Alguém, não me lembro quem, não
sei onde e nem há quanto tempo, comentou comigo o quão interessante seria se
nossa vida real, essa do dia-a-dia mesmo, fosse acompanhada por trilha sonora. Já
pensou, você ir sendo tirado da cama de manhãzinha ao som dos acordes suaves de
um piano jazzístico ou de uma melodia de Mozart, que vão invadindo o ambiente
do quarto de mansinho, a meio-tom, resgatando você do sono assim de uma maneira
delicada, diferentemente daqueles modos trogloditas empregados pelo despertador
ou pelo radiorrelógio, que de elegância e compostura não têm nada?
Aí você se levanta, ainda meio
dormindo, mas com um sorriso de bem-estar no rosto, e se dirige ao banheiro (ou
ao toilette, se for a amiga leitora; ou ao W.C., se for o leitor executivo; ou
ao lavabo mesmo, se estiver de visita incomodando parente) ao som de um blues
mais agitado, que é para acompanhar o movimento da escovação de dentes e da
lavagem de rosto e ir convocando os pensamentos e as lembranças a se perfilarem
para você poder começar a planejar o seu dia. No chuveiro, se você é daqueles
que cantam, a trilha se adequa a proporcionar apenas um acompanhamento musical
para permitir o brilho de sua voz encantando os azulejos da parede e o acrílico
do box (vidro temperado, se for no banheiro, ops, no toilette da amiga, eu sei,
eu sei). Caso contrário, vai rolar um rock ou uma MPB a seu gosto, para
incentivar os movimentos embaixo da água e acelerar o ensaboamento, porque o
frio anda de rachar e a coisa não pode ser das mais demoradas.
Depois, ao longo do dia, a trilha
sonora será basicamente incidental, afinal, não dá para se concentrar no
trabalho com Ana Carolina, Samuel Rosa ou Ozzy Osbourne azucrinando seus
ouvidos o tempo todo, né. Mas se você for chefe, por exemplo, e tiver de chamar
um subordinado para dar-lhe aquela bronca, surgirá no ar aquela música-tema do
filme “Tubarão” (tam-tam-tam-tam-tam) ou de “Psicose” (cri-cri-cri-cri), para sublinhar
o suspense. No final do dia, depois de ter matado mais dois leões, como sempre,
entrará no carro de volta para casa ao som da vitória de Ayrton Senna
(tann-tann-taaannnn), vitoriosos que somos por cruzarmos mais uma vez a linha
de chegada dessa gincana que é a vida comum e atribulada que povoa as
biografias de cada um de nós.
E dependendo do grau de
imodéstia de cada um, ao deitar de novo a cabeça no travesseiro à noite, para o
justo descanso... surgirão aplausos ao fundo... para dormirmos com um sorriso
de vencedores a embalar nossos sonhos...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de junho de 2014)
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