“Durante
um dia inteiro de outono, escuro, sombrio, silencioso, em que as nuvens
pairavam, baixas e opressoras, nos céus, passara eu, a cavalo, sozinho, por uma
região singularmente monótona – e, quando as sombras da noite se estenderam,
finalmente me encontrei diante da melancólica Casa de Usher. Não sei como foi –
mas, ao primeiro olhar lançado à construção, vi se aproximar aos poucos uma
figura que se assemelhava ao meu gato de estimação falecido no ano passado. Um
gato preto se aproximava, e uma sensação estranha de que ele fugia de alguém
que desejava emparedá-lo me acometia o íntimo...”.
Opa, epa, que é isso... Quando me dei por
conta, eu havia pegado no sono no sofá da sala, em plena releitura de alguns
dos contos mais famosos de Edgar Allan Poe, e meus sonhos haviam invadido a
história (ou, pelo inverso, a história lida era quem invadia os domínios de meu
sono). Lancei um olhar para o relógio pregado na parede da cozinha: meia-noite
passada. A hora das bruxas, se eu fosse personagem de Edgar Allan Poe, o que
explicaria o sonho esdrúxulo e bruxuleante. Mas, na verdade, hora de rumar para
a cama, dormir e levantar cedo para trabalhar, uma vez que sou personagem é de
mim mesmo e a vida real é quem me espera.
Tirei
os óculos de leitura (porque agora, nessa fase, a gente passa a usar óculos de
leitura, sabe), cruzei as hastes sobre o elegante volume de capa dura de
“Histórias Extraordinárias”, de Poe, já devidamente repousado sobre o pufe
alaranjado da sala de estar, e dirigi-me para a cama, já meio sonado, um zumbi
a esbarrar em paredes e quadros. Como não poderia deixar de ser, a noite toda sonhei
que lia as páginas do afamado escritor norte-americano, e perambulei por
cantinas repletas de barris de amontillado, sendo perseguido por um gato preto
enorme que desejava emparedar a mim dentro do porão da Casa de Usher antes que
ela caísse, mas na hora “h” eu era salvo por uma dupla de moças chamadas
Berenice e Ligeia, que insistiam em me confundir com William Wilson, o tio
delas que havia desaparecido anos antes ao mergulhar no Maelstrom.
Acordei
suado ao despertar do relógio. Rumei para a sala ao encontro do livro que
estava lendo antes de dormir e o marcador continuava cravado na mesma página em
que o deixara, sem ter se movido uma página sequer adiante. De nada adiantara
minha leitura turbulenta em sonhos durante a madrugada. Teria de encarar
aquelas páginas no mundo desperto de novo, sem outra alternativa. Impossível
delegar ao onírico aquilo que precisamos concretizar no mundo desperto. Afinal,
a vida não é um conto de Edgar Allan Poe.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de julho de 2014)
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