O escritor francês Marcel Proust
(1871-1922), no sétimo e último volume de sua saga psicológica “Em Busca do
Tempo Perdido”, reflete em determinada altura a respeito das consequências
nefastas que a Primeira Guerra Mundial exercia sobre os espíritos dos cidadãos
de sua época. Espantava-se o personagem principal (na verdade, o alter-ego do
próprio autor) com o fato de homens gentis, inteligentes, sensíveis e bem
educados, que ele havia anteriormente conhecido nos salões requintados da
sociedade parisiense, envolverem-se, no front, em assassinatos em massa, violências
e atrocidades em geral.
De certa forma, Proust
antecipava em suas páginas toda uma linha de debates e reflexões éticas e
filosóficas que se imporiam décadas mais tarde ao findar da Segunda Guerra
Mundial, que suplantou a Primeira na capacidade de incentivar a humanidade a
produzir horrores. A filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) foi uma das pensadoras
que se debruçou sobre a questão, cunhando o termo “banalidade do mal” para designar
o fenômeno que move pessoas corretas no dia-a-dia a se transformarem em
verdadeiros monstros quando as condições sociais assim o permitem e/ou
estimulam.
O fato é que nós, seres humanos,
nutrimos uma forte tendência a nos deixarmos moldar pelo meio que nos envolve,
aproveitando as situações de conflito e de falência das regras sociais para
largarmo-nos alegremente à satisfação de nossos piores instintos, à fruição de
toda a baixeza e vilania que parece insistir em permanecer à espreita de nossas
índoles, por mais que aparentemente evoluamos em termos tecnológicos,
científicos e filosóficos. Cidadãos do século 21 que somos, imaginamo-nos muito
distantes e superiores aos nossos antepassados que queimavam feiticeiras em
praça pública e exibiam o medonho espetáculo às suas crianças, ou aos senhores
e senhoras de bem que adquiriam, mantinham e açoitavam escravos como sendo a
coisa mais natural (e legal) do mundo (como de fato era, naquela época).
Trata-se, no entanto, de uma
perniciosa ilusão. Seguimos sendo, individualmente (e coletivamente), seres com
capacidade latente para agir de forma tão bárbara quanto os hunos, os godos, os
nazistas e os conquistadores espanhóis. Basta que a oportunidade nos seja
oferecida de bandeja. Tem sido difícil ultimamente fazer casar o termo “era
civilizada” com os dias que estamos vivendo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de agosto de 2013)
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