Eu
tinha raiva mesmo era do Senhor Marinho. A carranca fechada, o olhar furtivo sobressaindo
por sobrancelhas espessas, a careca reluzente, tudo concorria para que o
aspecto físico do personagem me levasse sempre, no início de cada partida, não
só a desconfiar dele como a torcer para que fosse ele sempre o assassino do
Senhor Ninguém, o dono da mansão na qual era invariavelmente morto em todas as
partidas de “Detetive”, o jogo de tabuleiro que pautou muitas horas de minha
adolescência.
Mas
apesar de meu preconceito estabelecido contra o Senhor Marinho, nem sempre ele
era o culpado. Uma das graças do joguinho era justamente a possibilidade de
alternância do criminoso, bem como a arma utilizada e o cômodo em que a
atrocidade havia sido cometida. “Coronel Mostarda, com a faca, na cozinha”,
alguém acusava. E pá: de repente, alguém livrava a cara do Coronel Mostarda,
com seu monóculo e bigodão. “Dona Branca, com a chave-inglesa, no hall”.
Mas,
a Dona Branca? Com aquela carinha de governanta assustada? Assassinar o Senhor
Ninguém com uma chave-inglesa? Não poderia ser. Passavam uma, duas rodadas... e
nada de alguém aliviar a barra da Dona Branca... Será? De minha parte, estava
mais era desconfiando da sexy, esguia e esbelta Senhorita Rosa, estirada no
divã com sua piteira elegante, cujo charme não me enganava. Nas minhas
fantasias, imaginava a Senhorita Rosa fazendo par com o Professor Black, o
típico rato-de-biblioteca com cujo perfil eu me identificava por supô-lo um
leitor. Se bem que até mesmo ele, na rodada anterior, não havia pensado duas
vezes antes de eliminar o Senhor Ninguém com o cano no salão de festas. Pô, tandem tu, Professor Black?
Ah,
e não esqueçamos da Dona Violeta, minha segunda suspeita preferida, logo depois
do Senhor Marinho. Uma velhinha com cara de megera cujo nome permitia o
trocadilho para “Dona Violenta”, uma vez que cometia seus crimes alternando o
revólver, a corda e o candelabro, umas vezes na biblioteca, outras na sala de
música e até mesmo na cozinha, vejam só. Pobre do Senhor Ninguém.
O
que ficou daquelas tardes lúdicas com amigos e familiares ao redor do
tabuleiro, na Rua dos Viajantes, em Ijuí, foi o aprendizado de que as
aparências enganam. Nem sempre o feioso Senhor Marinho é o culpado. Às vezes, o
pior da humanidade pode se esconder sob o sorriso encantador de uma
aparentemente inocente Senhorita Rosa.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de abril de 2014)
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