segunda-feira, 24 de junho de 2019

Abelhudo, nunca mais!


Cientistas afirmaram recentemente que os seres vivos mais importantes do planeta são as abelhas. Estou chocado! Achava que era eu! E mais: os pesquisadores envolvidos na questão são internacionais (o que lhes confere credibilidade a nossos olhos nacionais) e chegaram à desconcertante conclusão após exaustivos estudos (o fato de terem sido exaustivos amplifica ainda mais o espectro da credibilidade envolvida). Ou seja, fica claro a todos aqueles que não são abelhas que não se trata aqui de “achismo” ou de alguma leviana e precipitada suposição. Nada disso. A coisa é séria. É científica. É real. E terei de me conformar: aos olhos da Natureza e do planeta todo, eu, este abnegado cronista de segunda, valho menos do que uma abelha!
É isso: sou mais irrelevante do que o insetinho amarelo para o equilíbrio do ambiente natural, para a manutenção da afinação da orquestra da vida. Que coisa! Em uma situação hipotética, a verdade é que, se a Natureza for obrigada a decidir entre eu e as abelhas, ela não hesitará em bater o martelo em favor dos bichinhos. Bom, mas se for pensar a fundo, meu espanto e minha decepção para comigo mesmo (em perspectiva das abelhas) não se justificam, exceto quando sob a luz do exercício contumaz da soberba, da vaidade e do narcisismo. Afinal, de onde tirei que a escala de valores haveria de ser diferente? Onde fui buscar tamanha convicção? Em que indícios embasei a certeza de minha autoproclamada relevância superior? Ah, madama, no pó... Na poeira das vaidades, só pode ser.
Mas, analisando bem, fica claro que eu não teria mesmo capacidade alguma de seduzir e encantar nenhum exaustivo cientista internacional envolvido na pesquisa, uma vez que, diferentemente das abelhas, eu não voo, não tenho a habilidade de produzir mel, não dou ferroadas (fora as simbólicas), não habito colmeias, não polinizo ninguém e não obedeço a uma rainha (aqui, poderia arriscar ceder à tentação de tecer uma metáfora evocando a dedicação direcionada à senhora minha esposa, mas incorreria na possibilidade de soar forçado, o que comprometeria ainda mais minha já abalada moral e o ferrão sairia pela culatra). Vejo-me, pois, desprovido dos atributos que conduziram as abelhas naturalmente ao patamar de seres mais relevantes na escala da vida, melando por completo as pretensões de importância que até então eu acalentava sobre mim mesmo, restando ao meu ego recolher-se à sua operária insignificância. E não ficar zangão com isso. Cada macaco no seu galho, e aceitar o seu lugar no mundo é um aprendizado vital. Por sinal, acabou o mel...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 24 de junho de 2019)

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Entre bancas e barbearias


Argentino, um grande amigo meu, nascido em Posadas e residente no Brasil há décadas, é fissurado em barbearias. Melenudo e barbudo como é, tornou-se, por hábito e estilo, freguês tradicional de barbearias daqui de Caxias do Sul, onde mora desde que havia macaquinhos no Parque dos Macaquinhos. Mas, conforme apregoa nas rodadas de cerveja em nossos tradicionais happy hours do findar das sextas-feiras, gosta é das barbearias mesmo, típicas e tradicionais, aquelas atendidas por barbeiro velhinho e careca, trajado em jaleco azul-clarinho, anel de pedra vermelha no dedo mindinho, a aparar arestas capilares com tesoura pontuda e pente bege seboso, manuseando com destreza a navalha em nossos pescoços arrepiados frente ao contato com o gelo do aço e ao temor de que sua mão “non trema jamás!”. “A mí me gustan las peluquerias tradicionales y no los meleneros de barber shop”, reitera, mergulhado em uma convicção que se consolida a cada nova rodada.
Eu escuto e aceito. Afinal, cada qual com suas idiossincrasias, sejam elas brasileiras ou correntinas. Não discuto as barbearias do Argentino e aceito suas preferências, assim como ele o faz em relação ao meu declarado amor pelas bancas de revistas. Sou fissurado em bancas de revistas desde que me conheço por gente, e me conheço por gente desde antes da época em que havia macaquinhos no Parque dos Macaquinhos. Em Ijuí, comprava meus exemplares de “Pato Donald”, “Heróis da TV”, “Recruta Zero” e “Recreio” na Livraria Progresso (que, apesar do nome, era banca de revistas) e no Quiosque da Praça. Quando ia a São Borja em visita aos avós maternos, torrava a mesada em aquisições impressas feitas na banca “A Preferida”. Nas idas a Porto Alegre, atacava as edições importadas da Marvel na banca da Praça da Alfândega. Em Santa Maria, batia ponto dia sim, dia também, na banquinha instalada na boca do Calçadão.
Em Caxias do Sul, fui adotando bancas uma após a outra, desde que aqui resido (quando apareci, já não havia macaquinhos no Parque dos Macaquinhos), e chego a ser tratado como “da casa” em uma delas em especial, assim como ocorre com o Argentino em sua barbearia predileta. Minhas bancas de revistas e as barbearias dele são nossos vislumbres pessoais do paraíso. No meu caso, um paraíso que anda ultimamente assolado por ações de patrolamento e de incineração de bancas de revistas na cidade em que moro. Assustador. De deixar melenas em pé. “Signal de los tiempos”, vaticina o Argentino, saboreando sua IPA, melenas recém tosquiadas. Mas meu cabelo se arrepia. Hora de aparar as arestas...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 17 de junho de 2019)

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Leve seu cavalo até a água


George Harrison, conhecido como “o Beatle quieto”, entrou em estúdio para gravar uma nova canção de sua autoria, pela última vez, no dia 1º de outubro de 2001, oito semanas apenas antes de sua morte por câncer, ocorrida em 29 de novembro, aos 58 anos de idade. Mesmo debilitado devido à luta que travava já há anos contra a doença, ainda teve fôlego para produzir, ao longo de 2001, aquele que seria seu derradeiro álbum, “Brainwashed”, lançado postumamente no ano seguinte. Criativo até o final, não se furtou em também gravar os vocais de sua última composição (não teve forças para executar os riffs de guitarra que pontuaram sua genialidade ao longo da carreira solo e nos Beatles) naquele seu último outubro de vida, mostrando um vigor incompatível com quem se via rondado pela presença da morte. Afinal, cantar é uma atividade que louva o sopro vital, e George cantou até o fim.
Mas a questão aqui, para efeitos desta croniqueta de segunda, não é a vida e a morte do Beatle, e, sim, o teor do tema contido naquela sua obra final, explicitado no refrão da canção que batizou como “Horse to the Water”. O refrão diz assim, em livre tradução por conta do precário inglês do precário cronista: “Você pode levar um cavalo até a água, mas não pode fazê-lo beber” (“You can take a horse to the water, but you can´t make him drink”). É uma boa metáfora, e dá no que pensar. O mantra não foi criado por ele, trata-se de adágio popular amplamente conhecido, mas reveste-se de significado infinito quando visto sob a perspectiva e inserido no contexto: afinal, rondava os pensamentos de alguém que sabia estar vivendo seus últimos dias na Terra. Escutando a canção e atentando ao timbre da voz de Harrison, é impossível evitar emocionar-se com a convicção com que ele interpreta a frase, intensa na missão de nos fazer refletir sobre até que ponto podemos auxiliar os outros em suas jornadas pessoais, e a partir de que ponto nada mais podemos fazer, cabendo a eles próprios a responsabilidade por seguir seus caminhos, definir suas prioridades, tomar suas decisões.
Não há nada que possamos fazer se o cavalo der uma de mula e recusar-se teimosamente a beber a água que, sabemos, lhe será vital e reconstituinte. Não podemos beber por ele. Podemos fazer toda a propaganda das maravilhas curativas da água e tirarmos do caminho as pedras que lhe impedem o acesso à fonte. Porém, em chegando lá, cabe ao cavalo bebê-la. Afinal de contas, cada qual tem sua própria cavalgada por essas pradarias mundanas, né, madama? E cabe a cada um administrar a sua sede. Saúde!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 10 de junho de 2019)

segunda-feira, 3 de junho de 2019

O que Félix vai fazer?


“Ressurreição” é o título do primeiro romance escrito e publicado por Machado de Assis (1839 – 1908), em 1872, quando o ainda jovem autor de contos e crônicas em jornais aspirava ocupar um lugar de destaque no cenário literário brasileiro, o que acabou acontecendo com méritos mais adiante, não se sabe se superando ou se cumprindo as suas expectativas. Machado, como a madama está careca de saber, é nosso Shakespeare brasileiro e ombreia-se ao bardo inglês nos quesitos qualidade, criatividade, relevância da obra, originalidade e, por fim, mas mais importante: genialidade. Só não alcançou a universalidade obtida por Shakespeare pelo fato de ter nascido brasileiro e, por consequência, escrever em português, mas isso são outros quinhentos, como já diziam nossos avós, nos tempos em que quinhentos ainda valiam metáfora.
“Ressurreição” antecede os arroubos inigualáveis de genialidade literária que se apossariam de Machado nos anos seguintes e o levariam a produzir joias como “Dom Casmurro”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba”. Ao lê-la, percebe-se nela claramente suas condições de obra de estreia e o tamanho da quebra estrutural narrativa que o autor protagonizaria com o amadurecimento de seu gênio, mas, ao mesmo tempo, é também possível detectar nas suas linhas e entrelinhas a presença já latente dos aspectos que distinguiriam e viriam a compor as características inimitáveis do escritor no futuro. A trama é simples: Félix, jovem médico prematuramente auto-aposentado em virtude de uma herança, vive uma vida tranquila pautada pelo mundanismo despreocupado, focado no cultivo de amizades, de presença em recepções sociais e de romances deliberadamente efêmeros e superficiais. Até que, súbito (e se não fosse súbito não haveria literatura), surge Lívia, bela e jovem viúva, irmã de um de seus amigos.
Lívia apaixona-se por Félix e passa a demonstrar o sentimento que se assenta em seu coração a partir de pequenas pistas sutis que são captadas pelas antenas ligadas de Félix. O dândi, no entanto, vê-se enredado em um dilema: não pode negar o florescer em si de uma paixão indomável pela moça. No entanto, hesita em se entregar inteiro ao consumo daquele amor, talvez por medo de balançar as estruturas do modo de vida que até então cultivava. Vale a pena fazê-lo ou não? A história acabará bem ou mal? Não sei, madama, ainda não concluí a leitura. Só sei que, assim como Félix e Lívia também o sabem, a vida é um livro aberto. Para sabermos o desfecho, precisamos vivenciá-la (a vida e o livro) até o final. Boas leituras.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 3 de junho de 2019)