segunda-feira, 30 de julho de 2018

Santo segundo plano, Watson!


Todos estão convencidos de que a ideia partiu de Watson. Era o único que se apresentava, ao menos segundo uma primeira avaliação, com capacidade intelectual mínima suficiente para conceber a proposta, o propósito, a configuração e a forma de agir do grupo. Alguma coisa de elementar, afinal, haveria de ter aprendido em decorrência dos anos de convívio com o pernóstico fumador de cachimbo da Baker Street, supúnhamos. E creio que supúnhamos certo, pois que seria difícil concordar em atribuir a Sancho, o da pança, a autoria da criação do intento, uma vez que, literalmente preconceituosos como éramos, não víamos nele resquícios de atributos capazes de situá-lo na esfera da atuação dita “intelectual”, ainda que periférica. “Naquela cachola só sopram ventos advindos daquele traumático encontro com as pás dos moinhos”, cochichava um de nós.
O fato é que passaram a se reunir em segredo sempre que os volumes que habitavam eram fechados e guardados de volta nas estantes, ou descansados sobre os criados-mudos nos quartos de dormir, ou recolocados de volta nas prateleiras por bibliotecárias zelosas. O que pudemos apurar é que o primeiro encontro contou somente com a presença dos dois já citados. Porém, como as notícias também voam entre estantes e entrelinhas, não demorou até vários outros passarem a se apresentar, solicitando ingresso na seleta e secreta entidade, em que se viam representados. Sexta-feira foi admitido de imediato, comprovando que a boa nova se espalhava às mais remotas ilhas. A maré favorável e os bons ventos trouxeram ao mesmo porto também Ismael. Renfield obteve anuência, mas não sem gerar certo desconforto. Na sequência, vieram Guildenstern e Rosencrantz, cuja presença cimentava em todos a convicção de que o problema essencial era “ser e deixar de não ser”, essa era a questão.
“Ser ou não ser” o que, pergunta a madama? Ah, sim, desculpe. Esqueci de informar que estávamos investigando o surgimento de um grupelho subversivo literário autodenominado “A Convenção dos Coadjuvantes”, destinado a reunir personagens cansados de serem ofuscados pela opressão egocêntrica dos protagonistas das páginas dos livros que habitavam. Mas a coisa morreu na casca com a chegada de um mascarado de sunga verde e capa amarela, que revoltou Watson e o fez retornar, injuriado, ao modesto aposento no 221-B da Baker Street. “Ah, não! Robin, não!”, teria vituperado, ao abandonar o projeto. Afinal, ninguém gosta de ser coadjuvante, é verdade, mas assumir protagonismo a qualquer custo e em qualquer companhia também não dá, né, madama!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 30 de julho de 2018)

segunda-feira, 23 de julho de 2018

O que não vem na conta


A solidão transportada pela madrugada se estende mais rápido nos bairros em que os paralelepípedos revestem as ruas. Neles, em seus perfis periféricos e arrabaldinos, o asfalto central inexistente desconvida ao cruzar célere dos automóveis tardios, permitindo que gatos pardos (como todos o são a essas horas adultas) agora exibam destemidos e garbosos as suas felinices pelo centro das vias, transformadas em passarelas das quais se apossam para desfilar suas empáfias, secretas e noturnas. A tênue luz amarelada jorrada pelos postes de iluminação pública produz bolsões ovalados de uma claridade opaca sobre fragmentos da rua, originando um tabuleiro de xadrez intercalado entre claro e escuro a cada vintena de metros ou dezena de apressadas passadas do transeunte ímpar que cruza o nada, vindo de nenhures, mãos nos bolsos, rumando a lonjuras enquanto machuca o silêncio com o fincar cadenciado da sola do sapato na pedra fria forte sólida da rua, ecoando poesia concreta sem a intenção de ser.
Em horas assim, a companhia da solidão da rua é o silêncio que dela emerge, quebrado de tempo em tempo pelas lufadas do vento negro que sopra de longe, sacudindo fios de luz onde agora nenhum passarinho se assenta. Também eles já se recolheram a seus ninhos ermos e secretos, vitalmente afastados dos olhares da urbe que, enfim, adormece. Quem cruza as ruas é o vento, ele só, dobrando esquinas sem dar sinal, avançando semáforos, ignorando preferências, correndo livre a fazer inveja ao jovem, ao tolo, ao imprudente e ao estranho que segue espetando sapatos agora lá longe, bem longe, escuridão adentro, entregando-se ao engolfar aveludado da noite que o suga para entranhas perenes. Quem era? Quem é? Ainda será, agora que foi-se? Dele, restam os sons dos últimos passos que também evanescem no longe da cena.
Silêncio. Vento e silêncio. E um novo gato que passa, talvez o mesmo, talvez outro, não há como saber, afinal, é pardo, como qualquer um que habite essas horas tardas. Nessa cena deveria haver lua, mas lua não há. Uma manta de nuvens age de escudo e impede o fluir do lume das estrelas, dos planetas e de qualquer outro ente brilhoso que poderia aliviar com cintilâncias a aura soturna que teima em imperar. A pouca luz que vigora é essa, da rede de postes, pensada para alumiar solitudes e nadas profundos de eus imprevistos tal gato solitário ou pardo passante. Serve também para luzir a pouca inspiração de um cronista de segunda, mas isso, pelo menos, não vem acrescido na conta da luz ao final do mês. Poesia noturna ainda nos chega de graça.


(Crônica publicada no jornal "Pioneiro" de Caxias do Sul em 23 de julho de 2018)

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Cuidar de casa dentro e fora


Estou convencido de que uma das fórmulas eficazes para conquistar mais qualidade de vida (e a partir disso, intrinsicamente, obter saúde psíquica e física, longevidade com excelência e paz de espírito) decorre da convivência em ambientes sadios. Isso tanto externa quanto internamente. Se é verdade que, a partir dos hábitos (comportamentais e alimentares) que decidimos adotar, é possível proporcionar ao nosso organismo um ambiente interno sadio, e assim, por conseguinte, promover saúde física e mental ao nosso corpo, então é verdade que a convivência diária em ambientes físicos externos psiquicamente sadios também é capaz de produzir saúde tanto física quanto mental.
Tanto nosso corpo precisa ser constituído de um ambiente interno sadio (para evitar as doenças e prolongar a vida com saúde) quanto nosso entorno precisa ser moldado por ambientes que nos tragam paz de espírito e permitam um viver harmonioso, criativo, edificante, construtivo, colaborativo, feliz e cidadão. Se é correto afirmar que devemos evitar poluir nosso organismo com lixo alimentar a fim de zelar pela nossa saúde orgânica, é também verdade que devemos evitar nossa inserção e permanência em ambientes psiquicamente perniciosos, que adoentam nossa alma. Óbvio que tanto um quanto outro quadro depende também de nossa própria ação proativa. Cabe a mim decidir o que ingerir a fim de zelar pela minha saúde física, e cabe também a mim me esforçar para que os ambientes em que me insiro sejam sadios. E quando detectamos que nossas ações não bastam para transformar o quadro, o negócio é optar pelo recuo estratégico: não mais frequentar o local pernicioso, a relação perniciosa, o contexto pernicioso. Saber afastar-se do que nos faz mal é uma das chaves da felicidade e do sucesso.
Dia desses, fui surpreendido por ver-me inserido em um ambiente de trabalho carregado por energias positivas que jamais imaginaria encontrar naquele tipo de instituição. As pessoas que ali dispensam oito ou mais horas diárias de suas vidas fazem questão de se cumprimentar umas às outras com entusiásticos e genuínos “bons dias” a cada nova jornada. Olham-se nos rostos, sorriem, apertam-se as mãos. E não o fazem por obrigação de manual interno de conduta, por determinação gerencial. Fazem porque querem, e esse hábito impregna a atmosfera com uma energia sadia e inspiradora que se apodera até mesmo do visitante e do colaborador eventual, inserido de imediato em um ambiente no qual tem prazer em transitar. Pequenos gestos que produzem grandes efeitos. Infelizmente, ainda tão raros.


(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 16 de julho de 2018)

segunda-feira, 9 de julho de 2018

O limpador de sapatos



“O limpador de sapatos” é como ficou conhecida e entrou para a História a primeira imagem registrada fotograficamente de um ser humano. Na verdade, aparecem no retrato dois seres humanos: o limpador de sapatos em si, agachado à direita, no canto inferior esquerdo da composição, e o cliente que faz uso de seus serviços, o dono dos sapatos, à esquerda, em pé, com uma perna alçada e apoiada sobre a caixa a partir da qual os pisantes são lustrados. Na verdade, também, não se trata de uma fotografia na concepção atual do termo, mas, sim, de um daguerreótipo, método inventado pelo cientista francês Louis Daguerre (1789-1851), um dos precursores mundiais dos sistemas de captura e fixação de imagens por meio de processos químicos.
O flagrante típico do cotidiano foi obtido a partir da janela de um prédio em que Daguerre se instalou com sua parafernália, nos subúrbios de Paris, há exatos 180 anos, em 1838. Naqueles tempos de antanho, ele e outros inventores davam os primeiros passos para a rápida criação dos processos fotográficos à base de filmes, que passariam a registrar a saga da humanidade a partir de então, resultando décadas mais tarde nas ultramodernas câmeras digitais e nos smartphones, que permitem o desvario sem fronteiras da expressão da vaidade e do cultivo do narcisismo coletivo por meio das adoradas selfies, de reprodução instantânea, porque, afinal, não faz bem para o ego deixar a autoestima esperando. Vale aqui ressaltar e contrastar o tamanho do anonimato a que estão relegadas para sempre essas duas históricas figuras, que, sem jamais terem se dado por conta disso, acabaram se transformando nos dois primeiros seres humanos a terem suas imagens eternizadas por meio de um retrato fotográfico. Simplesmente estavam no lugar certo na hora certa, pessoas comuns vivendo em Paris suas vidas comuns. Delas, nada mais sabemos, sequer os detalhes de suas feições (apenas as silhuetas esfumaçadas pelo tempo).
O que sabemos é que, há quase dois séculos, os humanos dominam a técnica de registrar e perenizar as imagens de si mesmos e dos outros, de seus feitos e defeitos, sem mais precisar recorrer aos pintores e aos escultores que, via de regra, só retratavam para a posteridade a elite abonada e afamada. De Daguerre para cá, a possibilidade de captura de nossas imagens próprias concorre para tirar qualquer um de nós do anonimato e alcançar a perenidade visual. Mas a questão que permanece é: que tipo de imagem andamos tratando de cultivar? E, dependendo da resposta, será ela passível de ser revelada por uma selfie? Vai saber...
(Crônica publicada no jornal"Pioneiro" em 9 de julho de 2018)

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Esse deserto sem fronteiras


Estamos sós. Após tantas especulações, depois de tanto investimento em pesquisas astronômicas e astrofísicas, após tantos debates e dezenas de centenas de milhares de relatos de possíveis encontros e de supostos avistamentos, após tantos filmes e livros de ficção-científica, parece que, a bem da verdade, a humanidade é mesmo a única expressão de vida inteligente existente em todo o universo. Ao menos, essa é a conclusão a que chegaram recentemente três (obviamente inteligentes) cientistas da Universidade de Oxford, que se dedicaram a analisar minuciosamente as leis da probabilidade que entram em cena quando a questão é admitir ou não, na teoria, a existência de outras civilizações habitando outros planetas em distantes galáxias. Conforme o resultado do estudo, é bom irmos nos acostumando com a ideia: o quintal do universo é todo nosso. Não temos vizinhos. Estamos sós.
Os autores do estudo são Anders Sandberg, pesquisador do Instituto Futuro da Humanidade, da Universidade de Oxford; o engenheiro Eric Drexler, responsável por popularizar o conceito de nanotecnologia; e Tod Ord, professor de Filosofia também em Oxford. Detalhando as coisas, o trio de humanas inteligências científicas demonstra que, apesar do incontestável fato de existirem bilhões de galáxias no universo, e que cada uma dessas galáxias contempla a possibilidade (a possibilidade, ressalte-se bem, e não a certeza inequívoca) da existência em seus sistemas solares de planetas habitáveis, e que em alguns desses trocentos milhões de planetas habitáveis pode ter surgido vida, e entre essas tantas vidas poder haver vida inteligente, apesar disso tudo, nada, absolutamente nada, mas nadica de nada e nadinha garante que de fato ela exista fora daqui da Terra. E dizem mais, os três impiedosos inteligentes cientistas oxfordianos: asseguram que a possibilidade de estarmos, nós, terráqueos, sós no universo, em termos de expressão de vida inteligente, beira à casa dos 85%. Mas que barbaridade, diria um solitário e silencioso Blau Nunes à noite, a sorver sua cuia de chimarrão enquanto observa o céu estrelado das solidões pampeanas gaúchas. Que barbaridade!
Porém, Blau Nunes, frente a isso tudo, não consegue evitar chegar à seguinte conclusão: se for levado em conta que o parâmetro atestado para classificar como “inteligente” determinada forma de vida for aquele que enquadra no topo da lista os seres humanos que habitam o planeta Terra, então, o mais correto seria afirmar que é o Universo inteiro quem está só, absolutamente só, deserto e inabitado. Que barbaridade!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 2 de julho de 2018)