segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Ei, tudo vai melhorar, Jud!


O que você poderia esperar de um cara chamado Jud Fry, se você souber que ele desconhece seus pais verdadeiros, foi criado a mão de ferro pela família de seus patrões em um rancho interiorano, possui parca educação formal, trabalha pesado de sol a sol e é dotado de um temperamento taciturno, rude e agressivo? Primeiro, você vai manter distância regulamentar dele, claro. Depois, vai imaginar que uma criatura dessas não poderá jamais inspirar nada de bom no mundo e, mais tarde, terá de engolir seus próprios pensamentos, porque não é bem assim que as coisas são. De que diabos estou falando? Siga lendo, estimada leitora, pertinaz leitor, porque, como sabemos, isto é uma crônica de segunda e surpresas espreitam a dois passos da esquina.
Jud Fry, em primeiro lugar, não existe. Ou melhor, existe, porém, só no âmbito da ficção. Ele é um dos personagens principais de uma trama muito popular nos Estados Unidos nas décadas de 1940 e 1950, intitulada “Oklahoma!”, que virou peça teatral musical em 1943 e acabou transposta para o cinema em 1955. A história é simples: Laurey Williams é a filha do dono de um rancho no qual trabalha o bom moço conhecido como Curly. Os dois se apaixonam, porém, entre eles, interpõe-se o malévolo Jud, que também ama Laurey e faz o diabo para impedir que o casal de apaixonados fique junto. Jud, pois, é o vilão da história.
No entanto, alguns anos mais tarde, ele serviu de inspiração para o músico britânico Paul McCartney solucionar uma passagem de uma das mais populares canções dos Beatles de todos os tempos: “Hey Jude”, lançada em 26 de agosto de 1968, exatos 50 anos atrás. Paul compôs a música pensando em levar conforto a Julian Lennon, então com cinco anos de idade, que se via deprimido frente à separação de seus pais, John Lennon (que agora amava Yoko Ono) e Cynthia Powell. “Hey, Jules”, primeiramente escreveu Paul, para conferir a sonoridade e o ritmo adequados ao andamento melódico da canção (ao invés de “Hey, Julian”). Depois, Paul decidiu transformar o personagem da letra em “Jude”, inspirado, como revelou mais tarde, no nome do personagem de “Oklahoma!”, filme que muito o marcara na adolescência. O grosseiro Jud do musical hollywoodiano, portanto, induziu o florescer do lírico e encantador Jude dos Beatles. Afinal, sempre é possível transformar uma situação ruim em algo melhor, basta não querer “carregar o mundo em seus ombros” e tentar “fazer melhor, melhor, melhor”, conforme diz a cinquentona canção, que, como esta crônica de segunda, encerra com infindáveis e alegóricos “na, na, na, nanana...”.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 27 de agosto de 2018)

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Parente, mas não serpente


Muito mais do que aranhas, poeira e ácaro podem saltar de dentro de caixas de guardados. Nostálgico e memorialista como sou, cultivo fissura pelo ato de mergulhar dedos, nariz, óculos e atenções nesses depositórios de lembranças, de vidas e de memórias que resguardam o passar das eras e das biografias por meio do acúmulo (ordenado ou não) de cartas, documentos, fotografias e papéis diversos. Jogar uma caixa de memorabília no meu colo é o atalho mais fácil para garantir que eu fique quietinho num canto fuçando ali, imerso na pescaria de universos passados, catando preciosidades que o Tempo não foi capaz de apagar por meio da ação corrosiva que costuma produzir sobre a manutenção da Memória. Logo começo a sentir saudades de gente que nunca conheci, de tempos que não vivi, de coisas que outros fizeram. É assim que produzo a mágica de evocar vida a partir do silêncio que adormece nas fronhas do passado.
Dia desses, uma tia arremessou-me duas caixas dessas, repletas de tesouros familiares, para meu deleite e surpresa. Em meio a todo o farto material que meus dedos iam capturando, deparei, de repente, com a fotografia antiga, em preto e branco, de um personagem de figura marcante: testa larga e enrugada, olhos claros fundos, nariz aquilino e uma longa, espessa e desgrenhada barba que lhe caía até quase a altura do umbigo. Tratava-se de um tataravô meu (pai da mãe de minha avó paterna) e descobri que portava uma biografia excitante: nasceu na Áustria no início do século 19, migrou ao Brasil jovem, circulou por conflitos no Rio Grande do Sul e no Uruguai antes de partir para os Estados Unidos. Lá, ingressou como voluntário para lutar na Guerra da Secessão (1861 e 1865). Sobreviveu, voltou ao Brasil e estabeleceu-se definitivamente no Rio Grande do Sul, em Lajeado, onde chegou a ser conselheiro municipal no início do século 20 e conquistou medalha em uma Feira Agrícola Industrial realizada ali em 1903, por apresentar produtos de qualidade como arroz, canjica e azeite de amendoim, o que finalmente explica a origem de meu pendor para a gastronomia amadora.
Mas espera aí. E a Guerra da Secessão? Será que meu ancestral optou pelo lado certo naquele histórico episódio que dividiu norte-americanos entre escravagistas e antiescravagistas? Mais adiante, descubro que sim: lutou junto aos nortistas, que defendiam o fim da escravatura no país. Ufa! Que comesse canjica e óleo de amendoim eu admito, mas seria indigesto encarar parte de meu DNA composto por ancestralidade discriminatória e intolerante. Parabéns, caro tata!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 20 de agosto de 2018)

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Como ver "flores em você"


Somos diferentes, somos diversos, somos únicos. Não somos iguais. Pensamos diferente, agimos diferente, cultivamos gostos e jeitos próprios e exclusivos. Não somos produzidos em série, frutos de uma linha de montagem de automóveis ou de máquinas de lavar roupa. Somos gerados de forma especial, um a um, personalizadamente. Somos produção customizada, ao gosto específico de cada cliente, ou seja, nós mesmos. Eu sou cliente de mim mesmo, e eu moldo meu ser de acordo com minhas visões de mundo, meus gostos, minhas reflexões. Que são óbvia e naturalmente diferentes das suas e das de todos os demais dos sete bilhões de habitantes deste planeta repleto de vida. “Nessa vida passageira, eu sou eu, você é você”, canta (e resume) o Ira!
Lançar-se à vida imaginando que é seu dever reduzir o mundo inteiro aos limites de ação e percepção de seu próprio umbigo, procurando homogeneizar a rica existência em volta e subjugá-la aos seus próprios padrões, tendo a si mesmo como modelo, é o ápice da estultice e do desperdício de energia. A régua da medida do mundo não é o tamanho de nosso umbigo. Ele, aliás, é pequeno demais para abarcar a amplidão da diversidade que pulula em meio à florida e encantadora variedade das gentes que existem no mundo e que o fazem tão rico, divertido, fascinante. A diferença é o que encanta. Porque não somos iguais, e todas as tentativas (pessoais, coletivas e impostas) de homogeneizar a expressão da existência humana vão sempre incorrer no pecado inaceitável da intolerância, da barbárie, da psicopatia, do totalitarismo, do nazismo.
Somos diferentes. Somos humanos. Seres humanos não são produzidos em fábricas que determinam e delimitam formas de pensar, de amar, de agir, de ser, de parecer, de dizer, de ver, de perceber, de sentir, de se relacionar. Precisamos, sim, observar regras gerais de conduta social e de convivência que permitam justamente vivenciarmos e expressarmos nossas diferenças de forma pacífica dentro do espaço coletivo, sem que imponhamos nossos interesses pessoais aos demais de forma a inviabilizar a existência do outro. Para isso, as leis. Fora isso, a lei da convivência harmônica é uma só: respeite, aceite e conviva com as diferenças (e mais: aprenda a apreciá-las). Seu umbigo não é a régua do mundo, que é bem maior do que isso e está fora do alcance de sua jurisdição. Eu não quero um planeta repleto de “eus mesmos”. Eu cultivo o fascínio pela diferença e pela amplitude de mundo que o outro me proporciona. É assim que “vejo flores em você” e afasto de mim a intolerância da ira, não é mesmo, Ira!?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 13 de agosto de 2018)

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Truques para estender o ser


O que queremos ser na vida? Sabemos que temos somente uma vida para viver (ao menos, essa que estamos vivendo é só essa, sob essa identidade, nascidos nessa específica configuração familiar, social, temporal e geográfica) e, por isso, em alguns momentos da caminhada, impõe-se esse antigo e batido dilema: “o que vou ser quando crescer”? Ou, também, “agora que cresci, estou sendo aquilo que realmente desejava e desejo ser?”. Ou, ainda: “mesmo sendo o que sou, ainda posso mudar de rumo, reinventar-me, ser alguma outra coisa ou, enfim, vir a ser aquilo que sempre quis?”. Pois é, trata-se de um dilema que, dependendo do caso, pode nos acompanhar por toda a nossa existência, materializando-se na forma de frustração ou de realização pessoal. Ou, ainda, como sublimação de desejo não realizado. Vai saber.
Eu, na minha infância, primeiro desejava ser bombeiro. Correr pela cidade encarapitado em cima de um flamejante caminhão de bombeiros reluzindo em vermelho, a sirene aberta abrindo passagem, rumo ao cumprimento de missões que resultariam no salvamento de inocentes e no combate a tragédias, era meu sonho. Abandonei o intento no mesmo dia em que vi com meus próprios olhos uma casa arder em chamas na vizinhança e o perigo real a que os bravos combatentes do fogo se expunham no cumprimento do dever. Não, aquilo não era para mim. Seria astronauta, mesmo, igual ao trio Armstrong, Collins e Aldrin, os primeiros a andarem pela Lua. Fascinava-me observar o céu à noite, detectar os nomes das estrelas, constelações e planetas que meu avô me ensinava a identificar. Mas esse sonho caiu por terra quando soube que foguetes podiam explodir nos testes, como já havia acontecido antes, e eu, hein, tô fora! Optei então por ser agente secreto, igual ao 007 do Sean Connery. Perguntei a meu pai o que deveria fazer para me transformar em um deles, e recebi como resposta bem humorada: “em primeiro lugar, não conta nada pra ninguém”. Achei difícil seguir a regra e abandonei também essa meta.
No final das contas, me transformei em jornalista e escritor (atividades em que o foco é contar tudo para todo mundo). Descobri que a vida, curta como é, precisa ter um foco, não dá para querer ser escritor, astrólogo, caminhoneiro, cozinheiro, professor, detetive e gato, tudo ao mesmo tempo. Vive-se apenas uma vida, com foco e dedicação. As demais, aquelas que poderiam ter sido, mas não foram, a gente supre vivenciando-as alegremente nas páginas dos livros e nas telas dos cinemas. Afinal, as artes expressam exatamente nisso o seu valor vital e redentor. Ufa!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 6 de agosto de 2018)