A arte de relacionar-se requer
que se lance mão a um misto de predicados a serem conjugados direta e
transitivamente, como tolerância, jogo de cintura, empatia, capacidade de
adequação, respeito, bom humor, criatividade, compreensão, desapego, entre
outros. Fácil, não? Não! Não é nada fácil mesmo, a madame está certa aí, e é
por isso que as relações sociais, sejam elas quais forem, andam sempre aos
trancos, como se tropicássemos em tijolos dispostos sorrateiramente pelo
caminho que, a princípio, parecia fluir tão fácil. E os tijolos, madame, os
tijolos, eu sei que é isso que a senhora está pensando aí, sacudindo a cabeça,
os tijolos, é verdade, os tijolos somos nós mesmos. A senhora tem razão.
E isso vale para qualquer tipo
de relação humana. Entre casais, entre colegas de trabalho, em família, entre
os amigos, entre confrades, entre sócios, entre grupos perenes e fortuitos como
a junção de gentes em um elevador, enfim, tudo, né, madame? A senhora segue
concordando comigo. Que bom, hoje estamos afinados, a coisa corre livre,
fluindo. Adiante! Agora chegou a parte em que inserimos o exemplo ilustrativo
da tese, pescado da experiência pessoal e universalizado em sua essência, que é
o segredo da confecção da crônica, porque senão, do contrário, isso se
transformaria em uma espécie de “meu querido diário”, e não é nada disso que esperamos
de um cronista, por mais mundano que ele seja, não é assim, madame? A senhora
concorda de novo? Ótimo!
Pensava nessas coisas dia desses
aqui em casa, quando fui fazer ovos para o almoço. Eu gosto de ovo frito; minha
senhora prefere ovos cozidos. Sem problemas, eu julguei-me apto a produzir os
dois tipos de ovos ao mesmo tempo, junto ao fogão. Meu ovo frito, gosto dele
mal passado, a gema escorrendo dourada sobre o arroz no prato. O ovo cozido,
ela prefere ao ponto, durinho, compacto. Muito bem! Fui-me saracoteando o
avental rumo ao fogão e voltei de lá à mesa minutos depois com meu ovo frito
duro e passado demais e o ovo cozido dela cru, a gema escorrendo. Bem do jeito
que ambos não gostamos. Que fazer?
Ora, madame, nada! Cada um comeu
seu ovo, pois só faltava agora ovo frito e ovo cozido serem motivo de briga em
família! No frigir dos ovos, tudo é questão de saber relevar os pequenos
deslizes, conforme prevíamos lá no início. Hein? Poxa, mas a senhora estava
concordando até aqui...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de outubro de 2015)
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