O passado, bem o sabemos, não
existe. Pelo menos, não existe enquanto objeto ou fato tangível, uma vez que
representa tudo aquilo que já existiu ou aconteceu (sempre no passado,
naturalmente) em um tempo anterior ao presente instante. Viveríamos
aprisionados em um infinito presente se não fôssemos dotados com o poder da
memória, que tem a função de manter o passado presente, ou melhor dizendo,
vívido (para não incorrermos em uma contradição em termos).
O dramaturgo inglês Harold Pinter (1930 – 2008), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2005, resumiu a
questão desse modo: “O passado é aquilo que você lembra, aquilo que você
imagina que lembra, que você se convence de que lembra ou finge lembrar”. Resumindo
ainda mais, o que me parece que Pinter quer dizer é que o passado em si, mesmo
sendo estático e encravado no tempo, é plenamente cambiante e mutável, uma vez
que está à mercê dos sabores de nossa memória, ela sim, fugaz, etérea, fluida,
inconstante, temperamental, inconfiável, volúvel (meu suposto resumo do resumo
ficou imensuravelmente maior do que a tese, perdão).
Com o passar dos anos, acabamos
transformando nossas próprias recordações em “causos” despudoradamente
remodelados a fim de melhor se encaixarem à visão que temos de nós próprios, ou
à imagem que pretendemos vender de nossas pessoas para quem nos cerca. Mas nem
sempre (talvez quase nunca) esse processo se dá de forma consciente e
deliberada.
Eu, por exemplo, até há poucos
dias, estava me mortificando pelo fato de, cerca de 20 anos atrás, quando era
editor do caderno Sete Dias do jornal Pioneiro, ter manuseado uma bela
fotografia antiga da poetisa Vivita Cartier (1893-1919), morta e enterrada em
Criúva, e publicado-a na capa do suplemento para ilustrar uma reportagem sobre
eventos culturais que evocavam a memória de poetas do passado. Na época, não
imaginava que eu mesmo, dali a duas décadas, estaria me escabelando em busca
daquela mesma foto para ilustrar o livro que agora organizo sobre a história da
vida da poetisa. Considerava uma ironia do destino o fato de eu mesmo ter
manipulado a foto que agora me escapa e que tanto busco.
Porém, acabo de descobrir que
não sou culpado de nada. Verificando as datas, percebi que a página do caderno
em questão foi editada dois meses antes de eu chegar em Caxias do Sul para
assumir a editoria do Sete Dias. O eu do passado que editou a foto de Vivita
não existiu, diferentemente do que pensava o eu de hoje, que a procura. Não
somos a mesma pessoa. Minha memória me culpava por algo de que sou totalmente
inocente. Quero ver se as provas são suficientes para que ela me absolva. Isso,
só o futuro dirá.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de julho de 2014)
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