sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O tio do Argentino

Tenho um amigo de longa data cujo apelido é Argentino, pela nada inspirada razão de ele ser natural da república vizinha. Argentino mora no Brasil há décadas e é protagonista de histórias, no mínimo, nonsense, que, pelo menos, têm o mérito de suprir este cronista com assuntos a serem compartilhados com os leitores. Argentino é nonsense, é verdade, mas começo a constatar que esse traço de sua personalidade decorre de forte influência genética. A aura nonsense é marcante em vários outros membros de sua família, conforme descubro escutando narrativas de Argentino nos cafés que ele frequenta na cidade e nos quais costumo encontrá-lo, lendo, lendo muito.
Argentino anda um pouco aflito, para não dizer estressado, com um tio que o está visitando há alguns dias, vindo diretamente de Posadas, no norte da Argentina, onde mora. O tal tio é um senhor garboso, bem-apessoado, daqueles argentinos típicos que vestem terno de risca-de-giz e gravata da manhã à noite, cabelo engomado, bigodinho fino e flor vermelha na lapela. Só faltaria o bandoneón para encarnar por completo a figura do cantor de tango. Até aí tudo bem. Problema é a relação dele com a tecnologia.
O tal tio é solteiro, mas namorador e adora trocar e-mails com as namoradas que coleciona virtualmente em várias províncias argentinas, em partes do Brasil e localidades do Peru, Colômbia e Guiana Francesa. Como não pode deixar de contatá-las dedicando-lhes diariamente as doses de carinho e galanteios com as quais supre suas paixões diariamente, trouxe junto para cá seu computador de mesa e a enorme torre da CPU. O motivo: não pode ficar longe de seus e-mails. Para isso, carrega para onde quer que vá o computador e a CPU, objetos dentro dos quais, segundo sua compreensão de tecnologia, reside sua conta de e-mail. E vá convencê-lo de que não é assim que a coisa funciona!

Pior foi ontem, quando o tio decidiu ligar seu computador no apartamento que Argentino aluga em um prédio na Avenida Rio Branco. A corrente elétrica em Posadas é 110. Aqui é 220. Foi ligar o aparelho que fez PUF e a fumaça invadiu a sala inteira. Argentino quer minha ajuda para consolar seu tio, que está em estado de choque devido ao fato de imaginar que foram destruídos todos os seus e-mails e, pior, com a falta de contato, perderá as namoradas... E agora?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de fevereiro de 2015)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Diga seu número

Alegando questões de segurança e de garantia de privacidade, a empresa que administra minha conta de e-mail anda dificultando meu acesso à caixa de entrada, solicitando, de quando em vez, que eu atualize informações de meu cadastro. Tento abrir os e-mails e pá: explode na tela do computador uma caixa pedindo que eu insira o número de meu telefone celular, recurso que alegadamente servirá para que eu tenha maior controle sobre o acesso aos meus dados.
Tudo muito lindo, especialmente porque a impressão que passam ao usuário é de que estão oferecendo uma forma de garantir a segurança de seus dados virtuais. Pelo que entendi, eu receberia senhas via mensagem em meu celular, para acessar minha conta em caso de bloqueio. Quem a bloquearia? A própria empresa administradora da conta, pelo que entendi. Para isso, devo fornecer meu número de celular, para que possa receber as senhas. Certo, ok. Tudo segue muito lindo. Só tem uma coisa: e se eu não tiver um aparelho de telefone celular?
Quem disse que eu tenho a obrigação de ter um celular? Onde está a lei que me obriga a ser proprietário de um aparelho desses? Onde está, aliás, a lei que me obriga a ser proprietário do que quer que seja? E se eu for um bicho-do-mato que não quer celular, que não assiste à televisão, que não acompanha o BBB, não escuta axé-music, essas coisas? Não posso ter conta de e-mail se eu não tiver celular? Mundo estranho esse que anda sendo construído...
Mas antes que se espantem demais comigo, vou logo esclarecendo: sim, eu tenho telefone celular, claro que sim. Não sou tão bicho-do-mato assim. E também assisto a (alguns) programas de televisão (o BBB não figurando na lista, saliente-se). Mas ainda pretendo administrar eu mesmo a quem e quando desejo informar o número do meu telefone. Para os familiares, amigos e clientes, obviamente que sim. Para uma estranha empresa administradora de e-mail, não, obrigado. A sociedade que está sendo gestada aí fora está se apossando de nossa privacidade de uma forma que ultrapassa limites que, a meu ver, configuram uma afronta aos direitos humanos.

Quem precisa assistir ao BBB na tevê, se o monitoramento de cada um de nós está se dando ao vivo e a cores na vida real, a cada golfada de ar que respiramos?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de fevereiro de 2015)

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Medalha,medalha

No final das contas, o herói era vilão. Parece até abertura de fábula, de conto de fadas, de História da Carochinha (pronto, entreguei os grisalhos da cabeça agora com essa invocação da Carochinha, mas tudo bem). Mas não, é tudo verdade. Aconteceu nos Estados Unidos, lá, onde tudo pode acontecer.
A polícia da cidade norte-americana de Albina, no estado do Oregon, andou prendendo na semana passada um assaltante de banco chamado Mark Rothwell, de 49 anos. O meliante invadiu uma agência bancária armado e fugiu faceiro, carregando um promissor saco contendo exatos US$ 15.703, o equivalente a R$ 45 mil. O bacana nos Estados Unidos é que os ladrões de banco fazem igualzinho às histórias em quadrinhos dos Irmãos Metralha: saem correndo dos bancos carregando um saco cheio de notas de dinheiro.
Mas, enfim, até esse ponto, nada de mais, afinal, roubam-se bancos a toda hora, lá e cá. A bizarrice começou a surgir quando capturaram o dito assaltante e, ao fazerem-lhe a ficha, descobriram que se tratava do mesmo Mark Rothwell que, cinco anos antes, havia ganhado uma medalha de herói por ter desarmado um outro assaltante que tentava roubar outra agência bancária em Portland, cidade vizinha a Albina. Ou seja: o herói de 2010 se transformou no Irmão Metralha de 2015.
Ao menos, isso é o que parece. Minha teoria (eu sempre tenho uma teoria) é de que o tal Mark Rothwell sempre teve vocação de assaltante e o que aconteceu em 2010 foi que o ladrão que ele desarmou teve o azar de agir mais rápido do que ele na agência que o próprio Mark desejava assaltar. A ação dele ao desarmar o assaltante não foi motivada por heroísmo, mas, sim, por demarcação de território.

A confusão e a pressa em medalhar Rothwell se explicam pela ânsia que as pessoas têm de detectar entre nós a existência de heróis em potencial. Desejamos identificar pessoas que representem e personifiquem as melhores facetas que os seres humanos são capazes de expressar. Que simbolizem nosso lado bom. Sim, porque, de representantes do outro lado, estamos, infelizmente, sempre muito bem servidos. Pena que o Mark Rothwell revelou-se, no fim da história, um sócio do lado ruim. Ao menos, que devolva a medalha, né...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de fevereiro de 2015)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Distância das ostras

Eu cultivo uma implicância não é de hoje e que vai me acompanhar por minha vida toda. Tendo já vivido quase meio século, constitui-se em uma prova de lógica eu afirmar que, sim, essa implicância, se já me é antiga, haverá de naturalmente seguir comigo o restante de meus passos por essa existência. É lógico, e assim haverá de ser.
Eu implico com as ostras. Tirando o fato de que elas produzem pérolas, o que, por si só, poderia endossar o cultivo de uma admiração sem par por esses moluscos marinhos, eu, mesmo assim, implico com elas. Mas para sustentar minha implicância, antes preciso deixar de lado o aspecto da gastronomia, área na qual também reconheço que as ostras desempenham um papel relevante em termos de sabor e nutrientes valiosos. Sim, concordo e assino embaixo. Mas sigo implicando com as ostras apesar das pérolas e dos sabores. E sabem por quê?
Porque as ostras não leem nada. Nunca. Não se informam, não folheiam um jornal, não passam os olhos por uma revista de informação, nunca leram um livro sequer, nem mesmo um Paulo Coelho, um Stephen King. Nada. Nunca. Pô, não dá para conversar com uma ostra. Não sai nada que se possa aproveitar dela (tirante, como já disse, pérolas e sabores). Faça você mesmo a experiência: convide uma ostra para jantar em sua casa. Ela irá, se não desconfiar de que na verdade o convite é para que ela seja jantada, claro. Mas faça isso, convide.
Receba a ostra em sua casa, conduza-a ao sofá da sala e tente entabular uma conversação minimamente interessante com ela. Não vai funcionar, não dá, dali não sai nada. E como poderia, sem ela nunca ter lido um livrinho sequer, sem jamais se informar sobre o mundo que existe além dos recifes nos quais fica a vida inteira agarrada nas profundezas dos mares distantes? Sem condições. As ostras são piores do que os lepidópteros e os platelmintos e só perdem em grau de enfadonhismo (característica de seres enfadonhos) para os paralelepípedos.

Eu já decidi: fora as joalherias e os restaurantes finos, onde a presença das ostras e dos produtos delas oriundos é sempre bem-vinda, quero-as longe do sofá da minha sala. Ali, elas são insossas. Implicância, eu sei, mas cada um com suas manias. 
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de fevereiro de 2015)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Vida insólita

Gente, vocês hão de concordar comigo: a vida é insólita! É ou não é, hein? Bah, mas, sinceramente, é, sim! Não tem como dizer que não é. Porque é. Insólita. Imprevisível, sim, claro, a gente nunca sabe o dia de amanhã. Sequer se estaremos aqui no dia de amanhã. Imprevisível, tá bom, mas isso é o mínimo que a vida é. Estou falando de insolitismo. Ou insolidez, também não sei como se usa o termo que deriva do radical do substantivo “insólito”, porque agora faltou gramática aqui para o escriba e quem mandou ficar secando fascinado a nuca macia e sedosa (eu imaginava que fosse macia e sedosa, ao menos) da Sandra ao invés de prestar atenção nas aulas de Português no Ensino Médio, ainda no tempo em que era Segundo Grau?
Pois é, mas é insólita. Penso nisso enquanto observo daqui da mesa de meu escritório, empenhado em redigir o texto de um longo trabalho para um cliente, enquanto observo (a repetição é necessária devido às longas intercalações que uso na construção desses textos tergiversativos nos quais os leitores se sentem iguais a caçadores perdidos no mato sem cachorro e pelos quais as senhorinhas aquelas do chá me execram e ainda tencionam me passar um merecido corretivo). Fecha parêntesis e onde é que eu estava mesmo? Ah, sim. No escritório, trabalhando e olhando para a porta de entrada do apartamento em que moro. E pensando no insólito da vida. Qual a ligação? Simples: uma colher de pau.
É, uma colher de pau. Tem uma colher de pau cravada na fresta da porta do hall do apartamento. Isso é insólito. Fui eu quem cravou a colher de pau ali, o que é mais insólito ainda. E tenho motivos para isso, pois venta aqui em cima no prédio, o vento encana pelas basculantes do corredor lá fora e vem bater na minha porta, promovendo chacoalhões e um barulho irritante. Por isso, cravo-lhe a colher de pau, a título de providência contra o chacoalhar da porta. Mas a cena é insólita.

A colher de pau da porta eu não uso mais na cozinha. Aposentei-a de suas tarefas originais por razões óbvias (nesse caso, insólito seria continuar usando a colher para mexer o feijão, logo depois de usada na fresta da porta). Mas convenhamos... Insólito, não? Também, que seria da vida sem o sabor do insólito? E não me olhem desse jeito...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de fevereiro de 2015)

domingo, 22 de fevereiro de 2015

E o Oscar vai para...

Ah, que delícia! Este domingo à noite tem transmissão da cerimônia de entrega do Oscar pela televisão! Todo ano tem, e todo ano minha esposa e eu repetimos deliciosamente o mesmo ritual. Basta iniciar-se o ano que já aguardamos com expectativa a chegada da data, devidamente assinalada nos calendários presenteados pelas agências bancárias e nas agendas recebidas de presente a torto e a direito. Sim, não dá para perder, somos fãs de carteirinha!
E não somente da transmissão da cerimônia de entrega do Oscar, não! Os primeiros meses do ano são repletos de eventos premiativos aos quais ela e eu comparecemos via satélite. Somos figurinhas batidas nessas festas todas, sempre do lado de cá da telinha. Somos arroz-de-festa de Oscar, Grammy, Emmy, Globo de Ouro e até mesmo das transmissões dos desfiles das escolas de samba. Primeiro, assistíamos às duas noites de desfiles das escolas do Rio de Janeiro (ela é Beija-Flor, eu sou Salgueiro). Depois, incorporamos as duas noites dos desfiles das escolas de samba de São Paulo (ambos somos Vai-Vai). Agora, também monitoramos, com o controle-remoto, as evoluções das escolas de Porto Alegre e de Caxias do Sul.
Que festa! Mas já somos profissionais nessa coisa de sermos telespectadores dessas transmissões que começam tarde da noite e invadem os madrugadões. Se não precisamos trabalhar no dia seguinte, vamos gelando com antecedência o espumante e/ou a cervejinha e deixamos os quitutes e canapés preparadinhos. Se precisamos saltar cedo da cama para enfrentar a faina diária no dia seguinte, cortamos o espumante e a cervejinha e incrementamos os canapés. E os quitutes também. E vamos lá!

Aliás, tão profissionalizados estamos nessa coisa que agora demos de começar o ritual várias horas antes, sintonizando em canais que transmitem a chegada das celebridades ao local do evento, as tais das transmissões do “tapete vermelho”. Mas o bom mesmo é quando batem as onze da noite e a cerimônia tem início! Ficamos os dois ali, na cama ou no sofá, olhos vidrados, esbugalhados, firmes na telinha durante 30, 35 minutos e... paf! Capotamos! Vamos acordar só no dia seguinte, a tevê dando a previsão do tempo, sem sabermos sequer quem levou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. Sempre! Que festa!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de fevereiro de 2015)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O colecionador de espantos

Como não sou sociólogo, e nem antropólogo, muito menos psicólogo ou historiador, tenho muita dificuldade em entender a razão dos temas sobre os quais reflito. Sendo assim, passo a vida colecionando espantos e assombros, perplexidades e encantamentos a respeito dos assuntos esses sobre os quais reflito, mas não consigo explicar, sequer compreender. Meu olhar sobre o mundo é, então, de um eterno maravilhamento, esse mesmo que os olhos de uma criança apresentam quando enxergam pela primeira vez uma colher de sopa, por exemplo. Eu estou sempre com cara de quem está vendo colheres de sopa pela primeira vez.
Digo isso porque estive a refletir sobre qual seria o ímpeto que movia as pessoas de tempos passados (e nem tão passados assim, apenas levemente amarrotados pelo distanciamento ainda curto do presente) a empreender coleções de objetos os mais variados. Por que fazíamos isso? Que espécie de carência psíquica supria aquele ato de acolherar (as colheres, de novo, nesse texto) objetos similares obsessivamente e depois atormentar parentes e visitas exibindo o fruto daquelas nossas obsessões? Que gente estranha que éramos, naqueles tempos, devido a ações como aquelas.
Eu, por exemplo, colecionava chaveiros. Tinha uma caixa de sapatos que, passados alguns anos, já quase explodia de tanta chaverada que eu acolhe... digo, que eu guardava dentro dela. Para quê? Colecionava também carrinhos de chumbo em outra caixa. Ah, e revistinhas em quadrinhos. Minha irmã colecionava bonecas e selos. Um amigo colecionava tampinhas de refrigerante, que vinham com imagens de personagens infantis gravadas no lado interno. Um primo colecionava figurinhas. Um tio meu colecionava flâmulas (aciono a máquina do tempo e traduzo: flâmulas eram pequenas bandeiras de pano, triangulares, representando times de futebol e agremiações diversas). Um colega de aula meio preguiçoso colecionava xingões dos professores, mas agora acho que já estou exagerando em favor da construção poética dessa crônica; paremos por aqui, antes que eu comece a colecionar liberdades literárias.

Só sei que as coleções e o ato de dedicar-se a elas foram minguando, minguando, e hoje são apenas parte do cenário de um tempo e de uma gente que mora no passado. Por quê? Ah, se eu fosse sociólogo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de fevereiro de 2015)

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Esporte é vida

Hoje vou distribuir parabéns. Parabéns a todos os desportistas, amadores e profissionais, que povoam o naco fisicamente saudável desse nosso planeta. Parabéns aos que ganham a vida a partir do esporte e também àqueles que praticam esportes como hobby e como estratégia para uma vida mais saudável. Parabéns, parabéns, parabéns, porque hoje é o Dia do Desportista.
Parabéns aos que correm, caminham e se exercitam por recomendações médicas, povoando nossos parques e perimetrais de gente sarada ou tentando sarar. Parabéns aos que jogam o futebolzinho semanal com os amigos. E também para as que jogam o voleizinho semanal com as amigas. Meus parabéns aos professores de educação física, aos treinadores de academias de ginástica, e também aos frequentadores das academias. Parabéns aos frequentadores das quadras de futebol, de tênis, de vôlei. Aos que treinam boxe e outras lutas modernas (eu só saberia citar kung-fu e pagaria mico), aos que andam de bicicleta, aos patinadores, aos skatistas, aos que saltam muros (excluídos os que pulam cercas, integrantes de categoria bem diferente, muito maléfica à saúde, por sinal), aos que fazem yoga. Meus parabéns, meus parabéns, meus parabéns a todos.
Essa minha generosidade configura-se em uma artimanha psíquica acionada com o intuito de dirimir minha sensação de culpa consciente por me ver ainda tão sedentário, sabedor que sou dos benefícios que obteria tirando algumas horas por semana esse meu traseiro da cadeira e indo correr nos parques. Eu sou aquele alguém que não receberá telefonemas e nem e-mails de felicitações pela passagem do dia de hoje (sequer aniversário me digno a fazer no 19 de fevereiro), uma vez que não há sobre a Terra um ser que de sã consciência vá ligar meu nome ao Dia do Desportista. Ainda mais eu, que engolia água da piscina nas aulas de natação; errava a raquete da bolinha nas aulas de tênis; ficava na zaga e de costas para o jogo nos futebóis da turma do colégio; levava bolada no focinho e quebrava os óculos nos jogos de vôlei; botava os bofes para fora nos testes de cooper.

Rendo daqui do meu escritório minhas mais sinceras homenagens a esse louvável batalhão da saúde, ao qual, uma vez mais, prometo um dia passar a pertencer. Até já assisto a jogos de futebol pela tevê. Estou chegando lá...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de fevereiro de 2015)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

De cuia na mão

Com um movimento firme das mãos, o homem transmite pela rédea a ordem que faz o cavalo parar o trote no alto da campina. O encontro com o sol nascente parece cronometrado. Os raios de luz e calor vão acordando a relva ainda gélida do orvalho da madrugada, descortinando aos olhos do homem, de palheiro aceso sob o bigode, o cenário que ele está habituado a presenciar, mas de cuja beleza rústica jamais se cansa.
Os joões-de-barro reiniciam o moldar de casas sólidas no alto das paineiras; o gado reunido retoma o manso pastar; o cachorro ovelheiro aguarda ao lado a ordem para campear o terneiro que desgarrou mato adentro. Mais um dia nasce no campo dos cimos da Serra, igual ao que está a surgir no dos pampas, no da região missioneira, no das fronteiras e interiores do vasto Rio Grande, a unir gaúchos em seu modo peculiar de ser e de sentir o pedaço de mundo que lhes foi destinado. Com um movimento dos calcanhares, as esporas transmitem ao cavalo a ordem de retornar para casa, onde o homem vai sorver os primeiros goles do chimarrão cuja água já chia na chaleira de ferro sobre o fogão a lenha, cevado pela esposa que também madruga e lhe está à espera.
Na mesma hora, na cidade grande, arrancado da cama pelo rádio que lhe informa a temperatura e as notícias, o homem escova os dentes e corre para o trabalho enfrentando o entrevero do trânsito. Pelo caminho, os primeiros raios do sol da manhã vão lançando luz e calor sobre o cimento dos edifícios que, ao longo dos anos, sopram para o limbo a madeira das casas antigas que evocavam recuerdos.
Ele não vê a hora de chegar ao escritório ou à repartição e sorver os primeiros goles do chimarrão que algum colega madrugador já cevou para aquecer o início do dia. Sua esposa, do outro lado da cidade, recebe também a primeira cuia preparada pela colega de trabalho e sorve o mate pensando no marido e na felicidade de esperarem pela chegada do final de semana, quando dançarão ao ritmo da chamarrita, do bugio, do chamamé, no CTG da sua cidade.
Seja com o pé descalço pisando a relva da campina ou com o sapato apertado aguardando o sinal no cruzamento, gaúchos são gaúchos, e o ronco de uma cuia de chimarrão os torna a todos universais. Agora com licença, que vou preparar um mate...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de fevereiro de 2015)

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Gandaia na sala

No Carnaval, tudo pode acontecer. E não é preciso ser folião de carteirinha para saber dessa lei máxima que rege os dias de festejos comandados por Momo. Até porque, folião que se preze não sai para a folia portando carteirinha, objeto que saltará de seu bolso logo aos primeiros gritos de olê-olê-olê-olá, ainda mais aqui nessa nossa terra em que os bolsos não seguram nada, desde butiás até fiorini.
Caxias está vivenciando um período em que a união de iniciativas privadas e ações públicas vêm convergindo no resgate da folia a céu aberto e dentro dos salões, movimentos que já foram tradicionais na cidade em épocas passadas e que justamente deixaram saudades. Blocos divertidos e bem organizados tomam as ruas, atraem multidões cada vez maiores e rapidamente começam a se tornar tradições modernas, em especial o Bloco da Velha, organizado pelo pessoal da Livraria e Café Do Arco da Velha desde 2011, que já inspira seguidores como o novo Bloco da Ovelha, surgido este ano. Esta terça-feira à noite presenciará a primeira edição do Carnaval Interclubes, reunindo em um mesmo ambiente os foliões associados de três das mais tradicionais agremiações sociais da cidade: Recreio da Juventude, Clube Juvenil e Recreio Cruzeiro, resgatando das cinzas o antigo glamour da folia clubística. As escolas de samba caxienses levaram sua emoção e seu brilho este ano ao novo palco ao ar livre na Rua Plácido de Castro, preparada pela Prefeitura para o evento, e deram show.

Já eu assisto a tudo isso do camarote do sofá da minha sala e aplaudo as iniciativas. Porém, não arredo o samba do meu pé de cima do tapete, por uma pura questão de inércia carnavalesca pessoal. Mas isso não impediu várias pessoas de jurarem terem me visto domingo à tarde esbanjando rebolado em frente ao trio elétrico que animou a festa do Bloco da Velha, onde eu juro que não estava. Quer dizer... Quem sou eu para afirmar alguma coisa nesses dias de folia momesca... Quero crer que eu não estava, mas também não boto minha mão no fogo. Podem é ter visto alguém fantasiado de mim, de bermuda e abadá, sambando alegremente. Mas eu mesmo não estava. Se estava, fui fantasiado de outra pessoa e não contei a ninguém, nem a mim mesmo. Vai saber... No Carnaval, tudo pode acontecer...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de fevereiro de 2015)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O mal da apatia

Será que somos mesmo uma nação formada por um bando de malversadores do dinheiro alheio, inclinados ao exercício do mal por propensão genética, devido a uma má-formação ética e de caráter? Ao contrário do que comumente se imagina, a tendência à corrupção não é um traço cultural exclusivo do Brasil, mas, sim, um atributo inerente à condição humana, que se manifesta entre todas as civilizações, em todas as épocas. A tentação a corromper-se existe em igual escala em qualquer outra nação e se manifesta em igual intensidade entre os indivíduos pertencentes a qualquer outro povo.
O que diferencia, a nós, brasileiros, de outros povos mais evoluídos, não é a tendência maior à corrupção, mas, sim, a existência entre nós de outro traço cultural deletério que é a leniência, a cumplicidade, a tolerância que temos para com a corrupção, para com os corruptos, para com os corruptores e para com os corrompidos. Somos pouco afeitos a estabelecer com rigor mecanismos que coíbam e inibam a corrupção. Somos mansos em relação aos corruptos. Nosso problema maior é essa mansidão que temos em excesso quando o assunto é corrupção.
A verdade é que nós, brasileiros, no íntimo, glamourizamos os corruptos. Inconfessavelmente, admiramos a inteligência, a audácia, o destemor e a fleuma deles. Invejamos o status, o poder e as riquezas de que os corruptos desfrutam. Não desejamos, em nossa grande maioria, sermos corruptos, mas desejamos aquilo que os corruptos possuem. Covardes que somos, não ousamos, nós, os da grande massa, sermos corruptos igual a eles, mas tampouco ousamos denunciá-los, condená-los, persegui-los, rejeitá-los, bani-los, oprimi-los, humilhá-los como eles bem merecem.
O pior de tudo é perceber que nós, brasileiros, ficamos mesmo é chocados quando vemos um corrupto bem-sucedido, elegante, ser preso, algemado e humilhado. Habituados ao servilismo como somos, abanamos instintivamente nossos rabinhos e estendemos nossas patinhas aos ricos, bonitos e perfumados, mesmo que tenham obtido essa riqueza, comprado os perfumes e feito as plásticas às expensas do dinheiro roubado dos cofres públicos e por meio de negociatas. Senhores altaneiros, de terno e gravata, conduzidos algemados em camburões da polícia, é uma imagem que agride nossas sensibilidades e arranca de nós o mais profundo sentimento de comiseração e ternura por aqueles pobres ricos corruptos que não mereceriam serem tratados como se fossem ladrões de galinha.

No fundo, nosso maior problema mesmo é a apatia.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de fevereiro de 2015) 

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Ao alcande da mão

Houve uma época no mundo (especialmente no mundo delimitado pelas tímidas fronteiras da interiorana Ijuí das décadas de 1970 e 1980, das quais me lembro com a nitidez da infância e da adolescência vivenciadas naquele tempo e naquele espaço) em que não existiam tevê a cabo e nem antenas parabólicas. Quem morava no interior do Estado tinha um leque de opções televisivas restrito ao cardápio oferecido por aqueles minguados um ou dois canais disponíveis, dependendo do número de “antenas repetidoras” cuja instalação a prefeitura de seu município bancava.
Em Ijuí, até meados da década de 1980, havia um canal, e tão somente aquele canal e deu. Assistia-se à novela das oito (época em que a novela das oito ia ao ar realmente às oito horas da noite) torcendo para que o sinal estivesse bom. Não estando fora do ar na hora da exibição do programa favorito, já era uma festa. Os jornais da capital traziam as grades da programação das demais quatro ou cinco tevês abertas existentes no país (aliás, sequer havia o conceito de “tevê aberta”, uma vez que o país ainda não entrara na era dos canais pagos) e ficávamos namorando programas que adoraríamos assistir, mas que passavam longe de nossas antenas espinha-de-peixe instaladas sobre os telhados de nossas casas.
Até o dia em que o tão anunciado “segundo canal” chegou em Ijuí, ampliando em cem por cento nossas opções televisivas. Que alegria ter podido assistir, mesmo em meio a chuviscos de imagem e quedas intermitentes de sinal, ao VT do show que a dupla norte-americana de cantores pop Simon e Garfunkel fizera um par de anos antes, ao vivo, no Central Park em Nova Iorque. Eu me sentia finalmente conectado ao mundo, agora, com dois canais de televisão ao meu dispor. E aí vieram as primeiras transmissões ao vivo de desfiles de carnaval no Rio de Janeiro, madrugada adentro, o que me transformou em um dedicado folião de sala-de-estar, torcendo para que as câmeras dessem closes das modelos e atrizes que se botavam a ornamentar carros alegóricos com uma nudez nada castigada.

Hoje, que o mundo inteiro está ao alcance de alguns cliques no controle remoto da tevê a cabo, deixo a tevê desligada e acho que até vou dormir mais cedo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de fevereiro de 2015)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O verdadeiro azar

Dia desses, caminhando pelas calçadas do centro atribulado de nossa Caxias do Sul, sintonizado no ritmo apressado que pauta o andar da maioria dos cidadãos que por ali também circulam (só por hábito mesmo, porque nem estava com tanta pressa assim), acabei passando por baixo de uma escada que estava escorada junto a uma parede qualquer, com a qual formava um ângulo de uns 45 graus. Alguém deveria estar pintando a parede, ou ter subido ao telhado para instalar uma antena de televisão, algo do gênero.
E nós, transeuntes, cruzávamos por baixo daquela escada sem sequer pensar em desviar o rumo para o lado, compenetrados que estávamos, cada um, em nossos próprios contextos pessoais. Eras atrás, passar por baixo de uma escada era uma atitude impensável, porque trazia azar. A crendice popular foi perdendo espaço para a crueza da vida moderna, na qual o azar provém do perigo real de inventar de desviar da escada para a rua, onde os carros cruzam acima da velocidade permitida em perímetro urbano, e acabar indo ocupar leito na emergência dos plantões médicos, por atropelamento. “Por que você se jogou de repente para a rua?”, as enfermeiras questionarão, costurando mais um ponto em seu cotovelo. “Havia uma escada na calçada e eu quis fugir do azaaaaaiii”, gemerá você, sendo costurado, mas pleno de sorte por ainda estar vivo.
O temor de passar por baixo da escada é apenas uma das tradições inocentes do passado que caíram em desuso nesses emplastificados e homogeneizados dias virtuais da modernidade. Ele se soma ao ato de pular fogueira nas noites de São João em junho; às pegadinhas intermináveis que pontuavam as 24 horas do dia 1º de abril (Dia dos Bobos); a procurar pelo quintal da casa os ninhos que o Coelhinho escondia para as crianças na Páscoa; a falar na Língua do Pê pepa-pera pecom-pepar-peti-pelhar pese-pegre-pedos peim-pepor-petan-petes e tantas outras coisas.

Sem falar na sexta-feira 13, a temerosa conjunção eventual do calendário, que tempos atrás inspirava temores e hoje, pelo menos, serviu de inspiração para o compromisso diário de um certo cronista que não tem mais medo de escada e que adora gatos pretos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de fevereiro de 2015)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Pois é, tem Carnaval

Em fevereiro, como a canção se encarrega de não nos deixar esquecer, tem Carnaval. Sabemos disso e já vamos de antemão nos preparando, tanto os que gostam (carregando as pilhas do pé para soltar o gingado no samba) quanto os que não gostam (à procura de retiros onde se esconder da folia regida por Momo). Sinônimo de festa, alegria, diversão e desopilação dos estresses acumulados ao longo do ano que passou, o Carnaval já serviu de pano de fundo para um ato importante na História não tão remota assim do Brasil. Mas, como nenhuma canção canta o feito, ele acaba sendo varrido para o baú da memória, dispensado igual confete e serpentina em quarta-feira de cinzas.
O Carnaval que entrou para a História foi o de 12 de fevereiro de 1888, exatos 127 anos atrás, portanto. O Brasil ainda vivia os últimos momentos da monarquia comandada por Dom Pedro II (a República seria proclamada já no ano seguinte, em 1889), e o imperador estava na Europa para tratamento de saúde, tendo deixado sua filha, a Princesa Isabel, regendo o país. Como ainda lembramos, a Princesa Isabel era uma defensora ativa do abolicionismo, queria libertar da escravidão a imensa população de negros oriundos da África, e não poupava esforços nesse sentido.
Um desses esforços ficou conhecido como “A Batalha das Flores”, que a Princesa promoveu naquela data de 12 de fevereiro de 1888, dia de Carnaval, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, sede da família imperial. Importando uma tradição francesa, ela, juntamente com o marido, o Conde D´Eu, os filhos do casal e alguns amigos, desfilaram pelas ruas da cidade em carruagens ornamentadas com camélias (a flor símbolo dos abolicionistas) e distribuíam as flores para a população, divulgando a causa pela libertação dos escravos. A assinatura da Lei Áurea, pelas mãos da Princesa (que, por causa disso, ficou conhecida como “A Redentora”), viria logo depois, em 13 de maio do mesmo ano.

Carnaval, portanto, em tempos idos, já foi sinônimo de conscientização das massas em favor de uma causa crucial para a evolução da sociedade brasileira. Se fosse hoje, não haveria camélia que bastasse para representar o número de problemas a serem solucionados no país que herdamos da monarquia. Momo, o deus da Folia, parece reinar, hoje em dia, ao longo de todos os 365 dias do ano.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de fevereiro de 2015)

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Não foi por medo de avião

Tenho como verdade (devo ter lido em algum lugar) o fato de que o escritor colombiano Gabriel García Márquez não gostava de viajar de avião. Fico imaginando o grau de superação pessoal a que ele se submeteu para vencer a fobia e atravessar o Oceano Atlântico em 1982 para receber o Nobel de Literatura, na Suécia, ou para fazer visitas regulares a seu velho amigo Fidel Castro, em Cuba.
Tenho também para mim (li em lugar outro) que o igualmente famoso escritor brasileiro Jorge Amado compartilhava com o colega colombiano o mesmo temor de aeroplanos, e radicalmente só se locomovia por terra. Eu, nessa minha notória insignificância, não preciso temer voar até a Suécia em busca de prêmio literário e tampouco privo da amizade de El Comandante. Porém, congelo de medo de aviões igual a García Márquez e a Jorge Amado. Ao menos nisso, igual a eles.
Mas ao contrário do que se possa pensar, eu não temo voar de aviões; eu tenho medo mesmo é de cair com eles. Os aeroplanos pertencem à categoria rara das certezas absolutas que podemos ter na existência: primeiro, a certeza de que morreremos; segundo, a de que todo avião que decola retorna ao solo – de uma ou de outra maneira. Sempre que recebo a bandeja com comidinha distribuída pelas sorridentes aeromoças, saboreio cada garfada da refeição com gosto de plástico como o ritual de um apenado em seus derradeiros momentos no corredor da morte. E fico de olho no semblante delas, das aeromoças. Não porque sejam belas e charmosas (quase sempre são, eu sei, eu sei), mas porque tento identificar no rosto delas qualquer alteração súbita que indique o fato de que tudo vai mal e vamos nos esborrachar lá embaixo apesar de os assentos serem flutuantes.

Mas, diferentemente de García Márquez e de Jorge Amado, eu não me esquivo de voar, sempre que necessário. Tremo de medo da decolagem ao pouso; devoro o que aterrissa em minha bandeja; leio e releio as instruções do saco de vômito; lanço olhares desconsolados às gélidas aeromoças e rezo para todos os deuses em que não creio na hora de voltar ao solo. Mas não tem problema: vou até a Suécia se um dia isso for necessário. Ou até Cuba brindar um rum com Fidel, se ele me convidar. Não seria por isso...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de fevereiro de 2015)

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Rumo a Marte

Meu amigo Argentino está apavorado. Quem conhece Argentino há bastante tempo, como eu, sabe que estar apavorado por alguma razão qualquer chega a ser a condição natural de ser e estar de Argentino, mas desta vez a coisa parece ser séria. Ao menos, o pavor é bem sério, apesar de a razão que o motiva continuar sendo, digamos, uma razão típica das de Argentino. Problema é que, quando ele está assim, ele via de regra bate lá em casa, e aí, quem escuta sou eu...
Fissurado por assuntos relativos à astronomia, Argentino foi um dos primeiros brasileiros (Argentino é argentino, mas possui dupla cidadania, explicado?) a se inscrever no projeto Mars One, iniciativa de um empreendimento multimilionário norte-americano que está desenvolvendo uma viagem tripulada rumo ao planeta Marte, prevista para ocorrer em 2023. A ideia é construir bases no planeta vermelho para colonizá-lo, em uma viagem de sete meses de duração sem nenhuma parada nem sequer em Vênus para fazer xixi e comprar cebolitos. Duzentas mil pessoas de todas as partes do mundo já se inscreveram (dez mil do Brasil, Argentino entre elas) para se candidatar a compor o pioneiro grupo inicial de quatro astronautas que irão para lá, entrar para a história.
O que não se sabia é que podem também entrar pelo cano, uma vez que só agora foi divulgada a informação de que a viagem é sem volta, ou seja, não existe guichê de vendas de bilhetes rumo à Terra, em Marte. Quem for, vai ficar. Igual aos imigrantes alemães e italianos que embarcaram em navios nas famosas viagens de 33 dias pelo Oceano Atlântico rumo à América no final do século 19. Raros foram os que conseguiram pisar de novo na terra natal. Já pensou, passar o resto de seus dias em Marte, na companhia de três outras pessoas somente, sem supermercado, sem tevê a cabo, sem internet, sem parquinho, sem praia, sem espiga de milho cozido, sem caipirinha, sem a edição número 23 do BBB Brasil?

Argentino está apavorado porque tem convicção de que já figura na lista dos quatro selecionados para a missão (Argentino é um ser de convicções) e não sabe como fazer para cancelar a inscrição. Não vai poder nem receber cartas da gente. Coitado do Argentino. É o que dá, mover-se por impulso...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de fevereiro de 2015)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Eu sou a régua

Uma vez que todos nós somos seres autocentrados, egocêntricos e autorreferentes, não é de se estranhar que passemos nossas existências alimentando preconceitos e maus julgamentos sobre as outras pessoas embasados no fato de que as analisamos e as medimos a partir das qualidades que pressupomos existir em nós mesmos. Nós próprios julgamos ser a medida para o que há de melhor na humanidade, de mais correto, mais bonito, elegante, charmoso, inteligente, espirituoso, politicamente correto, engraçado, esperto e fofo. Ou vai me dizer que você não acha tudo isso de você mesmo?
O problema é que ninguém está se dando ao trabalho, nesses dias de  preocupações com a superpopulação do planeta, de também aferir as consequências por certo danosas da proliferação desenfreada de egos humanos a inflarem e exigirem mais e mais espaço por sobre a superfície da Terra. Porque a coisa, como podemos ver analisando friamente o entorno social que nos cerca, funciona normalmente assim: você é o centro do universo, e tudo gira em torno de seu umbigo, seja ele do tipo fechadinho, ou puxado para fora igual a laranja-de-umbigo ou avaletado para dentro. Nossos umbigos atraem tudo para o seu próprio centro, reproduzindo a imagem dos buracos negros, que absorvem, dizem, até mesmo a luz. Umbigos iluminados, portanto, esses nossos.
As pessoas à nossa volta são mais feias ou mais bonitas do que a gente; ou mais magras ou mais gordas; ou mais espertas ou mais burras; ou mais felizes ou mais sofredoras; ou mais abonadas ou mais miseráveis; ou mais sortudas ou mais azaradas. Mas sempre a régua para medi-las somos nós mesmos. Compomos, nós, seres humanos, um agrupamento de sete bilhões de centros do universo se entrechocando sobre a superfície da Terra. “Fulano está acima do peso”, dizemos nós de Fulano, que pesa 200 quilos, para a alegria de nossos esbeltos 190. “Beltrana é uma es-can-da-loooooooo-saaaaaaaaaa”, berramos para as amigas no salão de beleza contra Beltrana (que está obviamente ausente), fazendo nosso singelo escandalozinho.

Nossa sorte é que não somos iguais uns aos outros. Apenas semelhantes em nosso cultivo ao narcisismo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de fevereiro de 2015)

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Mais horário de verão

O Governo (a gente coloca a palavra em maiúscula sempre que pretende se referir aos poderosos que realmente tomam as decisões dentro dos gabinetes governamentais – também conhecidos como “os home” –, independentemente de sabermos ou não quem eles são, apesar de, muitas vezes, o termo poder ser confundido com desgoverno, mas deixemos isso para lá que o foco deste espaço não é tecer avaliações políticas, coisa que Rosilene Pozza faz com muito mais propriedade, neste jornal, do que este singelo cronista). Onde estávamos? Ah, sim, iríamos falar sobre o governo. Quer dizer, sobre o Governo. No próximo parágrafo.
O Governo anda pensando... Ainda vai decidir, mas já anunciou que anda pensando, o que, convenhamos, é um sinal positivo, pois quem deseja um Governo que tome decisões sem pensar nelas antes? Um Governo que toma decisões sem pensar nelas antes corre o risco de descambar para a categoria de governo, assim, com letra minúscula, o que o aproxima perigosamente da subcategoria de desgoverno, que significa um governo sem categoria alguma.
O Governo (ainda com “G” maiúsculo), então, anda pensando (oba!) em estender este ano o horário de verão até o final do mês de março (caso contrário, se encerrará dia 22 de fevereiro, conforme o previsto), com o objetivo de economizar energia elétrica, haja vista a caótica situação dos reservatórios de água no país devido às chuvas que chovem, alagam tudo, mas, pelo visto, se recusam a acertar a mira em cima dos reservatórios (desconcertante esse desgoverno das chuvas). O Governo, que pensa antes de tomar decisões, pretende fazer uma reunião dia 12 (Governos com maiúscula, além de pensarem antes de tomar medidas, também fazem reuniões para anunciar futuras reuniões em que as tais medidas serão tomadas, tudo para evitar que descambe para a letra minúscula), quando então a situação será analisada (Governos fazem reuniões para analisar as situações que resultarão no anúncio formal de eventuais medidas a serem tomadas).

Já eu, aqui, na insignificância minúscula de minha reles cidadania, fico apenas a torcer que a decisão seja positiva, pois que só vou para a praia em março e adoraria ver o pôr-do-sol às oito e meia da noite, governando de sunga a minha merecida caipirinha.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de fevereiro de 2015)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Bilhete premiado

Pois é, essa coisa de ganhar na loteria, esse sonho esdrúxulo do dinheiro fácil que todo o brasileiro acalenta e que parece estar ali, ao alcance da mão, em cada casa lotérica, bastando, para concretizá-lo, acertar a canetada nos quadradinhos com os números exatos que serão sorteados dali a alguns dias, e pimba, todos os nossos problemas estarão resolvidos! Todos, não, porque a fortuna também traz suas dores-de-cabeça, a começar por aqueles parentes distantes que então, de uma hora para a outra, resolvem eliminar a distância e abrem sorrisos na porta de sua casa... quer dizer... de sua mansão.
Meu avô que o diga! Toda a semana ele renova suas esperanças na Megasena, na Lotomania e na Lotofácil (ele ainda chama as apostas de “volantes”, é do tempo dos bilhetes da Loteria da Caixa Econômica Estadual e, quando sai para a rua, informa que está indo “jogar na Esportiva”), mas a expectativa gera nele uma angústia sem par. Não porque acredite que realmente possa “tirar a sorte grande” (aliás, diz aqui pra mim, você conhece alguém que tenha ganhado mesmo nesses jogos, hein?), mas porque teme ter de pagar muitos impostos caso seja sorteado com a bolada. Sofre muito com essa perspectiva, mas mesmo assim, insiste, uma vez que o prazer maior reside justamente no acalento da expectativa inverossímil.
De minha parte, já faz anos que deixei de gastar meu suado troquinho nessas coisas, primeiro por preguiça de ter de enfrentar as filas das agências lotéricas, e segundo porque, na real, não acredito em dinheiro fácil. Em nenhuma espécie de dinheiro fácil. Nunca ganhei dinheiro fácil, nem mesmo na época da mesada recebida dos pais, afinal, quem disse que ser criança não tem lá suas exigências, esforços e agruras?

Ganhar na loteria, para mim, virou metáfora diária para o prazer de viver, que procuro renovar a cada novo saltar da cama. Tenho prazer em estar vivendo minha história, seja o dia ensolarado, ou chuvoso, ou frio ou quente. Ganho na loteria todos os dias por ser quem sou, conviver com quem convivo, fazer o que faço e viver onde vivo. E nem pago impostos por isso. Venho, assim, acumulando uma incalculável fortuna em bens imateriais. O segredo é renovar todos os dias o bilhete premiado da vida com ânimo e bom-humor, na medida do possível. Pronto, entreguei o ouro...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de fevereiro de 2015)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O vinho do conde

Aconteceu no ano de 1865, no mês de agosto, em Rio Grande (a primeira cidade fundada na Província, em 1787), na época com 14 mil almas. Estava de passagem por ali o Conde D´Eu e seu séquito, rumo ao encontro do imperador Dom Pedro II, já aquartelado em Caçapava com suas forças somadas aos Voluntários da Pátria, a fim de combaterem o exército paraguaio de Solano López, que invadira terras brasileiras e já tomara São Borja e Uruguaiana.
O Conde D´Eu, francês da nobre Casa de Orléans, havia recém voltado da Europa, onde estivera em viagem de núpcias com sua esposa, a Princesa Isabel, filha de Dom Pedro II. Ao chegar ao Brasil, descobriu que eclodira a Guerra do Paraguai (seu celular estivera fora de área a viagem toda e ele se recusara a acessar a internet para saber das notícias) e não tardou em ir se juntar ao sogro no Sul do país para ajudar a comandar in loco as tropas brasileiras combatentes. De barco e a cavalo, a viagem do Rio de Janeiro até Caçapava levou duas semanas.
No caminho, o séquito do Príncipe Consorte ia sendo recebido com pompas e gala nas localidades por que passava, sendo o Conde D´Eu hospedado nas luxuosas residências dos principais próceres de cada lugar. Assim também se deu em Rio Grande, onde foi recebido pelo distinto senhor Eufrásio Lopes de Araújo e sua família. No jantar, a esposa do anfitrião fez questão de que o Conde provasse o “vinho da terra”, uma vez que a Província do Rio Grande do Sul era a única do país, na época, que vinha produzindo vinho, a partir de cepas importadas dos Estados Unidos (os imigrantes italianos só começariam a chegar no Sul dali a dez anos).
O Conde provou, mas não gostou, relatando assim a experiência em seu diário de viagem: “É de cor vermelho-clara e tem um sabor que não é propriamente desagradável, mas que é acre e se não parece com o de nenhum vinho europeu”. Zero para o vinho gaúcho de 1865. Mas muita coisa mudou no cenário vitivinícola da região, passado um século e meio. Pena é que não seja mais possível convidar o Conde D´Eu para um jantar hoje na Serra Gaúcha, regado aos melhores rótulos das vinícolas da região. O que ele escreveu é imutável e traça o retrato de uma época. Felizmente, há coisas que mudam para melhor (quem procurar com afinco, acaba achando, nem que seja o vinho).

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de fevereiro de 2015)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Índios e maionese

O churrasco na casa de meu avô paterno era tradição aos domingos de meio-dia. Ao menos uma vez por mês, a família toda se reunia lá. Eventualmente, alguém levava algum amigo. Foi um desses amigos adultos, comensal casual em um daqueles encontros, provavelmente cliente de meu avô, quem me chamou a atenção infantil devido a uma frase que soltou em alto e bom tom em meio à conversa que travava com meu avô, meu pai e alguns tios. “Eu não vivo para comer, eu como para viver”.
Não sei em que contexto a frase foi dita, uma vez que, aos oito, nove anos de idade, eu não participava de conversa de adultos e estava focado mesmo era na defesa do meu Forte-Apache, que meus dois primos, manipulando os bonequinhos-índios, desferiam com ferocidade ali no chão. Mas a frase invadiu meus ouvidos e se alojou em minhas lembranças, provavelmente porque deve ter gravado alguma sensação dentro de minhas primeiras reflexões de vida. “Ora (devo ter pensado, enquanto dispunha soldados no alto da casamata para melhor alvejar os índios de meus primos), o que esse homem está querendo dizer com isso? Será que ele está ousando recusar e desdenhando a maravilhosa maionese de batatas que minha avó produz sempre nesses almoços de domingo? Ou está recusando nacos do suculento churrasco assado por meu avô? Ou não quer a cebola no espeto que meu pai sempre insere na churrasqueira, que depois de assada vai à mesa cortada e regada com sal e azeite de oliva?”
Independentemente do contexto em que o personagem proferiu a frase, ela segue sendo um mantra entre as pessoas que pretendem expressar o fato de que optaram por uma visão somente utilitária dos alimentos, abrindo mão do prazer que eles podem proporcionar. Isso porque, sempre que pensamos em “prazer gastronômico”, imaginamos que ele só pode ser alcançado mediante o consumo de pratos suculentos e engordativos, desprovidos de valores nutricionais, o que está longe da verdade. Hoje aprendi que é possível unir as duas coisas: comer de forma saudável e ter prazer nisso, sem abrir mão de eventuais churrascos e maioneses de batatas.

São ensinamentos que a experiência de vida acaba nos fornecendo. Mas ainda bem que, naquele dia do passado, mesmo tendo escutado a tal da frase, eu não descuidei em nada da defesa de meu Forte-Apache.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de fevereiro de 2015)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Sem cérebro no brejo

Sim, concordo, é verdade que a criatividade é um instrumento poderoso para auxiliar o cidadão a sair de enrascadas, a driblar uma saia justa, a solucionar um problema inesperado. Também a presença de espírito é eficaz em momentos como esses. Ah, e não esqueçamos a importância da experiência, pois é ela quem nos fornece os padrões de comparação a partir de situações similares já vivenciadas anteriormente e aciona os gatilhos necessários para que consigamos resolver a contento a questão que ora se apresenta.
Criatividade, presença de espírito, experiência. Uma tríade poderosa a ser evocada e vir em auxílio quando a água bate na canela e vai subindo, quando a vaca se põe a escorregar na beirada do brejo, quando a catástrofe parece irreversível. Concordamos nisso, a senhora leitora, o prezado leitor e eu. Porém (é preciso haver um “porém”, um “mas”, um “entretanto”, um “contudo”, um “todavia”, para que haja crônica, ora pois), vou lhes dizer uma coisa: isso nem sempre basta. Existe outro elemento que, se não estiver presente, a vaca acabará sim atolando no brejo, a água subirá as canelas e o encobrirá todo, a catástrofe se concretizará. E vou revelar qual é esse elemento, mas, antes, ilustrarei com um exemplo, para que a crônica ganhe sabor e fique mais bacaninha.
Eis o exemplo: final de semana em casa, disposto a produzir uma saborosa torta de palmitos para inaugurar o novo forno elétrico recém-chegado e fazer surpresa para a turma. Apressado, ansioso, desplugado, li a receita certinho, mas meu cérebro traduziu tudo errado. No lugar de farinha de trigo, meti-lhe colheradas de amido de milho; ao invés de três quartos de xícara de óleo, tasquei-lhe três ou quatro xícaras; o fermento estava vencido, mas foi assim mesmo. Resultado: uma catástrofe empapada, gordurosa, flácida, xoxa e incomível. Foi, de fato, uma surpresa. A torta foi para o brejo mas, ao menos, o forno provou funcionar direitinho.

O que não funcionou foi o meu cérebro. Esse, senhoras e senhores, é o tal do elemento secreto fundamental para que qualquer situação seja remediada. Sem a presença desse ingrediente – o cérebro – funcionando, o brejo fica lotado de vacas atoladas. Eu sei porque recém estou voltando de lá.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de fevereiro de 2015)

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Os brucutus

Certo cronista norte-americano radicado há décadas no Brasil, que escreve seus textos em jornais do centro do país (não lembro o nome do dito cujo e nem da publicação, mas ao menos recordo a essência do comentário, feito recentemente por um amigo, e assim tenho o insumo necessário para o moldar desta crônica aqui, escrita por mim mesmo, cujo nome, ao menos por ora, ainda lembro), tenta compreender a essência da cultura brasileira a partir da observação dos atos cotidianos comuns à maioria da população. Tarefa árdua a que se impôs esse gringo, a de tentar compreender o incompreensível, mas, enfim, cada um carrega a cruz que lhe é destinada e ponto.
O tal do cronista, então, parece que andou tecendo uma relação entre civilização e trânsito, demonstrando que a cultura, ou a falta de cultura (no nosso óbvio caso) de um povo pode ser também medida, por exemplo, pela maneira como os motoristas se comportam dirigindo seus automóveis (ou suas máquinas de matar e de atropelar e de abalroar e de ultrapassar e de transgredir, no nosso óbvio caso) no trânsito. Aplicando esse tipo de aferição, nós, brasileiros, trogloditas brucutus dinossáuricos imbecilizados e brutamontes que somos no trânsito, ocupamos o fim da fila da civilização, quando comparados com o comportamento de motoristas norte-americanos e de outros locais do mundo em que a civilização e a civilidade já chegaram. Interessante.

Eu, de minha parte, que cronista também sou, mas não norte-americano, gosto de utilizar outra escala para medir e comprovar, com tristeza, nosso brasileiríssimo grau de constante involução civilizatória: o comportamento dentro dos elevadores. Para ficar só nos domínios da América Latina, já andei de elevador em países como Argentina, Uruguai, Colômbia, Panamá, Venezuela. Em todos, os nativos entram, olham nos olhos dos desconhecidos que com eles compartilham, durante apenas alguns instantes, aquele mesmo espaço claustrofóbico, e os cumprimentam tanto na entrada quanto na saída. Singelos, gentis e civilizados atos de convívio humano, que os brasileiros simplesmente desconhecem, dentro de sua escafândrica brutucuzisse aguda. Triste fim acena no horizonte para um povo que abandona “bom dia“, “boa tarde”, “até logo” com tanta facilidade.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de fevereiro de 2015)

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Abracadabra

Coelhos, saiam das cartolas! Pombas, escapem das mangas! Lenços coloridos, moedas e cartas de baralho, perfilem-se! Charmosas ajudantes de palco, larguem os serrotes e sorriam! Respeitável público, aplauda! Batamos palmas, todos, porque neste sábado, dia 31 de janeiro, celebra-se o Dia Mundial do Mágico, e eles, os profissionais da ilusão, merecem nossa justa homenagem.
Na minha infância, eu queria ser mágico (isso ao mesmo tempo em que também desejava ser detetive, super-herói e... suprema das ilusões... escritor!). Ficava fascinado com os truques – aos olhos de hoje banais – que os mágicos apresentavam ao vivo nos picadeiros dos circos que estacionavam na Ijuí dos anos 1970, personificando em cada um deles, com suas cartolas, seus fraques pretos e luvas, a figura do personagem Mandrake que eu lia nas histórias em quadrinhos. Depois, coube à televisão a incumbência de consolidar em mim esse encantamento, tornando-me fissurado pelo Programa do Tio Tony, um mágico porto-alegrense que apresentava seus quadros na RBS TV. Eu não perdia um.
Na esteira vieram o mentalista israelense Uri Geller, que entortava colheres e paralisava relógios com o poder de sua mente, e também o ilusionista norte-americano David Copperfield, com suas mágicas ultraimpressionantes apresentadas no “Fantástico” (nem é preciso dizer que odiava o Mr. M, aquele mascarado desmascarador de truques, amigo do Cid Moreira). Também é fácil adivinhar que, na infância, surripiei uma velha toalha de mesa vermelha para transformar em capa e encomendei pelo correio via reembolso postal uma caixa repleta de truques para aplicar entre familiares e amigos, o que acabou rendendo alguns puxões de orelha metafóricos e dedais que logo trataram de fazer sumir-se cartola adentro minha estranha vocação para neo-Houdini.

Passei a me dedicar à magia das palavras mesmo, pelo que, então, decido ser também merecedor de cumprimentos neste Dia Mundial dos Mágicos. Eu por isso, e todos os demais milhões de brasileiros, por exercitarmos diariamente essa magia suprema de tentar viver com dignidade e ética em um país repleto de truques. Abracadabra!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de janeiro de 2015)