sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Burrada de macaco velho


Dia desses, fui traído pela soberba da segurança absoluta que acomete os profissionais quando eles acham que já são macacos velhos e estão imunes aos procedimentos padrão que existem em todas as atividades justamente para evitar as surpresas desagradáveis que advêm da inobservância dessas práticas. Sou macaco velho no jornalismo e na escrita, mas minhas horas de voo sobre teclados de máquinas de escrever (na antiguidade) e de computadores e notebooks (na modernidade) não imunizam contra as catástrofes que a soberba pode acarretar, caso o macaco confie mais em suas barbas brancas do que na rigidez do galho em que se empoleira.
Pois, dia desses, quebrou-se o galho e fui-me direto ao chão com todo o peso de minha longeva macaquice, incidente que me proporcionou uma experiência que eu julgava jamais ter de reviver após os primeiros erros cometidos na atividade. A coisa se deu em uma manhã de quarta-feira, dia da semana em que me dedico a escrever (se ainda não o fiz) ou a revisar (se já o fiz) a crônica de minha autoria que há mais de três anos o Pioneiro publica neste espaço às sextas-feiras. Acometido por súbita inspiração, pus a cachola em sintonia com os dedos e fui derrubando sobre as teclas do notebook o texto que ia saindo limpinho, criativo, bacaninha, uma ideia encadeando na outra, as figuras de linguagem brotando sem evocar frases-feitas, a sinfonia literária tomando conta das letrinhas na produção de uma crônica com “C” maiúsculo, mas, tergiverso.
Sucedeu que meti o ponto final, satisfeito com o escrito, e fechei a tela para buscar inspiração para o título da dita crônica, e foi aí que deu-se a burrada. Eu não havia salvado o texto em momento algum enquanto me deixava possuir pelo surto criativo. Logo eu, que, desde o advento do computador, tenho o hábito de salvar tudo a cada frase digitada, justamente para evitar esse tipo de drama que já vi apavorar vários colegas nas redações pelas quais passei. Logo eu.
Reescrevi a crônica, mas claro que não ficou a mesma coisa. Prudência é um remédio cujas doses devem ser incrementadas, especialmente na velhice da macacada. Aprendi na marra. Será?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de fevereiro de 2013)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Não conte com a sorte


Sonhou com os cinco números, e na sequência em que seriam sorteados pela Caixa Econômica Federal. Foi um sonho claro e vívido, como há muito tempo não lhe acontecia. Viu os globos imensos girarem e as moças bonitas de pernas de fora sacando uma a uma as cinco bolinhas contendo os números sorteados da Plurasena da Virada.

Foi assim, um atrás do outro... pim... pim... pim... pim... pim! Pronto! O bom da coisa é que acordou imediatamente após o sorteio onírico do último número. Assim, conseguiu saltar da cama no meio da madrugada e correr tateando até o quarto ao lado, sem acender luz alguma, atrás de caneta e papel para anotar as cinco dezenas que lhe transformariam a vida. Rabiscou os números na folha de um bloco de rascunho, aproveitando a fraca iluminação que entrava pelas frestas da persiana, e só então começou a se acalmar.

Acendeu a luz e mirou fixamente os números, que a essa altura já sabia de cor. Pim... pim... pim... pim... pim... Barbaridade! Dessa vez não havia errada! Claro que eram as dezenas que seriam sorteadas no dia seguinte, na edição extra de final de ano da Plurasena! Não era um apostador regular, jogava quando lhe dava na telha, e tampouco era ligado em superstições. Mas um sonho desses, desse jeito, ah não, isso não podia ser ignorado. Era um sinal, e não deixaria de escutá-lo.
Viajaria no dia seguinte à sua cidadezinha natal, para passar a virada do ano com os familiares que lá ainda moravam, e, como chegaria ainda antes do meio-dia e as apostas podiam ser feitas até as duas da tarde, decidiu que jogaria seu certeiro palpite lá mesmo, em Uvanova, onde certamente as filas nas agências lotéricas seriam bem menores do que em Tapariu, onde vivia. No dia seguinte, chegou em Uvanova, abraçou a parentada, almoçou a galinhada feita pela avó e correu para a única agência lotérica da cidade às 13h30. Porém, o dono da lotérica, frente ao parco movimento naquele último dia no ano, decidira fechar as portas ao meio-dia e já se fora para Nova Tomatina.

A magia do sonho se transformou em pesadelo devido às decisões erradas que tomara no mundo desperto. Nem é preciso dizer que se recusou a acompanhar o sorteio dos números... pim... pim... pim... pim... pim...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de fevereiro de 2013) 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

As agruras da Esmeraldina


Dona Esmeraldina teve um dia estafante ao longo da semana. Foi um estresse contínuo tentar encontrar vagas disponíveis nos shoppings da cidade, para estacionar com largueza a sua espaçosa caminhonetona carésima, adquirida para trafegar acima do nível do trânsito, lugar onde a altura alcançada por seu nariz é mais adequado à extensão de seu extrato bancário. Felizmente, sempre é possível taxiar e pousá-la ocupando o espaço de duas vagas, que certamente é criado nesses locais especialmente para ela e suas semelhantes parceiras do champanhe das cinco, quando colocam as cintilantes fofocas em dia.
Dona Esmeraldina não vê a hora, hoje, de se encontrar com as amiguinhas embrincadas, espocar uma Veuve Cliquot brut rosé e narrar suas peripécias perdulárias pelos corredores do Shopping Prataria, do Shopping Igarapé, do Shopping São Gastutino, do Shopping Tricô. Dona Esmeraldina, afinal, tem seus direitos, pois veio de baixo, nasceu em família trabalhadora humilde, casou com marido empreendedor e hoje tem casa na praia (e quando fala em praia, não está falando em litoral gaúcho, fique bem claro), viaja para o exterior uma vez a cada dois meses, lapidou o gosto e o paladar em restaurantes finos internacionais, sabe falar “merci”, trata os empregados como se fossem gente, essas coisas todas.
O que dá nos nervos da dona Esmeraldina, e isso ela vai comentar com as amigas hoje, são essas notícias de tragédias que a imprensa insiste em divulgar só para incomodar a vida da gente. “Vá lá, que noticiem uma vez que pegou fogo uma boate não sei onde, mas ficar insistindo nisso todos os dias, ah, pra que, me poupem. O que eu tenho a ver com a tragédia dos outros? Cada um tem a sua sina. Ninguém se preocupa comigo quando a concessionária atrasa seis semanas a entrega de meu novo caminhonetão grandão, e eu tenho de continuar circulando com essa velharia que já vai fazer seis meses de uso e desvaloriza a cada nova estacionada no shopping. Tenho o direito de não ser incomodada na minha bolha, ou melhor, na minha ostra, porque bolha é coisa de pobre e ostras geram pérolas, como essas aqui do colar que comprei hoje ali na...”
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de fevereiro de 2013)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Nunca dá nada


O brasileiro ainda é um cidadão imaturo que adora brincar com fogo, mas não gosta de se queimar. E, quando isso ocorre, apesar dos insistentes avisos preventivos recebidos, se julga injustiçado. A analogia é triste, mas se impõe às vésperas de completar uma semana a tragédia de Santa Maria, que interrompeu a vida de mais de 200 jovens na madrugada do último domingo.
A sucessão de imprevidências que culminou na transformação da boate Kiss em uma armadilha mortal deriva, em seu conjunto e essência, de um pecado capital que rege a conduta e a visão de mundo da maioria dos brasileiros, fator gerador de diversos males: a inconsequência. Faz parte da (in)cultura nacional ser inconsequente, acreditar vivamente que a transgressão das regras não dá em nada, não gera reações. Mas quando algo sai errado e o ato inconsequente colhe os seus lógicos frutos, eles invariavelmente são trágicos e poderiam, sim, terem sido evitados.
É o velho pensamento de que “não vai dar nada”. Não vai dar nada soltar foguetes pirotécnicos durante o show, dentro da boate, afinal, sempre fizeram isso e nunca deu nada. Até que deu. Não vai dar nada seguir funcionando, mesmo com alvará vencido há seis meses. Até que deu. Não vai dar nada deixar de treinar os funcionários para atuar em caso de tumulto. Até que deu. Não vai dar nada hoje, mesmo que não se verifique a condição dos extintores de incêndio. Até que deu. Também não vai dar nada dirigir em alta velocidade, ou embriagado, ou ultrapassar em local proibido. Sempre se fez e nunca deu nada. Até que dá. Não dá nada ter cachorro irado em casa, pois ele nunca atacou ninguém. Até o dia em que estraçalha o filho do vizinho ou a garganta do próprio dono.
Nunca vai dar nada. Nós, brasileiros, somos super-humanos, as leis são enfeites pirotécnicos que estão aí para serem molequemente burladas por nós todos, com risinhos safadinhos, porque nunca dá nada. Até o dia em que dá. É quando queimamos a mão em decorrência da nossa soberba e inconsequência crônicas. E aí quem paga a fatura, na maioria dos casos, são justamente os inocentes, porque, um dia, acaba dando em algo. O que não dá mais é sempre tudo acabar em pizza. Que não seja esse o caso.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de fevereiro de 2013)