Em
uma cidade afeita às nuances repentinas da instabilidade climática como a
nossa, faz-se imperioso que as pessoas moldem em si mesmas um perfil prevenido.
Eu, por exemplo, valho por dois. Prova disso foi dia desses, semana que passou,
que amanheceu lindo, claro, ensolarado, céu azul despovoado de nuvens, nem
sequer um fiapinho ao longe, os pássaros matinais cantando alegres a saudar o
astro-rei, o cenário todo injetando ânimo nas almas trabalhadoras e estudiosas
que passavam a povoar ruas e calçadas.
Tudo
muito lindo. Mas eu, que valho por dois, farejava algo no ar. “Que foi, amor,
sentindo cheiro de queimado? Será que desliguei o ferro?”. Não, nada disso.
Coisa minha. Terminei de me arrumar e, ainda antes de fechar a porta, o
elevador já chegando, voltei para dentro e passei mão no guarda-chuva. “Para
que isso, amor? O dia está lindo. Não vai chover nada”. Sim, sim, certo. A
questão é que eu valho por dois. E fomos, cada um para seus afazeres.
E
não é que logo depois do meio-dia, pimba, despencou-lhe aquela chuvarança? Aquela
mesma, que eu farejava no ar de manhã cedo, apesar do sol e dos passarinhos
ingênuos. No trajeto entre o restaurante e a livraria-café, na qual eu decidira
tomar o cafezinho pós-refeição, desviava eu garboso meu guarda-chuva dos
desprevenidos passantes que corriam molhando-se por todos os lados, eles, que
levaram fé nas promessas vãs do clima antes de saírem de suas casas. Eu, que
valho por dois, seguia firme, tranquilo e seco, sob o pano protetor de meu
guarda-chuva.
A
cafeteria estava apinhada de gente pingando chuva e pedindo cafés. O
porta-guarda-chuvas da entrada denunciava a imprevidência alheia: vazio.
Estacionei meu objeto ali e adentrei o recinto. Já sentado, assomou-me um
temor. Percebi que a chance de meu guarda-chuva solitário ser afanado por algum
imprevidente na saída era altíssima. Acelerei o sorver de meu cappuccino a fim
de me mandar dali e resguardar a posse de meu precioso patrimônio.
Mas,
para minha surpresa, meu guarda-chuva permanecia lá estacionado e intocado.
Ninguém o roubara. Meus concidadãos haviam respeitado minha previdência. Paguei
e rumei para minha reunião de início da tarde, guarda-chuva em punho mais uma
vez. Cheguei lá sequinho e fui ao trabalho. Duas horas depois, findo o
compromisso, saí para a rua e o sol já voltava a brilhar, naturalmente, depois
de encharcar 500 mil habitantes menos um: eu, que valho por dois. Ao chegar em
casa, minha esposa notou a ausência de meu guarda-chuva. Eu o esquecera no local
da reunião. Logo eu, que valho por dois. Por dois asnos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de maio de 2014)
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