e
simples: saciar a fome. Minha esposa fitou desolada o magro pratinho adornado
com aquela fatia gorducha e decapitada de peixinho em conserva e não falou
nada, enquanto eu sentenciava: “Cada um faz como quer”. Virei as costas e
pus-me a esmagar minha sardinha com o garfo, misturando na piscosa papa duas
generosas colheradas de maionese e não demorei mais do que um minuto e meio
para, sentado no sofá defronte à tevê, resolver aquilo tudo assistindo a um
capítulo de “Saramandaia”.
A esposa, no entanto, seguia na
cozinha, de onde me chegavam barulhos. “Mas que diabos está fazendo?”, pensei,
lambendo o garfo ensardinhado. Logo surgiu ela, empunhando no prato um vistoso
sanduíche, dentro do qual a antes solitária sardinha refestelava-se em meio a
folhas de rúcula, pedacinhos de queijo gran padano picados, uma fatia de
tomate, folhinhas decorativas de salsa, listras de catchup e mostarda, tudo
aquilo prensado na sanduicheira, o que fazia exalar aquele aroma quentinho típico
das gostosuras que estão prestes a nos acarinhar o estômago vazio.
Minha boca encheu-se de água,
para a alegria do último naco de sardinha que nela ainda flanava. Acostumada
aos meus manjares diários de final de jornada, minha esposa não sucumbiu à
minha desinspiração culinária frente ao cansaço daquela noite e produziu para
ela uma atração culinária decorrente da criatividade. “Cada um faz como quer”,
disse ela, usando a boca para fazer três coisas ao mesmo tempo (habilidade
tipicamente feminina): falar, dar a primeira mordida e abrir um risinho
irônico.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro" em 9 de agosto de 2013)
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