Eu
não tenho a mais remota lembrança relativa ao momento em que pela primeira vez
na vida tive contato com o gelo. Deve ter sido na Rua dos Viajantes, em Ijuí,
onde passei toda minha infância e adolescência, local que se transformou no
cenário para a maioria das descobertas que fui fazendo ao ir descortinando as
maravilhas do mundo.
O
gelo passou a ter lugar de destaque entre essas maravilhas aparentemente
triviais da existência a partir do momento em que o escritor colombiano Gabriel
García Márquez o inseriu como elemento crucial de intensidade narrativa já na
primeira página de seu clássico “Cem Anos de Solidão”, quando o Coronel
Aureliano Buendía está à frente do pelotão de fuzilamento enfrentando a
corrente de pensamentos sobre sua própria vida, que lhe cruza a memória. Aureliano
recorda de sua infância vivida no mítico vilarejo de Macondo, quando seu pai o
leva para conhecer o gelo, artefato estranho trazido pelos ciganos que de
tempos em tempos visitavam o lugarejo exibindo maravilhas. Depois trouxeram o
ímã, que causou sensação e alarde nas cozinhas, fazendo voarem panelas e
caçarolas. Mais tarde, mostraram “um óculos de alcance e uma lupa do tamanho de
um tambor”.
Eu
posso não recordar de meus contatos primevos com objetos como o gelo, o ímã, o
óculos e a lupa, que, para mim, soam como trivialidades. Mas recordo vivamente
de cada um de meus encontros, ao longo da vida, com as maravilhas da boa
literatura, e “Cem Anos de Solidão”, lido na Rua dos Viajantes em Ijuí (minha
Macondo?), quando eu tinha 16 anos de idade, se configura em minha memória de
leitor como uma das mais fascinantes e marcantes delas. O exemplar integrava os
pertences pessoais que um tio portava na bagagem ao vir de São Borja morar
conosco em Ijuí, no início de 1982. Enfiou-me ele aquele livro e devorei-o em
poucos dias, meses antes de o autor ser laureado com o Nobel de Literatura,
coincidência típica de roteiro de literatura fantástica que me deixou
extasiado.
Agora,
ao morrer, García Márquez cumpre o ato final do destino reservado aos grandes
gênios das artes: sair de cena para que suas obras deem seguimento eterno à
manutenção de sua memória. O legado de um grande escritor são os seus livros,
esses cubos de gelo fantásticos e indissolúveis, que pingam histórias urdidas
para aquecer a existência humana. O que García Márquez nos deixa são milhares
de anos de companhia ao usufruirmos a literatura de suas páginas. A humanidade
lhe é grata.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de abril de 2014)
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