domingo, 31 de maio de 2015

Jovem cientista e cidadã

É motivo de orgulho, de alegria e de esperança a premiação recebida pela estudante universitária são-marquense Joana Pasquali, que conquistou este ano o primeiro lugar na 28ª edição do Prêmio Jovem Cientista, promovido nacionalmente pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Ufa, como se vê pela extensão dos nomes do prêmio e das instituições que o promovem, não se trata de coisa pouca.
E não é mesmo. Pelo contrário, é coisa grande, e boa. Muito boa. A iniciativa governamental tem como foco incentivar o despertar do pensar e do fazer científicos entre estudantes dos ensinos médio e universitário de todo o país em busca de soluções para questões que afetam o cotidiano das pessoas. Afinal, é para isso que a Ciência serve, ou deveria servir. A edição deste ano do Prêmio Jovem Cientista voltou-se ao tema da Segurança Alimentar e Nutricional, recebendo a inscrição de 1,9 mil trabalhos de todas as partes do país. Caiu como uma luva para a ideia que a jovem Joana, de 17 anos, vinha matutando: o que fazer para reagir ao escândalo da adulteração de milhões de litros de leite registrado no nosso Estado a partir da Operação Leite Conden$ado?
Transformando a garagem de casa em laboratório, Joana, que no ano passado estava no final do Ensino Médio (ganhou o prêmio nessa categoria, dividindo o primeiro lugar com outro gaúcho, Deolan Perini, de Erechim, que se destacou na categoria Ensino Universitário), criou um kit simples e eficaz que detecta em apenas um minuto a existência ou não de substâncias tóxicas no leite, o Detectox. Agiu como cientista e como cidadã e pimba: ganhou o prêmio.

Hoje, a jovem cientista Joana cursa Engenharia de Materiais na Universidade de Caxias do Sul, com a certeza de ter cumprido seu papel de cidadã, enriquecendo um ciclo virtuoso que teve início com a ação da polícia que desvendou a fraude. Funciona assim, esse ciclo, com cada agente cumprindo o seu papel: a polícia desvendando e prendendo; a Justiça condenando; a imprensa divulgando e os cidadãos reagindo a partir do conhecimento dos fatos. Joana reagiu sendo propositiva, ativa, alterando para melhor o mundo ao seu redor, criando aqui no Estado o antídoto para o veneno também surgido aqui no Estado. Antes de ser a cientista que de fato é, Joana é cidadã. Parabéns.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de maio de 2015)

sexta-feira, 29 de maio de 2015

O apagar do "o"

Observo que a letra “o” do teclado do meu notebook está se apagando. Trata-se de um teclado todo preto, com as letras impressas em branco, uma em cada tecla (o que é óbvio), e elas vão se apagando com o uso e com o tempo. Com o tempo de uso, melhor dizendo. Mas é a letra “o” quem se destaca nesse processo sutil e quase despercebido que as teclas empreendem, de irem desaparecendo um pouquinho, um quase nada, a cada toque nelas impresso pelas digitais de meus dedos.
Se olhar com atenção, percebe-se (e o amigo leitor, a amiga leitora, perceberiam igualmente, caso aqui estivessem) que o “o” está ali, porém, não mais inteiro em sua circunferência perfeita. A parte superior esquerda, ou seja, a região noroeste da letra “o” do teclado do meu notebook já não existe mais, apagou-se. Algum incauto mais desavisado que resolvesse utilizar meu notebook não se depararia com uma letra “o” perfeita, mas, sim, com uma espécie de gancho alocado à direita na tecla, ou ainda um pequeno “j” sem o pingo e mais curto nas costas, se é que essas imagens ajudam a formular uma visão clara do estado em que se encontra a letra “o” do teclado do meu notebook atualmente. Não tenho mais um “o” aqui e, sim, um semi-o, um quase-o, um o-menos, uma vogal ceifada, enfim.
E por que logo a letra “o”? Será que pressiono-a mais do que as demais teclas nos meus escreveres? Será que cultivo um terrível defeito de estilo, no qual abundam “os” em demasia? Vejamos. Usemos a primeira frase desta crônica como cobaia para um rápido levantamento, um recenseamento de letrinhas. Conto ali o uso de dez vezes a letra “o”, disparado a vogal que mais foi conclamada a comparecer à confecção daquela frase. Em segundo lugar figura a letra “e”, que aparece sete vezes, empatada com a “a”, também sete. Uso apenas duas vezes o “u” e o “i” sequer aparece. Aliás, observo agora como o “i” está novinho em folha aqui no teclado, quase intocado. Sorte dele. “O”, artigo definido masculino. “O” isso, “o” aquilo. Deve ser por isso.

A segunda tecla mais apagada é a da letra “e”. “E”, de “eu”, afinal, “eu” isso, “eu” aquilo. E, depois, vem apagando-se a letra “m”, óbvio, de “Marcos”. Conclusão: o apagar das letras na tecla do computador revela a extensão do narcisismo de quem o usa. Por isso que adoro as ciências humanas...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de maio de 2015)

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Sai da frente

Paris e Londres, duas das principais capitais do mundo, são cidades centenárias, milenares, na verdade, opulentas em tradição, cultura, história, charme e civilização. Ricas em atrativos turísticos, têm suas calçadas, ruas, avenidas, bulevares e parques apinhados de gente vinda de todo o mundo, todos os dias, o tempo todo. Como também são o centro financeiro e político dos países e do continente aos quais pertencem, agregam ainda as atenções e a presença de seus próprios cidadãos, o que as transforma em áreas urbanas ultrapopulacionadas, os forasteiros acotovelando-se com os “locais”, a profusão das línguas, dos usos e dos costumes moldando Babeis modernas, vibrantes, pulsantes, repletas de vida: o sumo da civilização ocidental.
Isso tudo agregado a um trânsito de veículos proporcionalmente intenso. Na verdade, Londres e Paris, assim como todos os grandes centros urbanos do mundo moderno, são cidades cujas ruas estão atopetadas de automóveis, táxis, ônibus de linha e de turismo, trens, motocicletas, bicicletas, taxi-bikes e congêneres, disputando palmo a palmo o asfalto em busca de movimento, do ato de deslocar-se, tão representativo dessa Era dos Transportes que vivemos desde o início do século passado. E o que acontece nas ruas dessas duas capitais do mundo é o mesmo que se dá em um brete de fazenda ali nos Campos de Cima da Serra, quando a peonada enfileira a boiada toda, um boizinho atrás do outro no cabresto, a fim de vacinar ou marcar o gado: bicho demais para espaço de menos, e entrevero, na certa.

Sim, tem entrevero também no trânsito da elegante e luminosa Paris e na charmosa e vibrante Londres. Igualzinho ao que acontece aqui em Caxias em dias de chuva, em dias de neblina, em dias de sol e em dias de neve. Igual no entrevo, sim, mas diferente no comportamento dos motoristas, que acabam fazendo toda a diferença. Isso porque, lá, os motoristas transitam calma e maduramente no trânsito engarrafado. Vão indo conforme o fluxo permite, sem nervosisminho adolescente, sem cortar a frente do outro, sem forçar, respeitando as regras de trânsito. Já aqui, em uma sociedade formada por adultos com comportamento infantil, inconsequente e irresponsável, até mesmo estar parado no engarrafamento representa risco. Amadureceremos? Façam suas apostas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de maio de 2015)

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Pelo Dia do Leitor

Um livro lido e as reflexões sobre a vida que suas páginas suscitam; um filme visto ou revisto e as impressões que ele causa; uma peça teatral, a performance dos atores, o desfecho triste (uma tragédia, porque acaba mal) ou feliz (então, uma comédia, pois que bem termina); as sensações decorrentes do usufruir de uma música; uma conversa com um amigo; um fato que ganha as manchetes dos jornais, sobre o qual todos comentam, porém, deixam escapar um viés que só você percebeu; uma nota de rodapé que, apesar de tímida, revela uma singular experiência, metáfora de toda a existência; um prato delicioso; um sabor, um tom, um toque, uma imagem, uma voz, uma palavra, um silêncio, um cheiro, o voo de um pássaro; uma data importante, o centenário de nascimento ou de morte de uma celebridade, um fato quase esquecido; uma lembrança da infância, uma pessoa que nunca mais se viu; um arrependimento, um orgulho, uma noite de insônia e aquela com o sono dos anjos também.
Todas essas coisas, e centilhares de outras que não foram citadas, costumam ser as principais fontes de inspiração para um empilhador de palavras que precisa exercitar diariamente o ato de produzir crônicas a serem publicadas em jornal de grande circulação regional, oferecendo motivos para a reflexão e, se possível (o mais importante de tudo), por meio de um texto agradável de ler. Nem sempre se consegue, e é justamente o tentar que justifica a produção, mesmo que às vezes menor, da obra que o cronista se propôs a moldar.
Mas o que realmente legitima todo esse empenho diário é o retorno que aquela parcela atenta e generosa dos leitores se preocupa em dar ao cronista esforçado. O e-mail que aterrissa na caixa de entrada; o telefonema do mais ousado; a abordagem direta na calçada; o compartilhamento do texto pela internet para que todos o leiam. É assim, a partir dessas gotas de ouro de retorno, que o autor consegue ter uma noção de como seu trabalho ganha vida e significado no íntimo de cada pessoa (conhecida ou anônima) que com ele se relaciona, fazendo do texto uma entidade viva e transformadora dentro do cotidiano de cada um.

Sou grato a cada um desses leitores que tiram, de vez em quando, um pouco de seu tempo para alimentar com palavras a solidão do escritor no ato da escrita. Eu, por mim, criava o Dia do Leitor!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de maio de 2015)

terça-feira, 26 de maio de 2015

Dar e receber

Saber presentear é uma arte humana sutil, delicada e complexa. Requer uma conjunção de atributos raros de confluírem em uma mesma personalidade, daí a razão pela qual se configura em habilidade incomum, desempenhada com excelência por poucos. Para presentear bem, é preciso exercitar a capacidade de desindividualização do indivíduo, de colocar-se na pele, na mente e no mundo do outro ser, aquele que será presenteado. Não é fácil.
É preciso sublimar a tendência egoística que tradicionalmente os seres humanos possuem, de medir o mundo a partir da régua de suas próprias verdades, e enxergar a vida a partir dos olhos do outro. O que você gosta, aprecia, valoriza, nem sempre casa com os gostos da pessoa a ser presenteada, e presentear não significa impor preferências, mas, sim, valorizar justamente a diferença que torna aquele ser especial, único. Saber fazer isso é uma preciosidade. Nem todos sabem.
Eu, por exemplo, não sei. Sou um péssimo presenteador. Adoro a música dos Beatles, por exemplo, e sou capaz de presentear um Cd da banda britânica a um adolescente nascido neste século 21 (que já acumula 15 anos de vigência), correndo o risco de receber em troca um olhar espantado que, traduzido, significaria algo como “mas de onde é que esse tio dinossauro cavou essa coisa?”.  Diferentemente de minha esposa, que desempenha com perfeição a arte de presentear, sabendo doar o melhor de sua essência na materialização de mimos e lembranças personalizados, ao gosto do presenteado, causando sempre sensação, gerando sorrisos, alegria, aconchego. Ponto para ela e sorte minha.

Penso nisso nesse feriado de Nossa Senhora de Caravaggio, data religiosa que motiva multidões a se dirigirem em romaria até o santuário dedicado à santa, em Farroupilha, a fim de agradecerem as graças alcançadas. Mais importante do que pedir um presente específico, é saber agradecer a um bem recebido (melhor ainda quando sequer foi solicitado). Feliz de quem sabe reconhecer e valorizar um ato de doação, seja ele divino, humano, alheio, pessoal ou inesperadamente impessoal. Se saber presentear é uma arte, saber receber e agradecer se configura em ato tão essencialmente humano quanto o primeiro. Sorte de quem sabe exercitá-lo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de maio de 2015)

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Um brinde dantesco

Peralvise Serego Alighieri é o nome de um conde italiano abastado, proprietário de uma grande vinícola instalada na região da Valpolicella, próximo à cidade de Verona, no noroeste da Itália, no Vêneto. Sua empresa chama-se Possessioni Serego Alighieri e, a julgar pelas fotografias e pelos dados disponíveis no seu site de internet, trata-se de vinícola nobre, refinada, produtora de vinhos de alta qualidade.
Valpolicella Classico Superiore MontePiazzo, Vaio Armaron, Casal dei Ronchi, Possessioni Rosso e Possessioni Bianco são alguns dos principais rótulos de varietais produzidos pela empresa. A Possessioni do senhor conde também produz óleo de oliva extra-virgem, vinagre balsâmico, grappa, arroz especial para risoto, um mel de flor de acácia que deve ser uma delícia só de olhar a foto do potinho e ainda pasta de castanha e geleia de cereja. Tudomuito requintado, delicado, belo. Nham!
E daí o leitor e a leitora devem estar se perguntando: o que foi que deu no cronista, de botar-se a fazer propaganda de uma vinícola fina existente lá na longínqua Itália assim, sem mais, nem menos? Eis que então eu me explico, antes que se estabeleçam os mal-entendidos e surjam as desconfianças de que agora sou sócio de vinícola estrangeira ou coisas do gênero. O que se dá é que o referido conde, proprietário da referida indústria alimentícia, é o único descendente direto vivo do poeta italiano Dante Alighieri (1265 – 1321), como o sobrenome já indica. A área em que a vinícola está estabelecida foi adquirida em 1353 por Pietro Alighieri, filho de Dante, que acompanhou o pai em seu exílio em Verona. A fabricação de vinho naquelas terras se dá desde que foi adquirida pelo filho do poeta-mor da língua italiana, que tem busto instalado na praça batizada com seu nome no centro da cidade de Caxias do Sul, a Pérola das Colônias, situada na Serra Gaúcha, região brasileira também famosa pela produção de vinhos finos.

Ahá, eis aí a ligação: Dante e os vinhos! Quando a gente quer, a gente acha! Um brinde, então, ao mais saboroso escritor que a língua italiana já produziu, neste 25 de maio, data de seu nascimento, ocorrido exatamente 750 anos atrás!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de maio de 2015)

sábado, 23 de maio de 2015

Um país de adolescentes

Tem um amigo meu, chamado Argentino, que gosta de comparar os diversos países do planeta a perfis específicos dos seres humanos. Não há nada de científico nisso, ele apenas o faz nas mesas de bar quando está discorrendo sobre algum assunto relativo a política internacional ou às questões que assolam o nosso próprio país, e o faz a título de “figura ilustrativa de discurso”, como ele próprio classifica seu processo classificatório.
Assim é que Argentino compara a Inglaterra, por exemplo, à figura estereotipada de um senhor de meia-idade, sisudo, um típico lorde inglês. A França, para ele, equivale-se ao perfil de uma elegante dama da alta sociedade, perfumada, charmosa e repleta de mistérios. Portugal é um poeta lírico solitário e angustiado e a mim me parece que ele faz a evocação influenciado pela figura de certo poeta famoso, mas vá lá, que seja. E quanto mais a noite se alonga, mais Argentino tece correlações ilógicas entre países e perfis imaginários, dando asas a seus devaneios pseudopsicogeopolíticos.
De minha parte, apenas escuto-o embarcar nessas suas digressões, sem contrapor, pois que conheço meu amigo e sei que o melhor a fazer, nessas ocasiões, é tão-somente ouvir e calar, concordar com tudo, aquiescer e deixar por isso mesmo. Especialmente porque sei onde ele invariavelmente deseja chegar: no perfil do Brasil, naturalmente. O Brasil, para meu amigo, tem o perfil assemelhado ao de um adolescente inconsequente e cegado pela sua própria prepotência juvenil. Embasa sua tese a partir de vários argumentos, elencando quase sempre a questão da preferência dos brasileiros por três tipos de notícias: sobre futebol, sobre factoides envolvendo subcelebridades e sobre violência. “Preocupações típicas de adolescentes”, afirma, peremptório.

Não sei se é devido à repetição desses discutíveis argumentos a que sou frequentemente submetido, mas não deixo de dedicar alguma ponta de credibilidade à tese dele, especialmente no que se refere à questão brasileira. Será que o que nos estaria faltando, coletivamente, seria uma dose cavalar de amadurecimento? Será que o Brasil precisa é sair da adolescência? Vai que...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de maio de 2015)

sexta-feira, 22 de maio de 2015

O mais triste dos contos

Dia desses terminei de ler uma coletânea de contos do escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904), um dos autores universais que melhor soube retratar a essência da alma humana a partir de um estilo direto de escrita, desprovido de enfeites. Curto e certeiro, poder-se-ia dizer, e digo-o, então. Deparei-me ali, naquelas páginas, em meio às três dezenas de breves histórias selecionadas, com aquele que se configurou aos meus olhos como o mais triste conto que eu já li em minha vida. Não porque a história seja triste em si (e ela o é, de fato), mas devido à sensação de profunda tristeza que causou em mim.
Trata-se de uma historinha curtíssima, de apenas três páginas, intitulada “Pamonha”, na qual certo senhor abastado decide chamar ao seu escritório a governanta da casa, a fim de acertar com ela as contas após dois meses de trabalho. Tímida e assustada, a mocinha entra nos domínios do patrão e põe-se a escutar o homem elencar uma lista de motivos inverossímeis pelos quais vai descontando aviltantemente os valores que lhe deveria pagar. Para começo de conversa, ele parte de uma soma inferior ao que havia sido anteriormente combinado para ser paga por mês, e vai inventando descontos, frente aos quais ela quase nada retruca, encolhendo-se na cadeira, sumindo diante da tremenda injustiça que as páginas escancaram.
“No dia dez de janeiro, a senhora levou emprestados de mim dez rublos...”, segue o facínora, subtraindo e subtraindo. “Eu não levei”, murmura a governanta. “Mas está anotado aqui!”, retruca o patrão. “Está bem, seja...”, conforma-se ela mais uma vez, e a angústia da explorada encontra eco na raiva que vai possuindo o leitor, tão impotente do lado de cá das páginas quanto a indefesa personagem de papel. Ao final, o pagamento que deveria ser de 80 rublos resume-se a míseros 11. E ela os aceita.

É quando então o patrão indigna-se contra a passividade da empregada frente à exploração a que estava por ele sendo submetida, e revela ter aquilo tudo não passado de um truque: na verdade, ele paga-lhe direitinho os 80 rublos e manda-a embora, com o conselho de que “não seja mais tão pamonha”. Afinal, conclui o personagem, “é fácil ser forte neste mundo!”. Fácil explorar e fácil deixar-se explorar. Triste e verdadeiro mundo, tão bem traduzido por Tchekhov.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de maio de 2015)

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Fome de ontem e de hoje

Os principais fatores que motivaram levas e levas de famílias europeias, especialmente alemãs e italianas, a abandonarem seus lares na segunda metade do século 19, cruzarem o oceano Atlântico e virem começar nova vida em terras brasileiras foram a fome e a crise econômica que assolavam seus países de origem. A falta de perspectivas de trabalho e a descrença na possibilidade de haver uma melhora na situação das classes menos favorecidas na Alemanha e na Itália foram os ventos que impulsionaram agricultores, artesãos e vários outros tipos de profissionais a se transformarem em imigrantes e protagonistas de um capítulo importante na história do Rio Grande do Sul.
Entre os colonizadores italianos que aqui chegaram 140 anos atrás, foi especialmente a paúra da fame que motivou na Mérica a busca pela cocagna. A propaganda oficial do governo brasileiro não dizia isso, mas também não desmentia as lendas e boatos que circulavam no Velho Mundo, dando conta de que na Mérica a fartura (cocagna) estava ao alcance de todos, pois que se tratava de uma terra paradisíaca, em que até o salame e o queijo frutificavam em árvores, bastava erguer a mão e colhê-los. Adeus, fame!
Claro que essa visão fabulosa não convencia a maioria dos imigrantes, que sabiam muito bem que o que lhes esperava aqui era muito suor, muito lavoro, muito esforço para que conseguissem realizar o sonho de transformar suas próprias vidas em algo melhor. Tão conscientes estavam do que a pretensa terra da cocagna lhes exigiria, que conseguiram, sim, fazer dessa história uma saga de sucesso, criando na região da Serra do estado mais austral do Brasil um polo de desenvolvimento referencial em toda a Mérica. A famigerada fame que atormentava o sono dos pioneiros foi exorcizada com o suor do trabalho e hoje em dia pode-se até falar em fartura exagerada de comida nas mesas da região, enquanto que na Europa moderna, agora distante das antigas crises, a cultura vigente é justamente a de evitar o desperdício.

No momento em que se comemora, com justeza, os 140 anos da imigração, talvez Caxias e região devam aproveitar para lançar um olhar mais atento à situação daquela parcela de sua população, pequena mas significativa, que ainda vive à margem da conquista da cocagna e em cujo cotidiano a fame segue encontrando morada. O desafio de hoje é estender os benefícios do sucesso da colonização a todos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de maio de 2015) 

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Scarlett Johansson e o cérebro

“Lucy” é o título de um filme de ficção-científica lançado no ano passado, dirigido pelo cineasta francês Luc Besson, que chamou a atenção da mídia especialmente por ser estrelado pela belíssima Scarlett Johansson. Assisti-o poucos dias atrás para tentar matar o tempo e camuflar o desconforto físico de estar embretado em um assento de avião por mais de dez horas de voo. Julguei que a momentânea companhia virtual de Scarlett funcionaria como um lenitivo eficiente para a situação e me decidi por essa película no generoso menu de opções cinematográficas oferecido pela companhia aérea.
Optei pelo título por dois motivos: a Scarlett Johansson em si e o mote da trama. E acertei em cheio, pois consegui boa diversão acompanhada por motivos para reflexão, que é o que se espera obter ao dedicarmos minutos preciosos de nosso tempo a absorver uma obra cinematográfica. Claro que a presença da linda e bela Scarlett Johansson justificaria por si só o ato de assistir ao filme sem a necessidade do apoio de qualquer outra razão. Mas vamos aos fatos.
Não vou fazer aqui uma sinopse da trama, primeiro porque detesto que me narrem filmes, então, também não torturo os outros com isso. Segundo, porque o que interessa aqui nessa croniqueta é a essência da história, que vai bem além do fato de o filme ser estrelado pela linda, bela e magnífica Scarlett Johansson. O que está em questão em “Lucy” é o fato cientificamente conhecido de que os seres humanos utilizam apenas cerca de 10% da capacidade que seus cérebros possuem. O que aconteceria se de repente um indivíduo conseguisse utilizar a totalidade - os 100% - de sua capacidade cerebral? Bom, é isso o que faz Lucy, a personagem da Scarlett, no filme, e quem quiser saber o que acontece, que vá assistir (está nas locadoras, não é preciso sair a comprar passagem aérea, não; use o cérebro, né, ô pá!).

O que eu fiquei refletindo depois do filme (e do adeus a Scarlett) foi justamente isso: como seria a humanidade se ela conseguisse usar um pouquinho mais de suas capacidades mentais? Que fossem uns cinco por cento a mais do que os 10% atuais! Pararíamos nas faixas de segurança? Roubaríamos menos? Seriamos mais cordatos? Ou usaríamos as novas habilidades para ludibriarmos melhor os outros? A melhora da essência humana depende do uso do cérebro? Hein, Scarlett? Diga alguma coisa!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de maio de 2015)

terça-feira, 19 de maio de 2015

Sorte aos 13

Olha só que boa notícia divulgada pela imprensa esta semana: 13 obras literárias foram inscritas este ano para concorrer ao Prêmio Vivita Cartier, categoria integrante do Concurso Anual Literário da Biblioteca Pública Municipal Dr. Demetrio Niederauer, de Caxias do Sul, que este ano chega à sua 49ª edição. O Prêmio Vivita Cartier foi criado há três anos para laurear obra literária de autor caxiense publicada no ano anterior, estimulando a produção literária na cidade.
A grana a ser entregue ao autor premiado é boa: 240 VRM (Valor de Referência do Município), índice que, em 2015, vai representar uma quantia bruta na ordem de R$ 6.374,40. Descontados os impostos, o premiado embolsará mais de R$ 4,5 mil. A notícia é positiva por toda essa plêiade de aspectos: número significativo de obras concorrentes, autores de carreira consolidada participando e prêmio em dinheiro atraente. É um privilégio escrever em Caxias do Sul.
Afinal de contas, raciocinem comigo. O Brasil possui 5.561municípios em todo o seu território (não fui eu quem contou, é o IBGE quem me jura esse número). Quantos desses municípios, pergunto-me, têm capacidade para ofertar um prêmio de mais de R$ 6 mil para agraciar os escritores que teimam em nascer e se criar em seus domínios? Não sei a resposta exata, mas ponho a mão no fogo ao afirmar que são raros, raríssimos. Caxias do Sul, entre eles. Um privilégio e um gol a favor da cultura na cidade do trabalho.

Fico apenas com dó da comissão julgadora, que vai ter trabalho frente à qualidade das obras concorrentes. Digo isso porque conheço a maioria dos livros e dos autores inscritos. Eis a lista: “Leituras da Madrugada”, de Dinarte Albuquerque Filho; “O Passo do Socorro”, de Paulo Ribeiro; “A Trilha Silenciosa”, de André William Segalla; “Diário de Um Homem Metropolitano”, de Álvaro Pertille; “O Mistério do Oito Deitado”, de Daniela Echevenguá Teixeira; “A Nova Trova Literária nas Páginas do Sul”, de Luiz Damo; “Delirium Tremens” e “O Homem Só”, ambas de Leandro Angonese; “O Menino da Terra do Sol”, de Flávio Luis Ferrarini; “Anko”, de Márcio P. Mussatto; “Mirabilia”, de Alessandra Rech; “Cartas a Amélia”, de Pedro Costi, e “Isabella Em Contos: Cem Anos Historiados”, de Luiz Carlos Ponzi. O vencedor será conhecido em junho. Boa sorte a todos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de maio de 2015)

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Tanto a tão poucos

“No futuro, em qualquer lugar do mundo em que o pássaro da liberdade silve nos corações humanos, as gerações olharão para trás, verão o que fizemos e dirão: ‘não se desespere, jamais ceda à violência e à tirania, apenas resista e, se necessário, morra invicto’”. Essas foram algumas das palavras que o primeiro-ministro Winston Churchill (1874-1965) dirigiu à população britânica em discurso que proferiu na sacada do prédio do Ministério da Saúde em Londres, às três da tarde do dia 8 de maio de 1945, ao anunciar para toda a nação e ao mundo que a Alemanha nazista havia se rendido incondicionalmente às tropas Aliadas, pondo fim aos combates da Segunda Guerra Mundial em solo europeu.
A data entrou para a história moderna como V-E Day, ou seja, o “Dia da Vitória na Europa”, onde o conflito tivera início seis anos antes quando, em 1º de setembro de 1939, Adolf Hitler assombrava o mundo ao invadir a Polônia com sua máquina de guerra. França e Inglaterra logo declararam guerra à Alemanha, mas a França, já em junho de 1940, rendia-se à então insuperável Wermacht alemã, deixando durante um longo ano a Inglaterra a combater solitariamente as pretensões dominantes do nazismo. Para fazer frente ao poderio alemão foi necessário o envolvimento de diversas nações ao redor do planeta, o que exigiu o esforço conjunto e pessoal de homens e mulheres anônimos que deram suas vidas, seu sangue e seu suor para combater a terrível ameaça.
Como a História mostra, o custo para a vitória dos conceitos modernos de liberdade, cidadania, tolerância e convivência foi dos mais altos que a humanidade já pagou. Novamente parafraseando Churchill, “nunca tantos deveram tanto a tão poucos”. Mas não foram poucos, e, sim, milhões de pessoas que morreram como perseguidos de guerra, refugiados, bombardeados e enquanto soldados nos campos de batalha.

Daqui a uma semana, sexta-feira que vem, dia 8 de maio de 2015, os 70 anos do Dia da Vitória serão celebrados nos principais países vencedores do conflito, entre eles, Inglaterra, Rússia e França. Bom momento, aliás, para visitar o Museu dos Ex-Combatentes da FEB na II Guerra Mundial, situado aqui em Caxias na Rua Visconde de Pelotas, 249, aberto gratuitamente de terças a sábados das 9h às 17h. Afinal, há coisas que o mundo não pode esquecer.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de maio de 2015)