A
delação, a desconfiança mútua e o medo são alguns dos mais hediondos legados
que os regimes totalitários produzem no cotidiano das relações sociais entre as
pessoas comuns obrigadas a viver sob a escuridão dessas ditaduras. Acusar o
vizinho para salvar a própria pele passa a ser a tônica a reger o penoso passar
dos intermináveis dias de subjugação ao terror. Foi assim na Alemanha nazista,
no Brasil da ditadura militar e na Rússia barbarizada pelo regime de Stálin, só
para citar alguns exemplos macro que marcaram o século que recém terminou.
Mas
o horror assume variadas formas e não depende somente do estabelecimento de um
regime ditatorial de governo para se manifestar e barbarizar a vida cotidiana
das pessoas comuns. O horror também pode fincar suas raízes em sociedades cujo
estado de direito faliu por incompetência e má-fé dos responsáveis legais por
sua gestão, fazendo com que a ordem institucional dê lugar ao caos. E quando o
caos passa a imperar, a sensação de que a carroça desgovernou sem freios
ladeira abaixo passa a ser uma triste realidade palpável.
Tenho
a sensação de que estamos, no Brasil, embarcados dentro dessa carroça do caos
social sem freios, ladeira abaixo. Mal começo a conseguir deglutir a tenebrosa
notícia do linchamento escabroso da dona-de-casa em Guarujá, no litoral paulista,
ocorrido há pouco mais de uma semana, por ela ter sido injustamente acusada de
ser uma sequestradora de crianças e praticante de magia negra, e já me pousa no
colo, como uma bomba-relógio pronta a explodir, a notícia de que em Osasco, na
Grande São Paulo, uma manicure de 26 anos foi torturada e morta, acusada de
roubar um saco de biscoitos. Uma mulher acusou a moça de ter furtado os
biscoitos de sua casa e contratou uma dupla de homens para sequestrá-la,
torturá-la e matá-la.
O
trio de acusados foi preso no final de semana. Apesar disso, não foi possível
recuperar o saco de biscoitos. Tampouco será recuperada a vida da manicure,
que, pelo visto, valia menos do que o produto que ela foi acusada de roubar.
Fico aqui a me perguntar, neste início de semana, se ainda é possível recuperar
a humanidade das gentes que nos cercam. E se ao sair de casa hoje alguém
apontar para mim na rua e me acusar de ter roubado um pacote de grôstolis?
Voltarei para casa à noite? Reitero que ando preocupado.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de maio de 2014)
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