Somos criaturas incompreensíveis
e insaciáveis, mesmo. Renegamos aquilo que desejamos a partir do instante em
que o desejo é saciado. Conquistamos benesses que passam a nos parecer estorvos
e depois criamos mecanismos para burlá-las. Ou não sabemos o que queremos, ou
queremos o que não conhecemos, ou desejamos o que não precisamos ou sei lá qual
é a nossa. Somos humanos, alguém aí vai fazer questão de lembrar, e eu vou
responder dizendo que sim, somos, mas o que somos de fato é uns humanos bem
chatinhos.
Reflexões como essas eram as que
eu fazia noite dessas ao chegar em casa após um longo dia de trabalho que me
exigiu praticar caminhadas exaustivas entre um ponto e outro da cidade a fim de
cumprir as metas estipuladas por mim mesmo para aquela data. A meteorologia
estava colaborativa e me proporcionara um dia ensolarado e com temperatura
amena, o que me permitiu caminhar sem correr o risco de me ensopar com chuva ou
com suor, aparecendo penteado, apresentável e sorridente em todos os lugares
previstos.
Cumpridas todas as tarefas, a
jornada se encerrava com o chegar em casa e trocar de roupa para então relaxar
jantando e compartilhando os fatos do dia com a esposa. Sentado à beira da
cama, desfazia os nós dos cadarços e liberava um longo suspiro de prazer ao desarrolhar
para fora dos pés cada um dos sapatos. “Ahh, que prazer iningualável esse o de
tirar os sapatos após um longo dia de trabalho caminhando”, pensava aquela
parte de mim que produz pensamentos-chavões em modo piloto-automático.
Mas logo a outra parte entrou em cena, aquela
que tem como prazer próprio contradizer e questionar os pensamentos-padrões da
parte Polyana, e me induziu a refletir que a humanidade precisou de séculos
pisando em gravetos e espinhos para inventar os primeiros calçados para proteger
os pés na caça aos mamutes ou nas fugas da fome dos tigres-de-bengala (o que
seria da nossa linhagem humana se aquela tigrada não precisasse de bengala,
hein?) e agora, que temos sapatos, ficamos nos achando no direito de pensar que
o prazer reside em tirá-los dos pés, quando deveríamos era imaginar o horror a
que estaríamos submetidos se, sem a invenção dos sapatos, tivéssemos de ir
visitar os clientes tropicando nos paralelepípedos e grudando o calcanhar nos
chicles jogados nas calçadas.
Viram como é difícil saciar um
ser humano? E de quebra, o leitor ainda é brindado com um exemplo prático de
como é complexo filosofar. Especialmente quando há uma pedra dentro do sapato.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de maio de 2014)
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