terça-feira, 29 de julho de 2014

Ação temerária

Pisar em terreno desconhecido sempre é uma atitude temerária. Por mais destemida que a criatura seja, sempre haverá o risco de o sujeito dar-se mal devido à falta das informações que lhe seriam cruciais para o bom termo da empreitada. Isso é um fato.
O terreno desconhecido em que temerariamente adentrei dia desses foi a penteadeira de minha esposa, aquele movelzinho delicado e simpático que habita nosso quarto e que representa um domínio até então incólume às manifestações de minha presença. Deu-se que, em um final de tarde em que minha esposa estava no trabalho e eu em meu home office, precisei aprumar-me às pressas para um compromisso social no centro da cidade e tive de fazê-lo sozinho, sem as importantes intervenções dela no lapidar de meu visual, o que costuma garantir em mim um cabelo penteado, os pelos das orelhas tosquiados, os botões da camisa abotoados cada um em sua casa correspondente, as cores das roupas combinando sem causar traumas coletivos, coisas desse tipo.
Mas eu estava sozinho e tinha de me virar por conta própria. Tudo corria bem até o momento em que, já nos finalmentes, olhei-me com atenção no espelho do banheiro e percebi que a pele de meu rosto, devido à umidade ambiente, havia “explodido” em dermatites já nossas conhecidas. O tubinho com o creme dermatológico havia acabado e, nesses casos, o recurso tradicionalmente empregado é recorrer a uma maquiagem temporária à base de pó-de-arroz. Quem faz as aplicações em mim é, obviamente, minha esmerada e detalhista esposa que, como já vimos, estava em falta naquele dia, àquela hora. Que fazer?
Ora, destemido (ou inconsequente) como sou, resolvi invadir os domínios da penteadeira e efetivar por conta própria a ação maquiadora de imperfeições que, a bem da verdade, não haveria de interpor maiores dificuldades. Sonho meu. Quem disse que um homem do sexo masculino como eu tem capacidade para reconhecer, entre as dezenas de potinhos e tubinhos dos mais variados tipos, exatamente aquele de que estava necessitando? Abre esse, não é. Aquele, também não. Isso me parece esmalte. Aquilo, um miniespanador. Ali, uma caixinha repleta de cores como se fosse uma palheta de aquarelista. E o relógio correndo, insensível.
No desespero, abri um estojinho, taquei na cara um pouco do conteúdo do que quer que fosse e fui-me ao compromisso. Dessa vez, não passei despercebido em meio à multidão e senti que os olhares não desgrudavam de minha pessoa ao longo da noite. Atribuí tudo à crença de que havia aprimorado minha arte de falar em público e também meu magnetismo pessoal, porém, à noite, minha esposa quis saber o que eu andara fazendo com o blush que enfiara na cara, vermelha como um pimentão de feira. Mas é que sou destemido.

                                                                                          
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de julho de 2014) 

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