segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

A rica lição do pobre poeta


“Os poetas são pobres porque assim o querem, afinal, está em suas próprias mãos serem ricos”. A sentença foi colocada na boca de Tomás Rodaja, personagem de um conto concebido pelo gênio do escritor espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), estabelecido em eterna fama mundial pelo seu “Dom Quixote”, obra que encanta gerações de leitores desde que veio pela primeira vez à luz, no início do século 17. Entre a primeira e a segunda parte de seu livro sobre as aventuras do Cavaleiro da Triste Figura, Cervantes levou a público uma coleção de 12 contos intitulada “Novelas Exemplares” (lançada em 1613), e é daquela conhecida como “O Licenciado Vidreiro” que emerge a frase aqui pinçada para servir de mote para esta derradeira crônica de segunda do ano de 2019.
Tomás Rodaja, o dito personagem, é um estudante de Salamanca que, devido a uma poção mágica, se transforma em um andarilho que se imagina feito de vidro e perambula a esmo pelas paragens espanholas, distribuindo frases de efeito e conselhos. É nessa condição que profere aquele dito a respeito da pobreza característica da maioria dos poetas de seu tempo, indo além: “É só eles saberem aproveitar a ocasião, uma vez que a fortuna se encontra nas mãos de suas namoradas, pois são todas riquíssimas”. Afinal, as namoradas dos poetas não possuíam, conforme eles cantam em seus versos, “cabelos de ouro, rosto de prata polida, olhos de verde esmeralda, dentes de marfim, lábios de coral, colo de cristal transparente”, e suas lágrimas não eram “pérolas líquidas”, dando mostras de sobra de sua “imensa riqueza”? Ora, possuindo namoradas dotadas de tamanha formosura e fortuna, permaneciam pobres os poetas porque assim o desejavam, conclui o envidraçado filósofo criado por Cervantes, quatrocentos e tanto anos atrás.
O que o escritor pretendia, com a passagem, evidentemente, era criticar a pobreza de estilo e a sucessão de imagens literárias batidas usadas pelos maus poetas de seu tempo, e talvez não só os de seu tempo. Mas o que atravessa incólume as brumas dos séculos e permanece é a nova metáfora, criada por Cervantes com esta passagem, que nos leva a refletir sobre nossas próprias visões distorcidas da realidade, que muitas vezes nos impedem de alcançar nossos objetivos. Que “cabelos de ouro” não caiam sobre nossos “rostos de prata polida”, impedindo nossos “olhos de verde esmeralda” de ver a realidade como ela é, e que possamos, neste 2020, moldar nossas jornadas de vida de forma lúcida, criativa, colaborativa, cidadã, harmoniosa e tolerante. Bom Ano-Novo a todos!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 30 de dezembro de 2019)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Zelar pelo bem maior


Meu sobrinho/afilhado, de nome João, encarnou (com maestria, obrigo-me a dizer, descontada a corujisse irremediável que se apossa do mundano cronista) o papel de José, esposo de Maria, na apresentação de final de ano ofertada aos pais (e dindos infiltrados) pelos aluninhos da escola em que ele estuda, erradicando de vez o analfabetismo que até então o afligia, no alto de seus sete anos de (intensa, criativa e encantadora) vida. No fim das contas, José era João, durante alguns minutos da emocionante performance, pontuando o final do ano letivo em uma confraternização entre escola, professores (alguns deles afogados em beijos e abraços desferidos pela espontaneidade das crianças que com eles convivem todos os dias), pais e penetras (que não se constrangeram em, depois, participar do ataque à mesa de gulodices destinada à comunidade escolar, mas justificamos nossa famélica atuação imaginando ocupar a lacuna deixada pelas crianças, que, nessas horas, ignoram os comes e bebes para mergulhar nas brincadeiras e correrias). 
As crianças emocionaram a todos, oferecendo um espetáculo repleto de surpresas ensaiadas (acrobacias, truques de mágica, danças, cantos, encenações natalinas) capazes de ombrear as mais profissionais montagens realizadas pela aí, nos quesitos dedicação, empenho, verdade e entrega. Acompanhadas pelo violão do professor, uniram as vinte vozes infantis em duas canções com letras complexas e intermináveis, surpreendendo (ao menos, a mim) pela capacidade de segurar a atenção de um público adulto (composto por corujas de várias idades, admito, mas corujas também têm coração, atesta a biologia animal e os veterinários, permitindo até vislumbrar a existência de alma em algumas delas). Em um canto do salão onde as encenações tinham lugar, um estandarte exibia uma frase significativa, que, acredito, explicitava a essência absoluta da experiência que ali vivenciávamos: “Família, nosso bem maior”.
Essa é a chave de tudo. Precisamos saber zelar pelos nossos bens, a começar pela família, que, sim, é o maior de todos. Nossa profissão, nossos relacionamentos, nossa saúde, nossa comunidade, nossos projetos, nossa imagem, nossas vidas, são outros bens tão importantes quanto, e precisam ser tratados com o mesmo zelo, 365 dias por ano, a fim de que essa sensação sublime que nos invade nos natais seja repleta de significado verdadeiro. Que era (e segue sendo), ao fim e ao cabo, a mensagem proposta pelo filho da família formada pelo José bíblico interpretado por meu afilhado naquela noite memorável. Feliz Natal a todos.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 23 de dezembro de 2019)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Tudo começou após o térreo


Levava como título “Embaraço após o térreo” e, como data, o hoje longínquo 10 de novembro de 1985, que se perde nas brumas do tempo, arremessando-nos de volta ao século passado, nos estertores de um milênio ainda analógico. O texto versava, de modo bem humorado (o que se tornaria uma espécie de marca registrada dali em diante, mas na época as madamas, o Argentino, a Dona Esmeraldina, as senhorinhas da hora do chá, ainda não circulavam pela aí nestes sempre mal-digitados, intermináveis e asfixiantes períodos, tecidos impunemente por um autointitulado cronista mundano de segunda), sobre a sempre constrangedora situação que se estabelece entre os desconhecidos que, ao longo de alguns curtos e intermináveis segundos, se veem obrigados a compartilhar o exíguo espaço de um elevador, submetendo-se a uma intimidade física indesejada e constrangedora, apesar de breve. Dava-se, ali, a minha estreia pública enquanto cronista, na edição daquela data do hoje extinto jornal “A Razão”, de Santa Maria.
O responsável por aquela situação foi o professor de Língua Portuguesa do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Santa Maria (que eu cursava, na época), Orlando Fonseca (escritor consagrado e cronista fixo daquele jornal), que havia proposto a nós, alunos, como exercício de aula, a produção de crônicas. Fi-la, entreguei-a e, dias depois, ao receber de volta o trabalho com nota máxima (quem diria, após anos com 5 em matemática e 6,5 em biologia!), o generoso professor me perguntou se eu lhe permitia publicar meu texto na coluna semanal assinada por ele no jornal. Estupefato, meu subconsciente gritou “sim”, antes que meu consciente, anestesiado e boquiaberto, deixasse passar o cavalo encilhado. Publicado o texto, comecei a achar que poderia ser cronista. Dali em diante, passei a estudar os cronistas de verdade, o que se tornou um hábito cultivado até hoje, na esperança de descobrir a fórmula da boa escrita e de um dia aprender o que os mestres ensinam (entre eles, Luis Fernando Verissimo, Rubem Braga, Sérgio Porto, Leon Eliachar, João Bergmann, Jimmy Rodrigues, Machado de Assis, Fernando Sabino...).
Agora, neste vindouro 20 de dezembro, completo dez anos ininterruptos na condição de cronista do jornal “Pioneiro”, período ao longo do qual publiquei, com esta de segunda, 1143 textos, o que muito me honra. Espelhar o espetáculo da vida cotidiana, procurando refletir sobre ela a essência do viver, é o desafio que se impõe a cada semana. Grato aos leitores pela generosidade da atenção e ao “Pioneiro”, pelo espaço. Sigamos.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 16 de dezembro de 2019)


segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

O segredo é a harmonia


Em um de seus romances mais significativos, “Cécile” (1811), o político, pensador e escritor franco-suíço Benjamin Constant (1767 – 1830) – que não deve ser confundido com o militar e político brasileiro homônimo (1836 – 1891), até porque o brasileiro recebeu o nome em homenagem ao seu predecessor europeu –, induz um de seus personagens, o senhor de Langallerie (que existiu na vida real), a refletir sobre um aspecto crucial das questões filosóficas que afligem a humanidade desde que, oriundos das cavernas, fomos iluminados magicamente pela consciência de nossa própria existência. Diz assim, o senhor de Langallerie: “Não se poderá negar que existe um poder, exterior a você, mais forte que você. Pois bem, a única maneira de encontrar a felicidade neste mundo é estar em harmonia com esse poder”.
A compreensão e aceitação dessa verdade universal está na base das religiões, cuja missão é promover uma estreita ligação entre os seres humanos e esse poder superior. As religiões antigas desmembravam os aspectos divinos em uma miríade de deuses antropomorfos – as mitologias –, e caíram em desuso frente ao surgimento de um pensamento mais moderno e poderoso, representado pelas religiões monoteístas, nas quais o poder superior é imanente a um deus único. Agnósticos e ateus podem identificar a manifestação dessa força naquilo que classificam como a própria Vida ou a maravilha inexplicável do Universo e suas inter-relações entre tudo o que existe. Cientistas de laboratório podem detectar vestígios desse poder nas profundezas das galáxias e nas miudezas da atividade subatômica. Cientistas dos divãs conseguem vislumbrar essa força nos conceitos com que trabalham, como o self, o inconsciente, o subconsciente e outros. Independentemente da forma como esse poder é decifrado, a verdade detectada pelo escritor francês parece criar um elo entre todos esses conceitos: a felicidade só pode ser alcançada a partir do momento em que entramos em harmonia com esse poder, seja lá como cada um o conceba.
De minha parte, vejo nas manifestações culturais e artísticas, de todas as espécies, um dos caminhos que possibilitam esse encontro, por meio da promoção do êxtase obtido da fruição do sublime. Literatura, música, dança, cinema, teatro, fotografia, canto, escultura, pintura, desenho e outros são instrumentos também válidos para gerar essa epifania, daí a importância da defesa constante do valor da manifestação das artes e da cultura, livres e amplas, em uma sociedade que queira permitir a busca individual e democrática pela felicidade.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 9 de dezembro de 2019)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Combustível da vida na sola


Neste 2019 completei três décadas de dedicação profissional ao jornalismo. A saga teve início em 1989, em fevereiro, quando fui admitido no jornal “A Razão” (hoje extinto), em Santa Maria. Eram outros tempos. Outro século, outro milênio, outras tecnologias, outros hábitos. E eu, claro, era outro eu. Recém-egresso da universidade, cumpria o papel de um “foca” típico: o tanque interno completado com o puro combustível da vontade de fazer, disputando espaço com a inexperiência, que me levava a encarar qualquer desafio como um universo a ser desbravado, repleto de oportunidades para aprender. O que era, mesmo.
A barba espessa fazia um conjunto desgrenhadamente harmônico com a cabeleira castanha e farta, fruto da abundância capilar de quando se está nos vinte e tantos. O peso na balança também era outro, o que permitia a agilidade do entusiasmado repórter iniciante ao abraçar a missão de produzir os cadernos de bairros que o jornal encartava mensalmente, cada vez uma região específica, com seus problemas, seus anseios, suas gentes e sua voz. O motorista me largava no início da tarde na entrada do bairro e combinava de me resgatar no mesmo ponto horas depois. Lá ia eu, prancheta em punho repleta de laudas em branco, duas canetas Bic e uma pauta a ser cumprida. De volta ao jornal, após alguns dias, era meter mãos às teclas da máquina de escrever, após lambuzar os dedos trocando a fita, e produzir os textos em meio a uma típica redação da época, engarrafada de jornalistas gritando ao telefone (celular, nem se concebia), datilografando matérias freneticamente (computador, só na Nasa), aparelhos de fax e telex vomitando notícias vindas de todas as partes do planeta (internet, nem nos sonhos mais bizarros) e colegas fumando no ambiente (coisa mais natural do mundo, no mundo de então).
O primeiro caderno de bairros sob minha assinatura circulou um mês após minha admissão (“por Marcos Fernando Kirst, da Equipe de A Razão”), indo às bancas na mesma semana em que na minha conta pingava o primeiro salário via carteira assinada. Com a grana no bolso, na manhã de sábado fui às Casas Eny, tradicional loja de calçados da região, e comprei dois pares de sapatos de camurça, pois o meu havia furado (meu primeiro “furo”?!) palmilhando as ruas esburacadas do bairro reportado. Precisava de combustível para seguir percorrendo os recantos da vida em busca de informação, o que faço até hoje. Os calçados, claro, vão mudando, mas a vocação que orienta meus pés, segue firme. Afinal, ainda há ruas da vida a serem palmilhadas e reportadas pela aí.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 2 de dezembro de 2019)

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Havia butiás naquele bolso!


Quem foi que disse que bolso é o lugar mais apropriado para o sujeito guardar butiás? Na verdade, até pode ser, uma vez que, ali dentro devidamente empilhados, é difícil eles saltarem para fora e virem a se espraiar pelas calçadas da urbe. A não ser que o solavanco seja de grande monta. Só assim, para que os butiás pulem do bolso do vivente. Pois semanas atrás fui alvo de um solavanco dessa natureza, que fez se espraiarem longe os butiás que nem sabia vir portando no bolso, ao ser convocado para uma reunião com colegas jornalistas representantes da ARI Serra Gaúcha, a seccional local da Associação Riograndense de Imprensa, que representa os comunicadores da região.
Os sorrisos largos e os apertos efusivos de mãos provenientes dos colegas comunicadores e integrantes da diretoria da entidade, Andreia Fontana (presidente da ARI Serra Gaúcha e Gerente de Jornalismo da RBS Caxias) e os jornalistas Juliano Flores e Viviane Somacal, anteviam a boa e inesperada surpresa, anunciada no momento em que eu procurava equilibrar nas mãos uma recém-servida xícara de café preto: meu nome havia sido escolhido para receber, na edição deste ano, o Troféu ARI na categoria Jornalismo Digital e Impresso! Quanto butiá havia naqueles bolsos! E que problema equilibrar aquela pequena xícara, frente ao tremor causado pela emoção advinda da inesperada honraria! Fiquei e sigo emocionado. Juntamente com os demais oito colegas comunicadores agraciados nas diversas categorias (Juares Franco: Jornalismo Audiovisual; Celso Sgorla: Radiojornalismo; Lucinara Masiero: Assessoria de Imprensa; Gilmar Gomes: Imagem; Jomba Salim: Propaganda e Marketing; Neide Tomazzoni Michelon: Relações Públicas; Luís Antônio Giron: Destaque Nacional e Guiomar Chies: Contribuição à Comunicação), flagrei-me comovido com o reconhecimento advindo dos colegas de profissão e também da comunidade, que, neste ano, foi instada a participar da escolha, por meio de votação.
Dedicar a vida profissional à atividade de ampliar as ferramentas de comunicação e de informação entre a comunidade em que se atua é uma vocação que traz, junto aos desafios diários, a plena convicção de se estar contribuindo para os processos de crescimento e desenvolvimento regionais, bem como na formação vital da cidadania. Grato pela homenagem e pelo reconhecimento, que se concretizam na entrega dos prêmios na reunião-almoço da CIC (copatrocinadora do Prêmio) desta segunda-feira.  E se alguém topar com butiás à solta por aí... eram meus, mas que sigam livres, representando a realização de uma escolha certa de vida!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 25 de novembro de 2019)

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

O luto por um vaso partido


A situação que vou relatar se assemelha à que acontece, às vezes, com aquele vaso antigo que está na família há gerações e vem sendo herdado de forma compulsória por membros menos atentos, no ritual de distribuir os pertences dos ancestrais que vão se retirando de cena. O vaso é sem graça, ninguém sabe de onde veio, se possuía algum significado sentimental para os bisavós, mantido em cena como um coadjuvante silencioso ao longo das décadas, passível de ser identificado ao fundo de alguma velha fotografia, refugado a um canto na prateleira. Por hábito, respeito ou inércia, nunca foi jogado fora, acabou ficando, até o dia em que, pelo manejo desastrado de algum cabo de vassoura, espatifa-se no chão e, daí sim, finalmente, obtém a atenção que jamais conquistara em “vida”: lamentamos sua perda, choramos sua saída de cena, mesmo que, antes, nunca tenhamos prestado atenção à relevância de sua atuação silenciosa. Sentimos luto pela perda do vaso insosso e discreto, pois é inerente à nossa  índole humana a necessidade de sofrer com o processo de desapego.
Da mesma forma se dá, no momento, com o desaparecimento de minha vesícula, órgão discreto, de papel importante mas coadjuvante no funcionamento de meu organismo, que resolveu inflamar de súbito, me lançar ao chão de casa miando de dor no início de uma madrugada e me empurrar ao pronto-socorro, onde, após uma série de exames (eco, tomo e afins...), obrigou-me a me ver baixado em um leito, aos cuidados zelosos de enfermeiras e médicos, obedecendo a rituais de trocas de soro, aplicações de medicamentos via intravenosa, aferições periódicas de sinais vitais, dietas líquidas, até a apoteose final da saga, representada pelo ato sacrificial de retirada física de sua presença no conjunto dos órgãos que compõem a orquestra das minhas entranhas. Foi-se minha vesícula, já era, não nos reveremos jamais! Coração, pulmões, rins, fígado, pâncreas, baço, bexiga e intestinos juram, de pés juntos (com os meus pés, claro, que se solidarizam nesse momento delicado), que serão capazes de seguir dando conta do recado apesar da deserção vesicular. Serve de consolo, mas, além da dor dos pontos, sinto outra pontinha de dor pela perda de uma parte de mim, mesmo que, até então, jamais tivesse me dado por conta de sua sutil existência.
Minha vesícula acabou se revelando tão dispensável quanto o velho vaso da tataravó. Porém, para a garantia de uma sequência de vida saudável, é aconselhável não abandonar a memória de nenhum deles, da dor que foi perdê-los e das razões que culminaram nas dolorosas separações...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 18 de novembro de 2019)

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Por mais vida, por mais arte!


Cem anos atrás, em março de 1919, morria, em Criúva (hoje distrito de Caxias do Sul), uma bela e jovem moça de 26 anos de idade incompletos, que decidira fazer de sua vida (abreviada devido à tuberculose, doença incurável e fatal em sua época) uma opção preferencial pela cultura e pela arte. Proativa, vanguardista e criativa, temperava seu cotidiano em Porto Alegre e na Serra Gaúcha dedicando-se ao cultivo do espírito, consumindo e produzindo arte. Era poeta, de brilho e talento reconhecidos nos meios intelectuais e literários da Capital e da Serra, mesmo não tendo tido tempo de publicar livro contendo a obra que vinha lapidando com esmero e dedicação. Chamava-se Vivita Cartier, e seu corpo segue sepultado no Cemitério do Pontão, em Criúva, inspirando artistas de várias esferas de atuação, ao longo das décadas, driblando o sempre ameaçador manto do esquecimento.
Vivita Cartier é lembrada e a essência de sua alma artística é mantida viva porque sua vida e sua obra seguem falando e inspirando aqueles que reconhecem a relevância vital do cultivo do espírito humano (por meio das artes e da cultura) na formação da cidadania, na consolidação de sociedades civilizadas e desenvolvidas e na transformação dos seres humanos em plenamente humanos. Sua memória vem sendo cultivada por historiadores, pesquisadores e entusiastas (conhecidos e anônimos, alguns já falecidos, outros ainda ativos), como João Spadari Adami, Honeyde e Adelar Bertussi, Mario Gardelin, Mario Vanin, Juventino Dal Bó e Rodrigo Lopes, entre outros.
A biografia de sua breve vida, escrita por mim e lançada este ano, suscitou vários artistas a revisitarem sua história, ampliando as formas de se relacionar com sua essência, como os músicos da banda Rota Lunar, conduzidos por Selestino Oliveira, que arranjaram e musicaram alguns de seus poemas, gravando um CD especial; as alunas da Escola Estadual de Ensino Médio João Pilati, de Criúva, que levaram aos palcos a vida de Vivita por meio de alguns de seus poemas mais significativos; a fotógrafa Liliane Giordano, que produziu um ensaio fotográfico e uma mostra abordando vislumbres da Noiva do Sol (como Vivita era chamada) e o Grupo Teatral Ueba Produtos Notáveis, que encenou a vida da poeta em um trabalho magistral protagonizado por Jonas Piccoli e Anile Zilli. A luta empreendida por Vivita há mais de um século, por mais vida, se transforma em bandeira e símbolo nos dias de hoje por quem batalha pela manutenção da essência da vida a partir do cultivo das artes e do espírito, na guerra contra as névoas do obscurantismo.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 11 de novembro de 2019)

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Alguém ajuste o despertador!


Ser acordado em meio ao sono pelo barulho de um despertador deveria ser proibido por lei. Algo a se pensar, nesses tempos esquisitos em que o ato de proibir vem conquistando um ibope só igualado ao que desfrutam as censuras nas ditaduras, mas deixemos os obscurantismos de lado, por favor, que de pesadelos bastam os dos sonhos. Pois é, exatamente isso: despertadores, mesmo que agora municiados com a possibilidade de baixar aplicativos com musiquinhas suaves que nos encantam, sempre acabam nos extirpando a fórceps das doces pradarias oníricas para a aridez da realidade desperta em um piscar de olhos (a essas alturas, semicerrados e ainda remelentos, confessemos). A mim, não faz bem, e, sempre que sou acordado desse jeito, demoro alguns instantes para encaixar a alma ao corpo, que se ergue de susto da cama e adentra o roupeiro em busca da tampa do vaso a ser erguida com urgência matinal.
Ser trazido dessa maneira à realidade deixa sonhos órfãos, inconclusos e a meio caminho, o que pode vir a ser um problema. Manhã dessas, ao despertar de forma suave e natural, sem o auxílio (e a imposição) de nenhum despertador, vi-me emergindo de dentro de um jipe, chapéu australiano na cabeça, exclamando ao sujeito sentado ao volante: “Adis Abeba fica para o outro lado!”. E puf! Saí do sonho! Adis Abeba? Onde fica Adis Abeba? Teria de verificar no google maps, durante o café da manhã. Ao saltar da cama rumo à porta correta do banheiro, recordava ainda do chapéu australiano que também encimava a cabeça de meu parceiro de jipe, cuja identidade não soube definir. Seria meu guia? Se fosse, era um incompetente, afinal, Adis Abeba ficava definitivamente para o outro lado. Jamais contrate guias em sonhos, fica a dica. Areia cercava o jipe por todos os lados, e seguramente não era a de Torres. Em que deserto estávamos? No do Saara? No de Gobi? Indecifrável!
Mas senti alívio por ter acordado de forma natural no justo instante em que percebi que Adis Abeba ficava para o outro lado. Caso um despertador me tivesse arrancado do jipe minutos antes, eu corria o risco de ficar eternamente perdido naquele sonho, em um deserto inominável, desorientado em relação à posição real de Adis Abeba. Seria terrível, pois não sei quanta água ainda tínhamos conosco nos cantis e tampouco conhecia as intenções do chapeludo ao meu lado. Ver-se perdido e desorientado no mundo desperto é uma coisa... Já, em sonhos, é excruciante. Mas, espera um pouquinho... O que você disse? Onde fica Adis Abeba? Ora, é para o outro lado! Não é?... Ei, alguém ajuste o despertador!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 4 de novembro de 2019) 

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Viver mil vidas e mais uma


O ser humano é um narrador por natureza. Gostamos de narrar os fatos que preenchem o nosso próprio existir da mesma forma como apreciamos usufruir as narrativas advindas das experiências vividas pelos outros. Alimentamo-nos com o gosto da autoestima adulada sempre que detectamos uma plateia (mesmo que modesta, composta por familiares, colegas de trabalho ou amigos) hipnotizada com nossos relatos sobre algum incidente prosaico do cotidiano que envelopamos com sabores de pequena tragédia ou comédia da vida real. Temos prazer em nos tornarmos, por instantes, os protagonistas da história, enfeitando a ação em favor da condução da trama a bom termo, mesmo que, para isso, às vezes, precisemos passar a perna na veracidade dos fatos. Afinal, como atesta o ditado, se não é verdade, pelo menos, é bem contado.
Somos também bons ouvidores dos relatos dos outros. Tanto é assim que nos dedicamos, desde tempos imemoriais, e com prazer, ao papel de plateia e ouvidos até mesmo (e, talvez, principalmente) às narrativas totalmente inventadas, por sabermos detectar nelas os elementos que vão servir de conexão com aspectos fundamentais de nosso próprio existir. Apreender narrativas amplifica nosso autoconhecimento, asfalta o caminho para a compreensão do outro, destrava os cadeados do existir. É por isso que gostamos de consumir ficção, seja ela na forma de livro, de teatro, de filme, de novela, de seriado televisivo, de história contada pelos avós... Ouvir a narrativa do outro é a ferramenta que possibilita estabelecermos nosso próprio processo de autoescuta.
Fazemos isso desde tempos imemoriais, quando ainda sequer a escrita havia sido inventada. Sentávamos ao redor da fogueira à noite e doávamos os ouvidos aos relatos excitantes dos bardos, dos menestréis, dos atores que, oralmente, nos transportavam, a bordo do veículo mágico da imaginação, aos cenários das aventuras dos heróis, dos deuses antigos, de reis longínquos, de princesas desamparadas. Aprendemos, desde então, que nossa pequena vida cotidiana pode ser incrementada pela absorção de mil e uma outras vidas diferentes da nossa, estendendo ao infinito os limites de nossa própria existência. A narrativa, como base para a manifestação de todas as artes (toda a arte narra uma história, mesmo uma música, uma tela, uma escultura, uma arquitetura), embasa, ao longo dos milênios, a construção do processo civilizatório. Felizes dos povos que sabem cultivar, valorizar, preservar e incentivar a ação dos artistas. É a esses povos que cabe o protagonismo na construção da saga do humano.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 28 de outubro de 2019)

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

O conselho de Clementine


Winston Churchill (1874 – 1965), o primeiro-ministro que liderou o governo de coalizão formado na Grã-Bretanha de 1940 a 1945 para enfrentar o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, assentou-se na História Universal pela porta da frente, envergando o manto dos grandes líderes inspiradores que conduzem seus povos a destinos alvissareiros. Havemos de concordar que poucas coisas se comparam em alvíssaras ao fato de conseguir derrotar, às custas de sangue, sofrimento, suor e lágrimas, a bestialidade psicopata representada pela visão deturpada de mundo capitaneada por Hitler e sua gangue de degenerados. As capacidades de liderança, de inspirar as massas, de analisar a conjuntura com lucidez, de tomar decisões corajosas e determinantes, compunham, em Churchill, um conjunto de atributos reconhecido por seus pares dentro e fora de seu país, e sua personalidade incomum teve um peso importante no desfecho da guerra, que pendeu, felizmente, para o lado civilizatório.
Churchill, dotado de uma presença de espírito sagaz, de raciocínio rápido e do dom da oratória, foi um frasista excepcional, e ele mesmo sabia disso. Tanto é que usava e abusava das tiradas de efeito, e até hoje lembramos de algumas delas, proferidas no calor do conflito, como: “Nós lutaremos nas praias, nós lutaremos nos campos, nós lutaremos nas colinas, nós jamais nos renderemos”; “Se Hitler invadisse o Inferno, eu faria uma referência favorável ao diabo na Câmara dos Comuns”; “Uma cortina de ferro baixou sobre a Europa”; “O que eu espero, senhores, é que depois de um razoável período de discussão, todo mundo concorde comigo”. Pais ingleses costumavam homenagear Churchill colocando seu nome nos filhos, como no caso de um tal John Winston Lennon (1940 – 1980), que também faria História, mas isso são outros acordes.
Chucrchill, no entanto, também tinha lá seus defeitos e falhas, pois era humano. Quem melhor as conhecia era sua esposa, Clementine, que, certa feita, o aconselhou, por carta, dizendo-lhe assim: “É para você dar ordens e, se eles não fizerem o serviço direito – com exceção do rei, do arcebispo da Cantuária e do presidente da Câmara –, você pode demitir qualquer pessoa, portanto, com esse poder terrível, você tem de combinar urbanidade, gentileza e uma calma olímpica... Você não vai conseguir os melhores resultados com irritabilidade e grosseria”. Churchill e suas frases servem de inspiração para os povos em dificuldades homéricas. Mas Clementine lega à História uma pérola de lucidez nas esferas da gestão e das relações sociais e profissionais.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 21 de outubro de 2019)

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

O trevo tinha era três


“Procurem lá fora um trevo de quatro folhas. Quem achar, traz pra mim que eu dou um prêmio!”. Interrompemos a algazarra, com que nosso bando de crianças preenchia o salão da festa do casamento, para tentar decifrar a proposta inusitada feita pelo parente distante. Esperto, conseguia ele, assim, fazer evaporar-se do salão a nossa gangue infantil, liberando-o para as danças que deviam começar, recolhida já a louça do farto almoço. Aquele domingo diferente, na comunidade do interior, junto à parentada que mal conhecíamos, empilhava elementos para revestir-se da aura de inesquecível. Não lembro quem estava casando, eu tinha uns oito anos de idade e o que importava mesmo era a chance de vivenciar experiências ao ar livre, diferentes daquelas extraídas da rotina citadina de meu quarto, junto à criançada que ali enganchava amizade fácil.
Nosso foco agora, depois de alimentar as galinhas pela cerca gradeada do galinheiro com folhas catadas no pasto e de esfolar os joelhos trepando nos galhos da figueira, passava a ser os trevos de quatro folhas. Voamos para fora e segui o rumo dos pequenos habitantes daquelas paragens. Eles deviam saber o que eram trevos, e, de fato, logo me vi mergulhado em um gramado atapetado por aqueles delicados raminhos verdes tripartidos, cuja existência até então eu jamais notara. Logo percebi que a natureza dos trevos consista em três folhas (daí seu nome), e que algum eventual possuidor de um quarteto delas seria a raridade que o tio solicitava. Existiria? Agachei-me junto aos demais e fui fuçando... três... três... três... “Puxa, que difícil”! A brincadeira já começava a perder a graça quando o mais velho da turma gritou “achei!”, e zarpou como um coelho rumo ao salão, portando um trevinho na mão, que ostentava como se fosse um tesouro, à cata do tio.
Corremos atrás dele, ao mesmo tempo excitados e decepcionados com nossa imperícia em toparmos com o dito trevo de quatro folhas que, afinal, estava ali, à espera do mais esperto entre nós. Mas a glória do colega mais velho não durou muito. Chegamos a tempo de flagrá-lo sendo repreendido pelo tio, em função da fraude que cometera: em sua mão, jazia o trevo, igual a todos os outros, apenas tendo uma das três folhas partida ao meio pela unha fininha do menino metido a esperto, que agora chorava de vergonha. Meu súbito herói se desfez em segundos. Ele não só falsificara o troféu como, pior do que isso, tentara ludibriar a todos nós, seus parceiros de brincadeira. Teve o azar de ser desmascarado e, nós, a sorte de aprendermos cedo o valor da probidade.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 14 de outubro de 2019)

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

O macaco era mais pra lá


Súbito, desaprendi. Sabemos que o aprendizado de uma atividade se dá primordialmente com a prática constante, com o acumular da experiência, com o sedimentar do proceder. Apossamo-nos do conhecimento e passamos a ter segurança em relação a ele; é assim que se dá. O que não tem explicação, ao menos, não de forma tão instantânea, é o súbito desaprender, a puxada de tapete da memória; o voo ingrato e sem aviso, para longe, da habilidade até então tida como definitivamente apreendida e integrante perene de nossa constituição pessoal, psíquica e prática. Ora, como assim?
O fenômeno se deu comigo dia desses, semanas atrás, ao buscar minha esposa no trabalho, a noite de sexta-feira já assentada nas horas, o frio de fim de inverno ainda presente, a serração começando a baixar seu manto de invisibilidade sobre as poucas quadras que ainda nos separavam do acolhimento da sala de casa. No meio do caminho, no entanto, havia uma pedra - esta, nada poética, nada inspiradora -, transmudada em um paralelepípedo desritmado de seus pares, a ponta agulhada empinada para cima, à espreita do primeiro pneu desavisado que cometesse a imprudência de cruzar sobre ela. Esse desavisado pneu foi justamente o do lado direito dianteiro de meu carro: bunct! A ressonância do estrondo logo denunciou o tamanho do estrago: pneu furado, obrigando-me a estacionar cem metros adiante. “Problema zero”, sentenciei, apaziguando a esposa. “Troco em menos de dez minutos”, já abrindo o porta-malas, sacando para fora o estepe, posicionando o macaco e as ferramentas.
Só que, não! No meio da noite, sob a neblina, desaprendi a trocar pneu, após mais de 30 anos amigado da tarefa, desde a primeira carteira de motorista. O macaco funcionou errado, mal erguendo a roda poucos centímetros do chão (estava mal posicionado); as porcas não frouxavam (eu as estava torcendo para o lado errado, afixando-as ainda mais); no celular, esqueci a localização da lanterna, para que a esposa me auxiliasse, iluminando minhas novas inaptidões. Quando da segunda oferta de ajuda, vinda de motorista gentil, engoli o suor da testa e aceitei, depondo as armas (macaco, chave-de-roda, estepe, celular e orgulho). O rapaz, motorista de Uber, solícito, fez em cinco minutos o que eu passei a vida sabendo fazer. Chegamos em casa sãos e salvos: pneu trocado e eu engraxado e sem graça, pensando com meus botões: “o que houve comigo?”. Ainda não sei. O que detectei é que nem sempre estamos preparados para enfrentar as surpresas que somos capazes de ofertar para nós mesmos. A vida é mesmo uma graxa!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 7 de outubro de 2019)

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

O bailarino dos ventos

Parecia que ele estava esperando já há algum tempo que eu, enfim, alçasse os olhos das páginas do livro que lia, sentado no terraço de meu apartamento no final da tarde, e o fitasse, encarapitado que estava no topo do prédio vizinho, onde costuma ficar. Não é de hoje que esse robusto urubu utiliza o alto do edifício em frente como heliporto entre suas atividades aéreas diárias. Pousa ali, asas recolhidas junto ao corpo coberto com a escura plumagem que o caracteriza, a cabeça arqueada como que em uma corcunda, e me fita enquanto recupera o fôlego. Era como se saboreasse o desconforto que sua presença me causava, incapaz que me via de exorcizar o preconceito bobo ancestral que recai sobre a simbologia fúnebre e sinistra injustamente associada a essa ave, tão ave quanto qualquer outra.
Reconheço, de súbito, minha postura incivilizada e largo o livro no colo, permitindo, pela primeira vez, que nossos olhares se cruzem, abrindo margem para o estabelecimento de alguma possível conexão intangível entre ave e humano, entre o urubu e eu. Era como se ele estivesse contando com que isso, um dia, se desse. Ato contínuo, ele lança seu corpo do alto do prédio de onze andares e, antes mesmo que um indício de queda vertiginosa se estabeleça, abre elegantemente as longas asas negras e navega no ar, tomando impulso para cima, cruzando rente à vidraça do meu terraço, dando início a um show que me soou premeditado. Levanto da cadeira e decido acompanhar visualmente seu voo, até onde der, até que sua figura se transforme em um pontinho contra o avermelhado do céu e se esvaneça na paisagem de sol poente.

Mas ele opta por bailar. Bate as asas, sobe alguns metros junto às nuvens, encontra correntes de ar e estende de novo os membros plumados, entregando-se à coreografia do voo pautado pelas marolas do vento. Tece desenhos imaginários no ar com sua dança voadora, que me encanta, me hipnotiza, ofertando a mim um inesperado momento de fruição artística do belo. Faz arte com seu voo, o urubu que até então eu sempre desdenhara. Não está caçando, não está procurando uma companheira, está apenas entregue ao prazer privilegiado que a natureza concedeu aos da sua espécie: voa por deleite, pela entrega de si mesmo à essência de seu ser. Mal sabe o urubu que, além do espetáculo, me proporciona inesperadas lições de vida que talvez ajudem a me tornar mais humano. A principal delas é o endosso da convicção de que o preconceito é o pior dos vícios. Passei a aguardar suas visitas com expectativa. Gratidão pela lição que também me fez voar.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 23 de setembro de 2019)

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Como engolir uma dor


Conheci um peão de verdade em meados da década de 1970, quando eu rondava os dez anos de idade, na fazenda que meu pai e meus dois avós compraram em sociedade no interior de São Borja. Como todos os três proprietários moravam na cidade, contrataram como capataz um genuíno habitante daquelas campinas missioneiras, nascido ali mesmo e desmamado cedo em meio a mato, vaca, chimarrão, mangueira, tabatinga, bugio, churrasco, mandioca, carroça, pinga, torresmo, boi-tatá e jogo do osso. Chamava-se Donato, o semblante sempre entrevisto sob a sombra do chapéu nunca arriado do topo da cabeça, a pele esfumaçada pelo excesso de sol, lenço no pescoço, a bombacha cinzenta presa pela guaiaca na qual reluzia o facão de mil e uma utilidades (do descascar da laranja ao recado aos desafetos).
Donato palmilhava aquelas paragens com a destreza de quem tem o mapa do mato impresso na sola dos pés curtidos pela ausência de sapato. Nem botas e nem alpargatas: era de pés descalços mesmo que troteava de lá para cá, pisando em toco de madeira, pedra pontuda, roseta, espinho, rabo de cachorro, mandruvá, caco de vidro, prego, caroço de pêssego; o que quer que fosse, calcava em cima e se tocava a encilhar a égua “Belina” para que eu, o menino da cidade, pudesse dar uma volta. Donato, assim como a maioria de sua gente, cultivava alma generosa e um analfabetismo crônico herdado de família. Não sabia pronunciar as letras “r” e “l”, cujos sons transformava em “i”, vertendo meu nome para “Seu Maicos”, o que nos enchia de espanto.
Donato era pai do Generi, um guri xucro de franja na testa e olho baixo, de cerca de cinco anos, levado em rédea curta como cabrito bravio. Certo dia, um dos peões foi picado por cobra e era preciso levá-lo depressa até a vila, distante uns 20 quilômetros, para ser medicado. Vi o entrevero de longe: meu pai pulou para a caminhonete, o peão foi colocado na caçamba e Donato entrou pela outra porta do veículo de motor roncante. Generi, curioso, implorava para ir junto. Donato abriu a porta, o guri se encarapitou para cima e, naquela muvuca, teve os dedinhos da mão direita esmagados na porta lacrada com força. Escutei o grito de longe e senti em mim aquela dor de dedo quebrado. Donato fitou o filho e sentenciou: “Não chora!”. Generi silenciou, engoliu o choro junto com a dor e as lágrimas e a caminhonete partiu, me envolvendo em uma nuvem de poeira misturada com um ainda indecifrável sabor de injustiça. Se não pudermos chorar nossas dores, o que haverá de nos consolar? Generi, hoje adulto, talvez saiba a resposta. Ou não.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 23 de setembro de 2019)

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Um medo na ponta do lápis


“Você não tem medo de escrever?”. A pergunta surgiu de mansinho, na voz doce e fininha da menina de cerca de nove anos de idade, mas atingiu com a força de um direto desferido contra o queixo do escritor (no caso, eu), até então confortavelmente sentado à sua mesa de autógrafos, distribuindo sorrisos e recebendo tapinhas nas costas pela nova obra literária. Minha guarda estava baixa e quase fui a nocaute. Jamais, em todas as entrevistas que havia concedido à imprensa, em todas as palestras a que comparecera, jamais, em momento algum, a desconcertante pergunta me havia sido feita. Pego de surpresa e atônito, enquanto garranchava a dedicatória no exemplar da mãe de Madalena (o nome da pequena inquisidora, soube depois), respondi um “não” titubeante, envelopado em um nada convincente sorriso amarelo, encenando um ar que deveria conter um misto de surpresa (que havia) com certeza (que não havia). Mas eu mentia.
Se não mentia, pelo menos, havia deixado escapar a chance de falar a verdade para a menina de enormes olhos indagantes, uma vez que a pergunta fora sincera, e perguntas sinceras exigem a rima das respostas sinceras, sob o risco de ficarem órfãs. E a verdade era que jamais pensara a respeito. Aquilo não podia ficar assim e descobri em seguida que Madalena pensava o mesmo, pois a inocência infantil não inibia seu pleno exercício da sensibilidade e da intuição, esses aplicativos humanos que parecem já vir baixados nas almas de algumas pessoas desde o berço. Assim que a fila dos autógrafos se dissipou e o autor (ainda eu) foi socializar entre os presentes, Madalena se aproximou de novo, agora trazendo pela mão a irmã um pouco mais velha, Maria Kaliandra. Ao ver-me, regolpeou a boxeadora pergunta: “Mas você não tem MESMO medo de escrever? Sim, porque eu tenho medo. Tenho MUITO medo de escrever”, e ela confessava esse seu inusitado (para mim) terror exalando verdade pelos poros.
A irmã corroborou a frase da pequena Madalena: “É verdade, ela tem mesmo muito medo de escrever. Ela sabe, mas treme de medo”. Tentei apaziguá-la, dizendo que esse medo certamente seria dominado e domesticado com o passar do tempo, se ela fosse escrevendo coisas de que gostasse, e aos pouquinhos. Aparentemente, consegui oferecer algum alívio com o evocar de meu psicologuês de araque e Madalena se afastou, pensativa. Afinal, escrever é coisa séria. Madalena tem razão: é muito bom, para a escrita e para quem escreve, que haja alguma dose de medo. Assim, talvez, evite-se escrever tanta bobagem. Herdei dela um pouco desse medo. Talvez faça bem...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 16 de setembro de 2019)

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Ela sondava outros planos


Há coisas que dão no que pensar, não é mesmo, madama? Podemos tirar lições (se refletirmos direitinho) para nossas vidas a partir de episódios que, sob uma análise apressada e superficial, poderiam passar batidos pelos domínios de nossas atenções e correriam o risco de serem descartados na lata de lixo da memória, para onde varremos aquilo que julgamos sem valor e inócuo (ah, cuidado com o acúmulo de pequenos entulhos debaixo do tapete, que um dia eles se avolumam, se revoltam e, daí, haja aspirador de pó potente para removê-los de lá, a gente sabe, né, madama minha?). Pois ao findar dessa semana que passou, encasquetei com um fato que ocorreu bem longe daqui e que se recusa a desocupar os flocos de pensamentos que povoam e nublam constantemente meus pensares. Deve haver algum significado nisso.
Trata-se do sumiço inexplicável e atordoante da sonda espacial indiana Vikram, que deveria ter pousado na lua na última sexta-feira, mas que, poucos minutos antes da alunissagem, quando já estava em processo de descida ao solo do nosso romântico e brilhoso satélite, cortou comunicações com a base terrestre sediada na Índia e deu xabu: sumiu, escafedeu-se, desapareceu, não se sabe mais dela. A decepção entre a equipe de astrônomos indianos e de toda a nação asiática é astronômica, afinal, apostavam no sucesso da missão, que carimbaria o ingresso da Índia no seletíssimo grupo dos países que já conseguiram arremessar com sucesso artefatos artificiais produzidos pelo homem ao solo da lua. Até agora, só Estados Unidos, China e Rússia (quando ainda era União Soviética) conseguiram fazê-lo. A Índia também queria, mas a Vikram (que significa algo como “valoroso”, no idioma hindu) parecia acalentar secretamente seus próprios planos e aproveitou uma piscadela dos controladores de voo para escapulir e ir se enfiar em alguma dobrada nas infinitas lonjuras espaciais, sem nem deixar bilhetinho de adeus.
Por onde anda a Vikram? Terá ido veranear em algum anel de Saturno? Foi bater um papo com a solitária sonda Viking nas crateras de Marte? Vai até Plutão para conferir in loco se ele é mesmo um planeta ou não? Impossível saber, afinal, ela não dá notícias de seu paradeiro. A vida é assim, madama: os seres (reais ou artificiais) nem sempre agem do jeito como foram programados ou de forma a atender as expectativas que depositamos neles. Se mal conseguimos reger a nós mesmos, que poder podemos imaginar possuir sobre o nosso entorno? Foi-se a Vikram, viver seu próprio destino. A nós, cabe conduzirmos os nossos, da melhor maneira possível.
 (Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 9 de setembro de 2019)

terça-feira, 3 de setembro de 2019

O jardim das rimas em rosa

O velho e bom Timóteo era um poeta em sua essência. Mas a poesia que perpetrava era diferente da dos tradicionais poetas de papel e tinta de seu tempo (hoje, de teclado e visor, porque o poetar também busca rimar com o avanço das tecnologias). Ninguém se lhe igualava na maneira de expressá-la, tampouco alguém lhe detectava a poesia ou a compreendia. Era, portanto, um poeta d´alma anônimo e incompreendido, como tantos que a História do mundo já forjou, e nisso (talvez só nisso) se igualava a esses incontáveis tantos. Timóteo era jardineiro, cuidava com esmero do imenso jardim pertencente à Sinhazinha na fazenda, e esse jardim era a folha em branco na qual tecia sua obra poética, composta por estrofes de flores, versos de arbustos, rimas de cores, decassílabos de pétalas, sonetos de perfumes. Não havia igual.
Timóteo era um escravo alforriado com o advento da Lei Áurea, no crepúsculo do século XIX. Como se afeiçoara aos patrões, ao local, ao costume da lide e ao jardim (sobretudo ao jardim), e como, afinal, não sabia fazer outra coisa e nada conhecia do mundo além da porteira principal da fazenda, decidira, como muitos outros ex-escravos, ficar. Permaneceu cuidando do jardim de Sinhazinha, cujo silêncio rimava com seu próprio pouco falar, cuja delicadeza das flores rimava com a sensibilidade afinada de sua alma poética. Timóteo conversava com suas flores e atribuía a elas significados que só ele compreendia, por meio das quais pontuava os acontecimentos da fazenda e endereçava recados a seus habitantes. Um ramalhete contendo determinadas espécies florais, deixado à mesa sobre o prato de algum dos patrões, podia conter uma bênção, um aviso, uma censura, um lembrete, em uma linguagem velada aos que não eram íntimos das nuances jardinais.
Quem nos brinda com a história do poético amante das flores é o escritor Monteiro Lobato (1882 - 1948) em seu conto “O Jardineiro Timóteo”. Se inspirado em personagem real ou se puro fruto da imaginação do autor, é coisa que não se sabe e que pouco importa. Para fins de efeito humano, Timóteo cai como um buquê perfumado que nos ensina (ou nos convida) a conferir poesia aos aspectos singelos da vida, estando ela ao alcance do toque sensível da alma dentro mesmo dos limites de nossa prosaica existência cotidiana. Timóteo soube ressignificar a história de sua vida de jardineiro por meio do exercício de uma poesia que lhe vinha da alma e lhe iluminava os dias. É do simples que ela brota, afinal de contas. E tal qual um delicado botão de rosa, ao desabrochar, pode reformatar um universo.

(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 2 de setembro de 2019)

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Parabéns a você, cidadão!

Aniversários, em geral, são momentos convidativos a que se pare um pouco e se faça uma reflexão. Sou adepto dessa prática há décadas e costumo reservar alguns instantes de cada oito de julho anual para pensar sobre mim mesmo no dia em que completo mais um ciclo de vida, analisando tópicos como “o que ando fazendo no momento, como se configura minha vida agora, quais as minhas realizações e aspirações, o que tudo tenho a agradecer” e assim por diante. Em paralelo a essa questão pessoal, cultivo também o hábito de prestar atenção a datas comemorativas relativas a personalidades e a fatos históricos, a respeito dos quais vale a pena dedicar um momento de reflexão e extrair dessas efemérides ensinamentos e percepções.
Assim se dá, portanto, neste 26 de agosto de 2019, quando completa seus 230 anos a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, documento lúcido e inovador no que tange ao resguardo dos direitos fundamentais dos seres humanos em sua vida em sociedade, em qualquer sociedade, em qualquer tempo. Fruto direto dos ideais que moveram a Revolução Francesa, a Declaração, aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte daquele país em 26 de agosto de 1789, elencava 17 pontos voltados a resguardar as condições básicas para que os cidadãos possam exercer o direito a uma vida plena, igualitária, livre e fraterna. Passados 230 anos do surgimento do texto, vivendo em um mundo e em uma época que muitas vezes parece esquecer o valor fundamental de seu conteúdo, vale a pena refrescar a lembrança da importância de alguns daqueles tópicos (senão de todos).
“Os homens nascem e são livres e iguais em direitos” (Artigo 1º); “A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do Homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão” (Artigo 2º); “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo” (Artigo 4º); “Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei” (Artigo 10º); “A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei” (Artigo 11º). Questões fundamentais, que precisam ser constantemente reiteradas e resguardadas, com o intuito de preservarmos nosso inalienável direito a uma vida em sociedade digna. Feliz aniversário, pois! 
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 19 de agosto de 2019)

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Gol não nasce de pé solitário


Se é verdade (e eu acho que é verdade) que o futebol é uma forma de expressão metafórica da vida e suas nuances, então hoje vamos falar de futebol, pois, afinal, também sou sofredor. Assisti, do conforto fofo do sofá de minha sala, na gelada noite da quarta-feira da semana passada, à transmissão televisiva da partida entre Grêmio e Atlético Paranaense, válida pelas semifinais da Copa do Brasil, primeiro dos dois confrontos previstos entre as duas equipes que disputam vaga na final da competição. Tricolor de coração desde os tempos em que acompanhava pelas ondas do rádio em Ijuí as atuações do veloz ponta-direita Flecha (que jogou no Grêmio entre 1968 e 1971), vibrei com os dois gols marcados pelo meu time e que encaminham o Grêmio a uma posição confortável no próximo confronto, em Curitiba, daqui a alguns dias. Até aí, tudo zen.
Seguindo as jornadas esportivas daquela noite em canais de tevê e, nos dias seguintes, nas rádios e nos jornais, compartilhei a exaltação dos comentaristas às atuações da dupla de jogadores André e Jean Pyerre, autores dos dois tentos decisivos da partida, mas senti falta de algo. André, claro, marcou um belo gol de cabeça ainda no primeiro tempo, e Jean Pyerre, no segundo, definiu o placar efetivando um magistral gol de cobrança de falta, uma raridade no futebol apresentado hoje em dia nos gramados brasileiros. Tudo muito justo, tudo muito correto, porém, faltou enaltecer um fator crucial para o desfecho favorável desses dois lances: a participação fundamental do jogador Éverton em ambos os momentos. Foi Éverton quem penetrou na defesa paranaense com a bola e fez o cruzamento a André, permitindo a cabeçada golística no primeiro tempo. E foi também Éverton quem, na segunda etapa, sofreu a falta à frente da grande área adversária, que possibilitou a cobrança matadora de Jean Pyerre para dentro das redes.
Sem a atuação vital de Éverton, nenhuma dessas jogadas teria se transformado em gol, mas pouco (ou nada) se falou sobre os méritos de sua performance decisiva na articulação desses dois gols, reservando-se os refletores e as glórias para a dupla que finalizou. Assim também muito se dá nos gramados da vida cotidiana, quando não raro os coadjuvantes (fundamentais) das grandes conquistas veem seus esforços (vitais) serem apagados e sufocados pelas loas reservadas somente aos finalizadores de jogadas construídas em equipe. Zelando melhor pela autoria dos méritos de cada um, garantiremos sempre o envolvimento de todo o time na busca das conquistas cotidianas. Aí sim, é gol de placa.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 19 de agosto de 2019)

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Sem consenso no cardápio


Ninguém nega que comer é uma atividade vital para a existência humana. Envelopado em aspectos culturais e hedonistas, o ato de alimentar-se extrapola a esfera do impulso vital instintivo e alcança, entre as gentes, o status de prazer, de requinte, de deleite, de satisfação dos sentidos. Mais do que cimentar o estômago com alimentos, ir à mesa representa a ressignificação de um ritual em que a arte da gastronomia age a serviço da comunhão com amigos, com familiares e, muitas vezes, consigo mesmo. Assim, nos transformamos em gourmets, em chefs, em sommeliers (profissionais ou amadores, de diploma ou de araque) e cultivamos nossas visões pessoais a respeito do que significa “boa mesa”. Come-se, mas de boca e olhos bem abertos.
Aqui em Caxias do Sul, ir à mesa (de casa, do bar ou do restaurante) é uma atividade tão representativa de nossa cultura e de nosso jeito caxiense de ser que chegamos ao ponto de fomentar querelas insanáveis a respeito da melhor forma de preparar e/ou de servir alguns dos pratos que mais apreciamos. Nós, caxienses, dispendemos generosos nacos de tempo de nossas vidas para batermos bocas (às vezes cheias) quando o assunto é, por exemplo, a temperatura ideal para servir o sagu, que a maioria dos habitantes serranos (reza a tradição, porém, a tese ainda carece de estudo científico) jura preferir quente ou morno, mas alguns hereges refestelam-se em apreciar frio e/ou gelado. Nas lanchonetes, a questão gira em torno do xis, que deve ser apresentado, para uns, aberto e, para outros, prensado, e os embates não se dão à boca pequena. A pizza, não há quem não aprecie, porém, dividimo-nos na hora de optar por borda recheada ou sem borda nenhuma. A sopa de agnoline (que é de capeletti em certas távolas) chega ao debate nas versões al dente ou inflada de tão cozida (quando cada unidade se assemelha a um chapéu mexicano). O bauru rende bons bocados de discussão, pois que aqui é servido aberto no prato, revoltando os puristas que só o concebem fechado no pão. Nem a ortodoxa salada de radicci escapa da celeuma: deve vir com ou sem bacon? Já temperada com vinagre ou sem nada, para que seja azeitada ao gosto do freguês? E no tortéi, deve-se acrescentar canela no tempero do recheio ou não?
Impossível obter conciliação unânime nessa saborosa seara, afinal, também nos dividimos entre papos e grenás, entre pedestres e motoristas, entre friorentos e acalorados, entre “nativos” e “os de fora”. Só uma coisa é pacífica: no inverno, café preto tem de vir com um pingo de graspa, que é para não encarangar. Buon appetito!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 12 de agosto de 2019)

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

No ritmo do chiclete

É infernal. Ela vem, se instala, não pede licença e não vai embora. E não há mandinga, inventada ou por inventar, capaz de enxotá-la. Nem reza, nem promessa, nem oferenda. Nada. É exasperante. Você salta da cama e a música-chiclete que se instalou em seu cérebro já está lá, infernizando: a letra, a melodia, o refrão, repetidamente invadindo as lacunas ociosas de seu cérebro, obrigando-o a cantarolar o tempo todo, mesmo que não queira. No meu caso mais recente, trata-se de “Chains”, na versão que os Beatles gravaram em 1962, e que eu inventei de escutar no carro enquanto dirigia até a praia algumas semanas atrás. Pra quê! Desde então, é o dia todo aquilo na minha cabeça: “Chains, chains of looooo-ove! Chains of loooooooove! Chains of lo-o-o-oove”! Inferno! Não sai. Nada exorciza.
Tentando me livrar do pensamento recorrente-obsessivo, acorri ao santo google. Caí numa página que aborda a questão das “músicas-chiclete” e de como tirá-las da cabeça. “Estou salvo!”, pensei. “Vou ler e seguir as dicas”. A primeira consistia em escutar a música até o fim, porque, segundo estudos científicos, nosso cérebro embirra nisso de ficar cantarolando porque encara o refrão como uma atividade incompleta, e nossa agulha cerebral empaca nas ações não concluídas. Tem até nome o problema: “Efeito Zeigarnik”. Peguei o Cd, botei a rodar e cantei junto a música toda, do início ao fim, fazendo a primeira voz, o coro e o refrão. “Chains, my baby's got me locked up in chains...” E lá fui eu, desafinando a pérola Beatle, por uma boa causa (própria). Não adiantou nada. Pior: agora, sei a letra toda e o chiclete me pega em partes diferentes da canção.

A segunda dica era mover-me em ritmo diferente ao da música, para atrapalhar o maldito cérebro e esculhambar a coisa toda, expulsando o chiclete. Mas não se aplica ao caso. Trata-se de música dos Beatles, não tem como me mover devagar sendo ela contagiantemente dançante, e tampouco conseguirei chacoalhar de forma mais alucinada do que aquela que o rock já propõe. Descartado. Terceira dica: mascar um chiclete enquanto ouve a música, daí ela não gruda. Fora de questão, pois escutei sem mascar antes e ela grudou em definitivo. Quarta e última: trocar por outra música-chiclete. Rechaço essa, pois, se é para ser chiclete, que seja uma música dos Beatles. Talvez minha psicóloga tenha a solução para o problema. Até lá, “Chains of loooo-ve! Chains of looooooooooove!”. Fazer o que, se sou imune ao Efeito Zeigarnik. Felizmente, para mim e para o mundo, minhas ideias fixas são inofensivamente musicais...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 5 de agosto de 2019)

segunda-feira, 29 de julho de 2019

68 opções para a felicidade


Dia desses, ao ler a página “Caixa-Forte”, aqui no jornal “Pioneiro”, fiquei estupefato e boquiaberto ao deparar com determinada nota. Informavam elas (a nota e a colunista titular do espaço) que Caxias do Sul possui nada menos do que 68 pizzarias. A quantidade de estabelecimentos gastronômicos caxienses dedicados a oferecer aos famélicos clientes a iguaria típica italiana, que na verdade teve origem ancestral no Oriente Médio e no norte da África, foi o aspecto que me deixou estupefato. Boquiaberto fiquei devido ao desejo indomável que me invadiu ao ler a notícia, de meter-me dentro de um dos 68 estabelecimentos e sanar a fissura por um exemplar, sabor portuguesa, como sempre. Mas ainda era cedo da manhã e, enquanto a hora da pizza não vinha, pus-me a refletir, fechando a boca.
Sessenta e oito pizzarias, entre rodízios, a la carte e tele-entregas, em Caxias do Sul! É pizza pra todo o lado, convenhamos! Não sei quantas pizzarias existem em Porto Alegre ou em São Paulo, mas, convenhamos de novo, 68 é muita pizzaria para uma cidade só! E, convenhamos mais uma vez, apesar do número significativo, nós, caxienses devoradores de pizzas, sabemos muito bem que ainda há lugar para a 69ª e para a 70ª se instalarem e alegrarem a nós todos com margaritas, sicilianas, portuguesas (amo!), alho e óleo, quatro queijos, milho, calabresa, peito de peru, rúcula com tomate seco (a titular da “Caixa Forte” ama, que eu sei!), estrogonofe, camarão (meu afilhado ama, por ser caríssima!), picanha (até pizza de costela já inventaram), isso sem falar nas doces, onde há espaço de sobra para o exercício da criatividade, como as vindouras e ainda não criadas pizza de sagu (quente e gelado, ao gosto do freguês), pizza de ambrosia, pizza de pudim de leite, pizza de chico balanceado... Que horas são? Manhã, ainda... Aiai!
Segundo pesquisas que fui desenvolvendo ao longo do dia, a fim de consolidar a obsessão por uma pizza com a qual finalizar a jornada, descobri que em São Paulo são consumidas um milhão de pizzas por dia! Bons comedores de pizzas, esses paulistas! Gostaria que alguém fizesse o cálculo aqui na nossa Caxias das 68 pizzarias. O perfil de uma cidade e a personalidade coletiva de seus habitantes talvez possam ser compreendidos também pela quantidade de estabelecimentos que nela se instalam. Caxias, por exemplo, possui 68 pizzarias e, desde a semana passada, quase nenhuma banca de revistas, já que algumas das tradicionais foram pulverizadas no centro da cidade. Melhor nem pensar muito. Garçom, uma portuguesa pra mim, por favor!

(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 29 de julho de 2019)

segunda-feira, 22 de julho de 2019

A performance de Galardón


Argentino, meu amigo argentino que mora em Caxias desde a época em que se circulava nos sábados à tarde pela Avenida Júlio em São Pelegrino fazendo a “Caravana da Polenta”, é um exímio adestrador de cachorros. Aprendeu o ofício quando estudava na Universidad de Buenos Aires, levando a passear, pela Recoleta, “los perros de las madamas porteñas” a troco de “unos valorosos pesos”, que lhe permitiam incrementar o sustento e saborear “un asado de tira com chorizo” na parrilla dos finais de semana. Argentino era um “perrero” de primeira, requisitado pelos donos e adorado pela cachorrada buenosairense, de quem recebia lambidas embaladas em gratidão canina.
Aqui em Caxias, adestra cachorros como hobby e incremento do sustento, o que lhe permite fruir galetos ao primo canto e sagus gelados nos finais de semana em cantinas típicas. Domingo desses me convidou para almoçar em sua casa, pois queria me apresentar o novo habitante do lar: Galardón, um fox terrier saltitante, que já na chegada ameaçava lustrar meus tênis erguendo a patinha e mirando o jorro que acabou pegando em cheio no vaso com o cactus do Atacama posicionado ao lado, pois que pra lhama também não sirvo e sei ser ágil em momentos cruciais. “Te voy a mostrar como Galardón es um perro inteligente”, acudiu Argentino, embalado no avental de chef que usa sempre que se bota a brigar com “el maldito carvón brasileño” frente à churrasqueira. “Te vás a ver como se finge de muerto”, disse, e gritou para Galardón: “Muerto!”
O bicho enrijeceu de pronto, estalou os olhos, cerrou os dentes, pôs a língua pra fora e tombou de lado sobre o tapete da sala, derrubando o vaso com o cactus do Atacama. “Toca-lo”, ordenou-me Argentino, esgrimindo o espeto com o salsichão. “Eu não!”, respondi. “Toca-lo!”, insistiu. Encostei meu dedo na pele do bicho. Frio e rígido, como um cactus do Atacama. “Tchê, ô, meu, esse teu cachorro morreu mesmo, véio”, falei, pasmo. “Nada; mira”, disse ele, e gritou, estalando os dedos: “Galardón, en pié!”. O animal pulou. Saiu do transe, girou sobre si mesmo, reviveu e veio direto lamber meus tênis, erguendo de novo a patinha, repleto de ideias fixas ressuscitadas. Argentino, satisfeito, voltou à churrasqueira, enquanto Galardón pulava ensandecido ao seu redor, orgulhoso da performance. De minha parte, estava inclinado a refletir sobre as relações consentidas de submissão e poder, mas era domingo, a crônica de segunda já estava pronta e precisava limpar o tênis. Me fiz de muerto e fui brincar com Galardón. Saber quando deixar por isso mesmo também é uma arte.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 22 de julho de 2019) 

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Doce paixão à primeira vista


Trata-se, sim, de amor à primeira vista. Apesar da desconfiança pedregosa dos incrédulos e dos portadores de coração cimentado, essa espécie de encantamento súbito existe e pode se manifestar a qualquer momento, derreando os escudos protetores empunhados pelos cerebralistas e redespertando a consciência de que somos humanos, afinal de contas. Não existe proteção capaz de impedir a invasão de sensações que se apoderam do ser quando o encantamento acontece. Corpo e alma acusam os efeitos do súbito sucumbir à paixão e nada resta senão entregar-se a seu usufruto, também de corpo, também de alma.
Para tanto, se faz necessário, por definição, que haja contato visual. Se assim não fosse, o apaixonamento não poderia ser classificado na categoria dos “à primeira vista”, certo? Contato visual direto, ao vivo, sem filtros e sem intermediários. Não basta a observação de uma fotografia do objeto apaixonável. Nada disso. É preciso que se dê o fenômeno do “olho no olho” para que o sistema nervoso seja invadido pela adrenalina do desejo, arrepiando os poros da pele, dilatando as pupilas, acelerando os batimentos cardíacos, provocando sudorese nas palmas das mãos, entreabrindo a boca e incrementando a produção das papilas gustativas. É quando, então, salivamos.
Salivamos desbragadamente, tomados pela paixão e pelo desejo, porque não há como fugir do amor à primeira vista que nos subjuga quando entramos na confeitaria e nosso olhar recai sobre aquela unidade específica de massa folhada fresquinha, o recheio amarelado escorregando pelas laterais, a prenunciar o sabor que explodirá dentro de sua boca dali a instantes, quando a oferenda lhe for conduzida à mesa pela moça que atende no balcão. Você identifica de antemão que a massa, fininha e crocante, foi feita no capricho pela doceira anônima que trabalha incansavelmente nos bastidores, touca na cabeça, na produção de delícias apaixonantes que serão consumidas por hordas de desconhecidos, espalhando prazer e alegria de viver por todos os pontos da cidade. É batata! Você vê, se apaixona, acendem-se as chamas do desejo e você aponta o dedo: “essa ali”. Simples assim. Paixão à primeira vista correspondida, consumada e saciada. Que delícia!
Pena, né, madama, que nem todas as paixões da vida possam ser enquadradas dentro de um naco de massa folhada. A maioria precisa ser trabalhada, cultivada e construída ao longo do tempo, após o gatilho da “primeira vista”. Se assim for, poderão durar bem mais do que a curta sobrevida ofertada por uma massa folhada, por mais deliciosa que ela seja.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 15 de julho de 2019)

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Nem no alto do cume!


Nesses tempos pontuados por redes sociais, câmeras de vigilância espalhadas pelas esquinas, aparelhos digitais filmando tudo em todos os lugares a todo o instante, somos obrigados a rever nossos antigos conceitos de privacidade. Estar só, consigo mesmo, em silêncio, tornou-se uma aspiração desafinada com o espírito da época. A maioria parece não se importar com isso, uma vez que, a julgar pelo teor das postagens nas redes sociais, o que a galera quer mesmo é ser vista, notada, curtida. Vivemos um engarrafamento de egos de dimensões planetárias, nunca antes visto ou imaginado na história da humanidade. Somos sete bilhões de super-astros vivendo nossas vidas triviais, sonhando sermos o último biscoito do pacote. Sete bilhões de derradeiros biscoitos acotovelando-se no fundo do pacote da egolatria narcísica, um dos atributos desse 21º século.
Como fugir disso? Ir para a praia, talvez? Já houve época em que rumar ao litoral nas férias de verão consistia em uma excelente opção para quem desejasse dar uma pausa na correria do cotidiano nas cidades e mergulhar numa onda de paz e sossego. Mas isso foi-se há tempos. Ir para a praia nas férias, hoje, significa trocar o acotovelamento do cotidiano do ano todo nas cidades pelo acotovelamento do verão nas praias superlotadas, uma vez que todo mundo tem a mesma ideia que você. Sartre, o escritor e filósofo francês, aquele do cachimbo, detectou que “o inferno são os outros”. Quanto ao inferno, não sei; sei é que o mundo, esse sim, está cada vez mais abarrotado de outros.
Uma alternativa de fuga das multidões seria comprar uma passagem para o Nepal, enfiar uma mochila nas costas, alugar uma picareta, surripiar aquela toca da vovó, arranjar um par de luvas, cravar pregos nas botas e botar-se a escalar o Everest, a montanha mais alta do planeta. Lá em cima, encarapitado no pico do monte, contemplando o céu infinito e a paisagem gelada do Tibete, você enfim poderá relaxar e gozar um precioso instante de reencontro com aquele seu eu que habita o recôndito de sua alma. Não é mesmo? Era, cara pálida! Porque nem mais isso dá para fazer. Notícias recentes, com fotos incríveis, revelam que o Everest anda vivenciando surreais engarrafamentos de alpinistas provenientes de todas as partes do mundo, rumo ao seu cume. Filas e filas de centenas de alpinistas esbarram picaretas nas íngremes trilhas em uma região que já foi considerada entre as mais inóspitas da Terra. Alguém aí sabe que horas parte o próximo voo para Plutão? Hein? Já está lotado? Ah, já sei! Vou me refugiar em uma biblioteca...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 8 de julho de 2019)

segunda-feira, 1 de julho de 2019

É proibido embolar


Há coisas que deveriam ser proibidas. Já que agora estamos vivendo na era do “não pode”, também tenho cá minhas reivindicações cerceadoras e proibitivas a apresentar à sociedade, pensando sempre, claro, no meu próprio bem estar e tendo como régua geral a medida de meu próprio umbigo, a decretar o que é bom e o que é ruim, o certo e o errado, e ai de quem discorde de mim. Pois então, vamos lá. Primeira coisa a proibir (ainda não sei se em esfera municipal, estadual, federal ou interplanetária): a prática de vizinhas fazerem bolo cheiroso de manhã cedo, infestando os corredores do prédio e os nossos lares com um aroma sedutor proveniente de uma guloseima cujo usufruto está desde já cerceado ao nosso deleite, uma vez que não sabemos exatamente de onde vem e não temos relações previamente estabelecidas com a dita cozinheira, que nos habilitariam a batermos à sua porta com olhar pidão e implorarmos por um naco.
Sim, porque, assim não dá! Você está ali, sentado em seu escritório caseiro (“home office”, que fica mais elegante e como a madama zelosa sempre cuida de me corrigir, pensando no lustro da imagem profissional deste esmerado cronista de segunda), mergulhado no trabalho, e, de repente, suas narinas são surpreendidas por aquele aroma de bolo de chocolate, ou talvez de nozes, quiçá recheado com baunilha e avelãs, com cobertura de leite condensado e mel, e seus pensamentos embolam, sendo impossível prosseguir com o raciocínio que lhe permitia escrever os livros para os clientes, corrigir os originais enviados, detalhar os projetos futuros, tecer uma crônica de segunda ou postar algo supimpa na internet. Você fica imobilizado frente ao êxtase que se apossa de todo o seu ser a partir da invasão daquele bouquet bolístico que evoca recordações relativas a avós e seus quitutes. Todo o seu corpo palpita, em especial o estômago e a boca, inundada pelo caudaloso rio de saliva produzida pelas papilas gustativas, acionadas em função da vigência da lei científica do reflexo condicionado, que diz: bolo feito, baba solta.
Sim, deveria ser proibido. Se não por meio de lei regulamentada e sancionada em todas as esferas, ao menos, a partir de cláusula extra de conduta aprovada em reunião de condomínio. “Fica proibida a prática do bolo nas dependências do prédio, a menos que imediatamente ofertado a todos os moradores logo após saído do forno”. Porque, nesses tempos bicudos, temos de pensar em nós mesmos, né, madama, e a senhora não me olhe com essa cara de quem acha que ando raciocinando com a barriga, porque não sou o único!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 1 de julho de 2019)

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Abelhudo, nunca mais!


Cientistas afirmaram recentemente que os seres vivos mais importantes do planeta são as abelhas. Estou chocado! Achava que era eu! E mais: os pesquisadores envolvidos na questão são internacionais (o que lhes confere credibilidade a nossos olhos nacionais) e chegaram à desconcertante conclusão após exaustivos estudos (o fato de terem sido exaustivos amplifica ainda mais o espectro da credibilidade envolvida). Ou seja, fica claro a todos aqueles que não são abelhas que não se trata aqui de “achismo” ou de alguma leviana e precipitada suposição. Nada disso. A coisa é séria. É científica. É real. E terei de me conformar: aos olhos da Natureza e do planeta todo, eu, este abnegado cronista de segunda, valho menos do que uma abelha!
É isso: sou mais irrelevante do que o insetinho amarelo para o equilíbrio do ambiente natural, para a manutenção da afinação da orquestra da vida. Que coisa! Em uma situação hipotética, a verdade é que, se a Natureza for obrigada a decidir entre eu e as abelhas, ela não hesitará em bater o martelo em favor dos bichinhos. Bom, mas se for pensar a fundo, meu espanto e minha decepção para comigo mesmo (em perspectiva das abelhas) não se justificam, exceto quando sob a luz do exercício contumaz da soberba, da vaidade e do narcisismo. Afinal, de onde tirei que a escala de valores haveria de ser diferente? Onde fui buscar tamanha convicção? Em que indícios embasei a certeza de minha autoproclamada relevância superior? Ah, madama, no pó... Na poeira das vaidades, só pode ser.
Mas, analisando bem, fica claro que eu não teria mesmo capacidade alguma de seduzir e encantar nenhum exaustivo cientista internacional envolvido na pesquisa, uma vez que, diferentemente das abelhas, eu não voo, não tenho a habilidade de produzir mel, não dou ferroadas (fora as simbólicas), não habito colmeias, não polinizo ninguém e não obedeço a uma rainha (aqui, poderia arriscar ceder à tentação de tecer uma metáfora evocando a dedicação direcionada à senhora minha esposa, mas incorreria na possibilidade de soar forçado, o que comprometeria ainda mais minha já abalada moral e o ferrão sairia pela culatra). Vejo-me, pois, desprovido dos atributos que conduziram as abelhas naturalmente ao patamar de seres mais relevantes na escala da vida, melando por completo as pretensões de importância que até então eu acalentava sobre mim mesmo, restando ao meu ego recolher-se à sua operária insignificância. E não ficar zangão com isso. Cada macaco no seu galho, e aceitar o seu lugar no mundo é um aprendizado vital. Por sinal, acabou o mel...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 24 de junho de 2019)

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Entre bancas e barbearias


Argentino, um grande amigo meu, nascido em Posadas e residente no Brasil há décadas, é fissurado em barbearias. Melenudo e barbudo como é, tornou-se, por hábito e estilo, freguês tradicional de barbearias daqui de Caxias do Sul, onde mora desde que havia macaquinhos no Parque dos Macaquinhos. Mas, conforme apregoa nas rodadas de cerveja em nossos tradicionais happy hours do findar das sextas-feiras, gosta é das barbearias mesmo, típicas e tradicionais, aquelas atendidas por barbeiro velhinho e careca, trajado em jaleco azul-clarinho, anel de pedra vermelha no dedo mindinho, a aparar arestas capilares com tesoura pontuda e pente bege seboso, manuseando com destreza a navalha em nossos pescoços arrepiados frente ao contato com o gelo do aço e ao temor de que sua mão “non trema jamás!”. “A mí me gustan las peluquerias tradicionales y no los meleneros de barber shop”, reitera, mergulhado em uma convicção que se consolida a cada nova rodada.
Eu escuto e aceito. Afinal, cada qual com suas idiossincrasias, sejam elas brasileiras ou correntinas. Não discuto as barbearias do Argentino e aceito suas preferências, assim como ele o faz em relação ao meu declarado amor pelas bancas de revistas. Sou fissurado em bancas de revistas desde que me conheço por gente, e me conheço por gente desde antes da época em que havia macaquinhos no Parque dos Macaquinhos. Em Ijuí, comprava meus exemplares de “Pato Donald”, “Heróis da TV”, “Recruta Zero” e “Recreio” na Livraria Progresso (que, apesar do nome, era banca de revistas) e no Quiosque da Praça. Quando ia a São Borja em visita aos avós maternos, torrava a mesada em aquisições impressas feitas na banca “A Preferida”. Nas idas a Porto Alegre, atacava as edições importadas da Marvel na banca da Praça da Alfândega. Em Santa Maria, batia ponto dia sim, dia também, na banquinha instalada na boca do Calçadão.
Em Caxias do Sul, fui adotando bancas uma após a outra, desde que aqui resido (quando apareci, já não havia macaquinhos no Parque dos Macaquinhos), e chego a ser tratado como “da casa” em uma delas em especial, assim como ocorre com o Argentino em sua barbearia predileta. Minhas bancas de revistas e as barbearias dele são nossos vislumbres pessoais do paraíso. No meu caso, um paraíso que anda ultimamente assolado por ações de patrolamento e de incineração de bancas de revistas na cidade em que moro. Assustador. De deixar melenas em pé. “Signal de los tiempos”, vaticina o Argentino, saboreando sua IPA, melenas recém tosquiadas. Mas meu cabelo se arrepia. Hora de aparar as arestas...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 17 de junho de 2019)

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Leve seu cavalo até a água


George Harrison, conhecido como “o Beatle quieto”, entrou em estúdio para gravar uma nova canção de sua autoria, pela última vez, no dia 1º de outubro de 2001, oito semanas apenas antes de sua morte por câncer, ocorrida em 29 de novembro, aos 58 anos de idade. Mesmo debilitado devido à luta que travava já há anos contra a doença, ainda teve fôlego para produzir, ao longo de 2001, aquele que seria seu derradeiro álbum, “Brainwashed”, lançado postumamente no ano seguinte. Criativo até o final, não se furtou em também gravar os vocais de sua última composição (não teve forças para executar os riffs de guitarra que pontuaram sua genialidade ao longo da carreira solo e nos Beatles) naquele seu último outubro de vida, mostrando um vigor incompatível com quem se via rondado pela presença da morte. Afinal, cantar é uma atividade que louva o sopro vital, e George cantou até o fim.
Mas a questão aqui, para efeitos desta croniqueta de segunda, não é a vida e a morte do Beatle, e, sim, o teor do tema contido naquela sua obra final, explicitado no refrão da canção que batizou como “Horse to the Water”. O refrão diz assim, em livre tradução por conta do precário inglês do precário cronista: “Você pode levar um cavalo até a água, mas não pode fazê-lo beber” (“You can take a horse to the water, but you can´t make him drink”). É uma boa metáfora, e dá no que pensar. O mantra não foi criado por ele, trata-se de adágio popular amplamente conhecido, mas reveste-se de significado infinito quando visto sob a perspectiva e inserido no contexto: afinal, rondava os pensamentos de alguém que sabia estar vivendo seus últimos dias na Terra. Escutando a canção e atentando ao timbre da voz de Harrison, é impossível evitar emocionar-se com a convicção com que ele interpreta a frase, intensa na missão de nos fazer refletir sobre até que ponto podemos auxiliar os outros em suas jornadas pessoais, e a partir de que ponto nada mais podemos fazer, cabendo a eles próprios a responsabilidade por seguir seus caminhos, definir suas prioridades, tomar suas decisões.
Não há nada que possamos fazer se o cavalo der uma de mula e recusar-se teimosamente a beber a água que, sabemos, lhe será vital e reconstituinte. Não podemos beber por ele. Podemos fazer toda a propaganda das maravilhas curativas da água e tirarmos do caminho as pedras que lhe impedem o acesso à fonte. Porém, em chegando lá, cabe ao cavalo bebê-la. Afinal de contas, cada qual tem sua própria cavalgada por essas pradarias mundanas, né, madama? E cabe a cada um administrar a sua sede. Saúde!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 10 de junho de 2019)

segunda-feira, 3 de junho de 2019

O que Félix vai fazer?


“Ressurreição” é o título do primeiro romance escrito e publicado por Machado de Assis (1839 – 1908), em 1872, quando o ainda jovem autor de contos e crônicas em jornais aspirava ocupar um lugar de destaque no cenário literário brasileiro, o que acabou acontecendo com méritos mais adiante, não se sabe se superando ou se cumprindo as suas expectativas. Machado, como a madama está careca de saber, é nosso Shakespeare brasileiro e ombreia-se ao bardo inglês nos quesitos qualidade, criatividade, relevância da obra, originalidade e, por fim, mas mais importante: genialidade. Só não alcançou a universalidade obtida por Shakespeare pelo fato de ter nascido brasileiro e, por consequência, escrever em português, mas isso são outros quinhentos, como já diziam nossos avós, nos tempos em que quinhentos ainda valiam metáfora.
“Ressurreição” antecede os arroubos inigualáveis de genialidade literária que se apossariam de Machado nos anos seguintes e o levariam a produzir joias como “Dom Casmurro”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba”. Ao lê-la, percebe-se nela claramente suas condições de obra de estreia e o tamanho da quebra estrutural narrativa que o autor protagonizaria com o amadurecimento de seu gênio, mas, ao mesmo tempo, é também possível detectar nas suas linhas e entrelinhas a presença já latente dos aspectos que distinguiriam e viriam a compor as características inimitáveis do escritor no futuro. A trama é simples: Félix, jovem médico prematuramente auto-aposentado em virtude de uma herança, vive uma vida tranquila pautada pelo mundanismo despreocupado, focado no cultivo de amizades, de presença em recepções sociais e de romances deliberadamente efêmeros e superficiais. Até que, súbito (e se não fosse súbito não haveria literatura), surge Lívia, bela e jovem viúva, irmã de um de seus amigos.
Lívia apaixona-se por Félix e passa a demonstrar o sentimento que se assenta em seu coração a partir de pequenas pistas sutis que são captadas pelas antenas ligadas de Félix. O dândi, no entanto, vê-se enredado em um dilema: não pode negar o florescer em si de uma paixão indomável pela moça. No entanto, hesita em se entregar inteiro ao consumo daquele amor, talvez por medo de balançar as estruturas do modo de vida que até então cultivava. Vale a pena fazê-lo ou não? A história acabará bem ou mal? Não sei, madama, ainda não concluí a leitura. Só sei que, assim como Félix e Lívia também o sabem, a vida é um livro aberto. Para sabermos o desfecho, precisamos vivenciá-la (a vida e o livro) até o final. Boas leituras.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 3 de junho de 2019)

segunda-feira, 27 de maio de 2019

Convite para debelar o frio

“Mas, homem, entra! Chega mais perto do balcão. Tá muito frio aí na porta!”. Verdade. Ele tinha razão. A manhã estava enferruscada, típica outonal da Serra Gaúcha. A cerração baixada como um manto sobre a cidade desde cedo e avançando manhã adentro, sem sinal de intenções de arrefecer em espessura. Enxergava-se poucos palmos à frente do nariz, e o meu é suficientemente avantajado para servir de GPS e antena protetora frente a obstáculos repentinos como a sombrinha da senhorinha que vem firme na direção oposta, apontando direto para o centro dos meus óculos. E frio. As baixas temperaturas já se reapresentando como companhias perenes ao longo dos próximos meses que nos separam do já ansiado vindouro veraneio. Sim, melhor entrar e sair do frio. Entrei.
O estabelecimento é antigo, tradicional e central. A porta dá rente à calçada e o balcão fica a meio passo da entrada. Debruça-se sobre ele para tirar do bolso o controle remoto do portão da garagem e se pede ao moço que troque a pilha. Ele então se some lá para dentro a fim de executar o servicinho que, quando protelado, gera minutos de raiva na garagem enquanto o portão não obedece ao comando inerte fruto da pilha fraquinha. Durante a espera, o vento empurra o frio contra as costas e gera arrepios involuntários que o proprietário do estabelecimento detecta, por detrás de uma mesa, fazendo então o convite para que eu avance rumo ao calor e ao aconchego. Saio da porta e entro.

Não satisfeito, o dono aponta para uma garrafa térmica disposta em um dos cantos do balcão: “vai um chá quentinho?”. Vai, sim. Aceito o chá. Quentinho mesmo, restaurador, sorvido de dentro de um copinho plástico. O moço retorna com o controle pilhado. Pago a ninharia, despeço-me e retorno ao frio e à vida da rua, com a pilha do controle renovada e a bateria de minha fé na humanidade recarregada. Custou pouco ao dono da loja ser atento e gentil. Custou o preço de um copinho de chá e de um convite acolhedor. Investimento mínimo com retorno astronômico, pois ganhou um cliente para a vida inteira. Jamais trocarei pilha em outro estabelecimento na cidade que não seja ali, enquanto existirmos eu, o lugar e os controles remotos. Afinal, sou viciado em bom trato. Faz toda a diferença. Especialmente nesses dias em que o frio do clima compete com a frieza que regela as almas das gentes, a despeito da estação vigente no calendário. Acolher ainda é a melhor estratégia de marketing. O custo pode ser caro ou barato. Depende do quanto cada um tem acumulado em termos de patrimônio humano para oferecer à clientela.

(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 20 de maio de 2019)

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Petiscos de um sonho faustoso


A vida é feita de sonhos, de metas, de objetivos a serem alcançados. Quanto mais alta a meta, maior a satisfação em conquistá-la, maiores os esforços direcionados à tarefa, maior o número de cumprimentos, sorrisos e tapinhas nas costas, advindos de seus pares, sabendo que, ao fazê-lo, eles roem cordões infindáveis de uma inveja pulsante a escorrer por entre o canto escancarado da boca sorridente sobre fileiras de dentes trincados. Sim, é nessa bandeja que se moldam os sonhos mais improváveis, que só não são concretizados quando o próprio sonhador neles deposita fé de menos. Eu, desde a semana passada, cultivo um desses sonhos. E tenho fé demais, madama, de que o verei realizado. Eu sonho ser convidado para um jantar oferecido pelo Supremo Tribunal Federal!
Já pensou, madama, eu lá, sendo servido como um rei, ou melhor, como um magnata saudita, um bilionário russo, um investidor da Bolsa de Tóquio, a desfrutar de uma saborosa lagosta ao molho amarelo cuja composição nem desconfio? Isso, claro, quando já à mesa, porque, antes, brindarei junto a meus pares com um espumante brut portador de pelo menos quatro premiações internacionais e, após, pedirei ao garçom uma dose daquele conhaque envelhecido por pelo menos dois anos, conforme consta no menu e na licitação oficial feita pelo órgão. Entabularei conversações com o sheik marroquino a respeito das monções no leste do Vietnã nessa época do ano, enquanto bebericamos doses delicadas de cachaça envelhecida em barris de madeira nobre. E estaremos prontos, então, para atacarmos a lagosta, os carrés de cordeiro, o camarão à baiana, o bacalhau à Gomes de Sá, os tournedos de filé (a senhora sabe o que são tournedos, madama?), entre outras delícias previstas na exclusiva licitação.
Nosso jantar será harmonizado à base de vinhos envelhecidos em barris de carvalho franceses ou americanos, e não menos que isso! Ao final, para a digestão, charutos? Será que haverá charutos? Não sei se o edital para a compra dos itens dos jantares futuros do STF prevê charutos. Tomara que haja charutos! Não fumo, é verdade, mas tenho certeza de que um charuto após as lagostas e os tournedos cairá melhor do que a colher de Olina que tomo em casa quando exagero de noite na sopa de anholine. Aliás, madama, reserve já uma data na agenda para jantar comigo aqui em casa depois de meu sonho concretizado, para sorver, em detalhes pomposos, a narrativa dessa aventura eno-gasto-nômica (faltou um “r” ali no meio, mas deixemos assim). Vou servir uma sidra de maçã e uma rabada à pururuca que lhe soarão faustosas!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 20 de maio de 2019)