Tinha cabeça de bagre e
pescoço de abóbora. O nariz já chegava se metendo onde não era chamado, apesar
da recriminação dos olhos de águia. Era um boca-aberta, o que permitia detectar
a presença da língua afiada e de dentes de leite se revezando com outros, de
ouro. Escorria-lhe veneno pelo canto da boca.
Supus ter recebido dele
um aceno, ao qual quis responder, mas logo percebi que se tratava apenas de um
movimento involuntário de suas orelhas de abano. Ofereci-lhe um prato de sopa,
porém, comia como um passarinho, apesar de ter estômago de avestruz. Com voz de
trovão, afirmou possuir dois corações: um de pedra, outro de ouro. Não podia
rezar, porque uma mão era de ferro, com a qual se impunha, e a outra era leve,
que usava de forma velada.
Fiquei surpreso ao ser
informado de que sua barriga era de aluguel. Mas como não acreditar naquilo, ao
verificar por conta própria que seu caminhar balouçante decorria das pernas de
pau, do pé direito que era de pato e do esquerdo, de couve? Contou-me uma
história triste e deixou rolar pela cara de pau uma lágrima de crocodilo. Não
acreditei no que saía de sua boca de lobo, apesar de reconhecer nele uma
inteligência de coruja, mas com intenções de raposa velha.
Logo detectei que imaginava
ser seu umbigo o centro do mundo e dei-lhe um tapinha nas costas, que tinha
quentes. Achei que desejava partir devido ao gesto que fez para a porta, mas era
apenas seu dedo indicador, que era duro. Pediu um analgésico para aliviar a dor
que sentia no cotovelo, mas não pude ajudá-lo. Indignado com a acolhida
desastrada que recebia, disse que seguiria viagem rumo ao brejo, localizado
logo adiante do fim da picada.
Por mim, que fosse para
o inferno, pensei, mas logo me arrependi e refreei minha língua de cobra. Quis
brindar-lhe com um sorriso de despedida, mas era tarde demais, minha cara
estava dura e desejei ver-lhe pelas costas. Saiu a galope sem que eu
conseguisse descobrir quem ou o que era, de onde vinha e o que desejava.
Percebi, então, que eu era um burro. Uma fome leonina começava a me invadir,
fazendo meu estômago roncar como um bugio. Preocupado, corri para a frente do
espelho, que não refletia nada.
É isso o que dá ler “A
Ilha do Dr. Moreau” intercalando com “O Homem Invisível” pouco antes de dormir.
Overdose de H. G. Wells pode criar pesadelos. Felizmente, todos eles
dissipáveis com um breve sopro de realidade. Essa, sim, assombrosa e difícil de
assoprar para longe, mesmo possuindo pulmões de aço.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de março de 2014)
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