segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Olhar nublado

Foi minha mãe quem me ensinou a decifrar nuvens. O segredo ela ia revelando a mim e à minha irmã naquelas vezes em que viajávamos de carro em família de Ijuí a São Borja a fim de visitar os avós que lá moravam. O trajeto se afigurava intolerantemente comprido para duas crianças acostumadas a passar as tardes brincando ao ar livre e era preciso botar a funcionar a imaginação a fim de nos distrair no banco de trás do Corcel.
Para isso, nossa mãe, municiada com uma inesgotável fonte de criatividade, propunha brincadeiras as mais diversas durante o trajeto. Uma das que mais nos distraíam era a de vasculhar as nuvens para detectar formas nelas escondidas. Bastava calibrar um pouquinho o olhar, dirigindo-o para as alvas e volumosas formações estacionadas nos céus dos vastos campos que ladeavam a estrada, que as figuras começavam a aparecer. Eu avistava o Mickey de perfil e logo de pronto, mais acima, minha irmã via o Pateta. Mais para a direita, aquela nuvenzinha solitária em poucos segundos se revelava a clara imagem de um sapato. Dito isso, custava nada para alguém enxergar (exceto meu pai, lógico, que previdentemente matinha os olhos atentos à estrada), saindo da nuvem, a imagem de um homem de chapéu e cachimbo.
 Assim vencíamos dezenas de quilômetros antes de enjoarmos da brincadeira e tornarmos a ficar inquietos. Sem perder tempo, lá vinha a mãe de novo, propondo outro entretenimento: contar carros! Nesse jogo, cabia a cada um de nós (agora, o pai se permitia participar) escolher uma marca de automóvel (nos anos 70 não havia muito mais do que umas dez circulando pelas estradas brasileiras) e passar a contar quantos exemplares cruzavam no sentido contrário. Vencia quem contasse mais Opalas ou Variantes ou Gordinis até o final da jornada. Fusca não valia, pois havia demais e quem o escolhesse venceria o certame familiar na certa.

Observando agora o mundo daqui do alto do prédio onde moro, vejo nuvens no céu acima e automóveis cruzarem acelerados pelas ruas logo abaixo e me ponho a pensar sobre o que a adultice acaba fazendo com a gente. Hoje as nuvens me trazem o receio da chuva e, os carros, o medo de acidentes. Mudaram as nuvens? Os carros? Mudei eu ou todo o meu mundo? Temo que talvez nem mesmo a imaginação de minha mãe baste para solucionar essa inquietação do presente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de novembro de 2013)

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