Até
admito que possa ser uma grande invenção da humanidade, mas vocês vão me
desculpar, eu não confio no piloto automático. Basta ver o que ele anda
aprontando por aí afora, a começar pelas nossas vidinhas cotidianescas
(“cotidianescas” inventei agora e quero royalties pelo uso).
Noite
dessas, por exemplo. Cheguei em casa, vindo do escritório (meu escritório fica
no quarto ao lado, junto com as estantes dos livros, mas é onde trabalho e quem
é que disse que eu tinha de dar satisfação?), tirei os sapatos, calcei as
pantufas (sim, porque trabalho em casa, mas sempre de sapatos, nada de
chinelinhas flanando de um lado para o outro em horário de expediente) e decidi
que, para o relax ser completo, cairia bem, naquela hora, uma tigela com o doce
de pêssego em calda produzido por minha sogra. A compota estava ali na
geladeira e lá fui eu: lotei a tigelinha com nacos saborosos de pêssego
cobertos por aquela calda grossa, doce, cremosa, que logo estaria banhando de
sabor minhas papilas, as tais das gustativas, de que gosto tanto.
Mas
foi terminar de lotar a tigelinha que uma lembrança me assaltou a mente e,
antes de me botar a comer, corri para o escritório para anotar na agenda uma
tarefa profissional que teria de realizar no dia seguinte. Vai que esquecesse! Pronto,
anotação feita, estava apto a retornar à sala para fazer companhia à esposa, ao
sofá e à televisão, saboreando meus pêssegos. Só que... cadê os pêssegos?
E
quem disse que eu encontrava a tigela farta de pêssegos em calda da sogra que
eu recém havia servido, antes da interrupção da lembrança da dita tarefa
profissional? Onde é que eu largara a tralha? Refiz o trajeto da geladeira até
a escrivaninha, vasculhei as estantes do escritório, voltei à cozinha, abri a
geladeira, revirei o sofá, ergui almofadas, mandei a esposa parar de rir e sair
um pouco para o lado e nada, nada, nada da tigelinha de pêssego em calda. E não
tinha mais nem gato em casa para levar a culpa.
Bom,
é claro que, ao fim da celeuma, a tigelinha reapareceu espiando por detrás do
balcão da cozinha, sem sair do lugar onde eu a havia deixado no momento do
apagão causado pela lembrança (pode isso?) para, em pleno piloto automático, ir
anotar a tarefa na agenda. Não gosto de navegar em piloto automático porque
sempre dá nisso: perde-se tigelinha com pêssego em calda, cruzam-se sinais
vermelhos, fala-se o que não devia, defende-se o indefensável... e, vem cá...
cadê a crônica do Pioneiro que eu
havia escrito agora?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de março de 2014)
Nenhum comentário:
Postar um comentário