quinta-feira, 31 de julho de 2014

De olho no céu

As notícias prometiam chuva de meteoros no meio da madrugada. Espetáculo raro da natureza, imperdível para quem aprecia fenômenos astronômicos e habita por vocação e por instinto o mundo da lua na maior parte da existência. Era para mim, portanto, o programa, e o ingresso saía quase de graça para quem anda vivenciando uma fase de surpreendentes insônias.
Não custaria nada saltar da cama no meio da madrugada e ir para o terraço presenciar o rastro luminoso dos meteoritos a cruzarem o firmamento, cerzindo riscos de fogo no céu, imagens que transportariam de imediato minhas lembranças à infância, nas épocas em que existia tempo para sentar-se em família nas varandas à noite, a escutar histórias remotas narradas pelos avós, que sabiam identificar com apontadas certeiras de dedos as diferentes constelações (a Ursa Maior ali, a Cruzeiro do Sul acolá, o Cinturão de Órion, a estrela Antares) e a cronometrar as passagens dos satélites artificiais (meu avô e eu éramos caçadores de sputniks na década de 1970). Sim, sem dúvida, eu faria isso.
E fiz, de fato. Nem foi preciso engatilhar o despertador para me tirar do sono no meio da madrugada, porque a madrugada chegou e aportei em seu meio sem pregar o olho um segundo sequer. Prevenido, vestia pijamas (porque sim, sou um homem de pijamas, e quem rir leva cascudo), calçava pantufas (porque sim, sou um senhor de pantufas), embrulhava-me no chambre (uhum, chambres; especialmente, um cidadão de chambres, porque, como veem, tenho síndrome de rocambole) e ejetei-me para o terraço, determinado a enfrentar os gélidos ventos uivantes para, sozinho no mundo, admirar o espetáculo da chuva de meteoros que enfeitaria o céu naquele horário, ali no leste do céu infinito.
Mas que chuva de meteoros que nada! Não vi umzinho sequer dar o ar de sua graça ao longo dos elogiáveis quinze minutos que aguentei firme ali em pé, observando postes de luz a iluminar ruelas desertas, quartos em casinhas distantes alumiados a noite inteira provavelmente para dar segurança ao bebê, flashes luminosamente cambiantes das telas de tevê a fremir penumbras nas salas dos insones como eu no prédio ao lado. Só isso, e nada mais.

Mas de repente, ali no meio do imutável céu estrelado, eis que surge uma luzinha semovente que capta a atenção de meu olhar ansiado. Ela pisca e vai seguindo rumo definido, céu acima. Nada de meteoro. Nem mesmo um disco voadorzinho para premiar meus esforços. Segue reto, em traçado mecanicamente humano, revelando-se avião mesmo, a me fazer companhia inimaginável àquelas horas altas de sonambulismos. Que tempos esses, em que nem mais o céu nos surpreende.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de julho de 2014)

quarta-feira, 30 de julho de 2014

O guacamole impossível

Assim como nossas qualidades, também nossas incompetências vão se revelando a conta-gotas ao longo de nossas existências. Para que surjam e se apresentem, é preciso vivenciar experiências diferentes e surpreendentes de vez em quando, que vão fazer despertar em nós as habilidades ou as inabilidades.
Sim, porque, por exemplo, não tem como saber se você possui competência para pilotar um caça ultramoderno da Força Aérea Brasileira sem antes assentar-se dentro da cabine de um desses aparelhos, colocar o cinto de segurança, arrumar o espelho retrovisor e ligar a chave da ignição. O que é, meu senhor? Como? Caças não possuem chave de ignição e espelho retrovisor coisíssima nenhuma? Pois então, viu? Melhor eu passar bem longe de um caça ultramoderno da Força Aérea Brasileira (depois vou olhar no google... eu jurava que tinham, sim, chaves de ignição, duvido que façam essas coisas pegarem voo no tranco; e sem espelho, como é que vão saber que vem avião inimigo por trás, mas enfim...).
Mas quero falar de abacates. Eu descobri, por sucessivos malogros próprios, que sou portador de incompetência crônica no quesito “detectar se o abacate está no ponto certo para ser consumido”, ou seja, se está devidamente maduro para ser devorado in natura, ou para servir de base crucial para a produção de um delicioso guacamole ou ainda para mergulhar no liquidificador e transformar-se em um irresistível mousse com leite condensado. Tenho competência extremada para preparar guacamoles e mousses de abacate, porém, minha destreza para identificar um abacate maduro é igual a zero.
Eu primeiro faço contato visual com a fruta adormecida ali no cestinho, em casa. Daí, me aproximo devagar, sem assustá-la, e apalpo delicadamente sua casca com as pontas de alguns dedos, imaginando que, com a sensação causada pelo toque, serei capaz de identificar o grau de maturidade da fruta e, via de regra, erro. Se acho que está maduro, decepo o abacate pelo meio e pá: lá está ele, duríssimo e verde, imprestável para o consumo. Se acho que agora está no ponto, epa: dormi na palha e o abacate está podre, rumando direto para o lixo orgânico. No que se refere a abacates, tateio no escuro.
Não tenho essa competência. Desisto. Melhor é me resignar a comer guacamole e mousse de abacate na casa dos outros. Convites para este e-mail...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de julho de 2014)

terça-feira, 29 de julho de 2014

Ação temerária

Pisar em terreno desconhecido sempre é uma atitude temerária. Por mais destemida que a criatura seja, sempre haverá o risco de o sujeito dar-se mal devido à falta das informações que lhe seriam cruciais para o bom termo da empreitada. Isso é um fato.
O terreno desconhecido em que temerariamente adentrei dia desses foi a penteadeira de minha esposa, aquele movelzinho delicado e simpático que habita nosso quarto e que representa um domínio até então incólume às manifestações de minha presença. Deu-se que, em um final de tarde em que minha esposa estava no trabalho e eu em meu home office, precisei aprumar-me às pressas para um compromisso social no centro da cidade e tive de fazê-lo sozinho, sem as importantes intervenções dela no lapidar de meu visual, o que costuma garantir em mim um cabelo penteado, os pelos das orelhas tosquiados, os botões da camisa abotoados cada um em sua casa correspondente, as cores das roupas combinando sem causar traumas coletivos, coisas desse tipo.
Mas eu estava sozinho e tinha de me virar por conta própria. Tudo corria bem até o momento em que, já nos finalmentes, olhei-me com atenção no espelho do banheiro e percebi que a pele de meu rosto, devido à umidade ambiente, havia “explodido” em dermatites já nossas conhecidas. O tubinho com o creme dermatológico havia acabado e, nesses casos, o recurso tradicionalmente empregado é recorrer a uma maquiagem temporária à base de pó-de-arroz. Quem faz as aplicações em mim é, obviamente, minha esmerada e detalhista esposa que, como já vimos, estava em falta naquele dia, àquela hora. Que fazer?
Ora, destemido (ou inconsequente) como sou, resolvi invadir os domínios da penteadeira e efetivar por conta própria a ação maquiadora de imperfeições que, a bem da verdade, não haveria de interpor maiores dificuldades. Sonho meu. Quem disse que um homem do sexo masculino como eu tem capacidade para reconhecer, entre as dezenas de potinhos e tubinhos dos mais variados tipos, exatamente aquele de que estava necessitando? Abre esse, não é. Aquele, também não. Isso me parece esmalte. Aquilo, um miniespanador. Ali, uma caixinha repleta de cores como se fosse uma palheta de aquarelista. E o relógio correndo, insensível.
No desespero, abri um estojinho, taquei na cara um pouco do conteúdo do que quer que fosse e fui-me ao compromisso. Dessa vez, não passei despercebido em meio à multidão e senti que os olhares não desgrudavam de minha pessoa ao longo da noite. Atribuí tudo à crença de que havia aprimorado minha arte de falar em público e também meu magnetismo pessoal, porém, à noite, minha esposa quis saber o que eu andara fazendo com o blush que enfiara na cara, vermelha como um pimentão de feira. Mas é que sou destemido.

                                                                                          
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de julho de 2014) 

segunda-feira, 28 de julho de 2014

De gelar a espinha

A julgar pela qualidade dos debates, pela pertinência dos temas abordados e pelo público que lotou as dependências que sediaram os encontros (a Livraria e Café Do Arco da Velha e o Zarabatana Bar, do Centro de Cultura Henrique Ordovás Filho), pode-se afirmar que foi brindada com sucesso a segunda edição da “Semana do Livro Nacional”, programação de discussões literárias realizada entre quinta e domingo passados, promovida pelos apaixonados por leitura Samuri José Prezzi, Greice Martinelli e Suzy Hekamiah. Reunindo escritores locais, editores, entidades e grupos voltados à literatura e, principalmente, apaixonados por livros, o evento consolida lugar entre as iniciativas que constroem em Caxias do Sul um cenário pulsante privilegiado no âmbito da arte da escrita.
Uma vez que a literatura, enquanto manifestação artística, traz em sua essência intrínseca a capacidade de representar o mundo e suscitar a reflexão a respeito da existência humana, não poderia ser outro o efeito nos participantes senão o de voltarem para suas casas abastecidos de temas para refletir. Entre vários pontos, estacionei em uma questão levantada por um trio de debatedores que ajudou a abrilhantar a tarde de sábado, quando os jovens escritores César Filho, Fernando Bins e Suzy Hekamiah debateram o tema “Literatura Gótica e de Terror”. Conforme compartilharam com o público, um dos maiores desafios que se impõem hoje aos autores de histórias de terror é como causar genuinamente a sensação de medo nos leitores, uma vez que vivemos em um mundo em que o horror e o espanto são causados pelo próprio cotidiano da vida real?
Boa e pertinente pergunta. Como competir com a realidade? Como conceder a vampiros, lobisomens, múmias, mortos-vivos, fantasmas e demônios o poder de voltarem a arrepiar as penugens de nossos pescoços quando os calafrios nos são provocados diuturnamente pela ação de corruptos de todos os naipes que desviam verbas públicas destinadas à saúde e à alimentação para seus próprios bolsos, ou de criminosos que destroem o futuro de gerações traficando drogas cada vez mais letais, ou de assassinos transtornados pelo crack que nos espreitam na chegada de casa dispostos a matar a troco de qualquer coisa que lhes sustente o acesso ao vício, ou do descompromisso de autoridades que deixam as estradas se transformarem em ciladas esburacadas a ceifarem as vidas das famílias e dos trabalhadores e muitos outros monstros e atos monstruosos que se acotovelam nos noticiários da vida real todos os dias?

Quem diria, mas Frankenstein e Drácula, no século XXI, se tornaram brincadeira de criança.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de julho de 2014)

domingo, 27 de julho de 2014

Os extintos

Dia desses comentei aqui a respeito da profissão de carteiro, que está em vias de extinção em função do estabelecimento definitivo da comunicação virtual nas relações humanas, em detrimento do envio físico de cartas, documentos, faturas, mensagens, cartões de felicitações, cobranças, xingamentos etc. Parei para refletir sobre isso em decorrência da leitura (pela internet, claro) de um relatório divulgado por um instituto de pesquisas norte-americano, que elencava as dez profissões que sofrem maior risco de extinção nos próximos anos, devido a motivos diversos.
A de carteiro era só uma delas, a que estava no topo da lista, mas tem outras nove. Em segundo vem a profissão de agricultor. Deve-se levar em conta que a lista se debruça sobre a realidade dos Estados Unidos, onde o processo de mecanização dos trabalhos nas lavouras e nos campos avança em ritmo acelerado, transformando em quase realidade a antiga máxima de que “é o olho do dono que engorda o boi no pasto”. Logo, caberá aos seres humanos apenas ficarem olhando mesmo para o pasto, sem terem de fazer nada. Um quadro assim ainda levará muito tempo para se tornar realidade no Brasil, mas, como gostamos de imitar os americanos em tudo, é bom ficarmos atentos...
Na sequência vêm as profissões de leitor de medidores (aferição que passará a ser feita automaticamente pelas empresas fornecedoras de água, luz, gás); repórter de jornal impresso (aí entro eu, jornalista focado justamente na mídia impressa; em alguns anos, deverei estar empalhado e preservado em algum museu histórico, exposto à visitação pública, de bloquinho e caneta à mão); agente de viagens (você vai organizar por conta própria, de casa, via internet, todo o seu pacote de viagem); lenhador (óbvio, com a extinção das florestas, quem vai cortar o quê?); comissário de bordo (voaremos desacompanhados das aeromoças no futuro); operador de furadeira (isso nas indústrias automatizadas; aqui em casa, continuo furando eu mesmo as paredes para os quadros); funcionário de gráfica (de novo a automatização) e fiscal de impostos (não, nada a celebrar: os impostos continuarão sendo cobrados e seu pagamento devidamente fiscalizado, mas por programas de computador).

Frente a esse quadro todo, procuro alguns alentos. Enquanto houver flores e jardins, não se extinguirá a profissão de florista. Enquanto houver sensibilidades entre as pessoas, não desaparecerão as atividades dos artistas. E enquanto houver cabelo e barba, não sumirão os barbeiros, para o bem de nosso visual em sociedade. E enquanto houver sol, haverá lugar para os otimistas, mesmo que isso não seja profissão. Ao menos, é profissão de fé.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de julho de 2014)

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Três a zero

Esta semana de julho que se iniciou na sexta-feira passada pegou pesado na tarefa de empobrecer o cenário cultural e intelectual brasileiro. A julgar pelo foco que “A Ceifadora” apontou em sua foice colhedora de existências, pode-se concluir que andava faltando mentes brilhantes lá do “outro lado” e que foi expedida a ordem de vir aqui buscar uma remessa farta e qualitativa do produto.
Como resultado disso, estamos tendo de assimilar de uma vez só as partidas de três importantes e insubstituíveis nomes da cultura contemporânea brasileira, um atrás do outro. Na sexta-feira da semana passada, dia 18, chegou-nos a notícia da morte repentina do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, aos 73 anos de idade, acometido em casa por uma embolia pulmonar. Membro da Academia Brasileira de Letras, Ubaldo assinou obras que integram o seleto time dos clássicos brasileiros da atualidade, como “Sargento Getúlio”, “O Sorriso do Lagarto”, “A Casa dos Budas Ditosos”, “Viva o Povo Brasileiro”, entre outras.
Mal começávamos a assimilar a dimensão dessa perda e, já no dia seguinte, 19 de julho, segue-lhe o mesmo caminho o educador, teólogo e escritor mineiro Rubem Alves, aos 80 anos de idade, por falência múltipla dos órgãos. Alves era vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura e asfaltara uma longa carreira de vida dedicada a refletir sobre temas psicanalíticos, educacionais e existenciais. Um intelectual de primeira linha, atuante e que fazia a diferença. Deixou extensa obra literária que aborda as questões filosóficas que tanto lhe absorviam e também uma vasta produção destinada às crianças, a quem dedicava especial atenção.
Agora, a quarta-feira desta semana, dia 23, é chacoalhada com a morte do escritor paraibano Ariano Suassuna, aos 87 anos, devido a um acidente vascular cerebral. Também integrava a Academia Brasileira de Letras, tendo se dedicado ao romance, à poesia, ao ensaio, à dramaturgia. Sua obra mais conhecida é a peça teatral “Auto da Compadecida”, que foi encenada diversas vezes e virou filme.

Espero que pare por aí, ao menos, momentaneamente. Fico sempre possuído por uma sensação de esvaziamento pesado quando desaparecem de nosso convívio essas figuras referenciais da cultura que fazem tanto a diferença. Claro que suas obras permanecem e seguirão fazendo a diferença sempre que revisitadas, mas o ponto final de suas existências define o fechar da porta da produção que advém de suas lavras, o que sempre é uma pena. Assim como cada um de nós, são todos obviamente insubstituíveis.  São perdas bem mais significativas do que um sete a um em Copa do Mundo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de julho de 2014)

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Mande-me uma carta

Cada um com seus gostos, já dizia Não-Sei-Quem fazendo não-sei-o-quê. Você tem os seus, eu tenho os meus, e às vezes as coisas convergem. Assim é a vida, um entrelaçamento interminável e imprevisível de pontos de convergência que aproximam uns aos outros, e de divergências, que nos afastam. Nas aulas da quarta série frente ao quadro-negro, essa premissa profundamente filosófica já podia ser antevista por nossos olhinhos esbugalhados (fazendo coro aos joelhos esfolados e os pés que balançavam no ar na carteira sem ainda tocarem o chão) quando a professora coloria com giz amarelo aquela fatia duplamente convexa que surgia do entrelaçamento de duas esferas ali desenhadas, chamada “intersecção”. Eu era fascinado por intersecções.
Mas tergiverso, percebo-me, e antes que me perca irrecuperavelmente pela senda do devaneio, tragamo-nos de volta ao que pretendia discorrer ao dar início a essas mal tecladas linhas. Falava de gostos. E com isso, tinha a intenção de compartilhar com o tolerante e compreensivo leitor mais uma de minhas preferências que, dependendo da forma como as abordo, acabam se revestindo com uma película nem sempre deliberada de esdrulixidade (palavra recém-nascida que pretende passar a sensação de “qualidade daquilo que é esdrúxulo”). Adiante.
Falava de gostos para então revelar o fato de que aprecio muito as listas. Gosto de fazer listas de todas as espécies, sobre todas as coisas e, por paralelismo e coerência, gosto também de ler listas. Sempre que surge uma lista do que quer que seja nos sites pelos quais navego, paro, clico, acesso e bisbilhoto. Não consigo evitar de fazê-lo. E nem tento, confesso. Entrego-me ao doce prazer de saborear listagens sobre tudo: as dez músicas de rock mais bacanas do planeta (discordo de várias, irrito-me com as ausências, produzo minha própria lista); os dez melhores escritores do sistema solar (discordo de vários, irrito-me com as ausências, produzo minha própria lista); as dez melhores receitas para fazer com salmão defumado (anoto tudo, porque nunca fiz nenhuma receita com salmão defumado na vida) e assim vai.
Mas a lista que li na internet esta semana me deixou triste. É uma lista elencando as dez profissões que estão em vias de extinção no mundo moderno. Começa pela de carteiro. A cada ano que passa, diminui o número desses profissionais no planeta, porque seus braços e pernas percorrendo fisicamente distâncias para nos entregar cartas estão sendo suplantados pelo uso cada vez mais corrente do correio eletrônico. Acho uma pena. Vejo romantismo e poesia na atividade dos carteiros e estamos assassinando a profissão a cada e-mail que disparamos. Leitores: salvemos os carteiros. Não me enviem e-mails divergindo ou convergindo. Enviem-me cartas!

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de julho de 2014)

terça-feira, 22 de julho de 2014

Cada pé com seu sapato

Há roteiros que são imutáveis e é preciso que nos resignemos a eles. Tomar banho, pentear-se, vestir-se e ficar pronto antes, beeeem antes do que a esposa, e ter de esperar por ela na sala antes de sair, é um desses roteiros que cabem a todo o homem casado. Sabemos disso e nos resignamos com aquela paciência marital que só nós, felizes casados homens, conhecemos em essência.
O que se passa pela cabeça de um homem engomado que espera pela esposa na sala, enquanto ela se esmera em produzir seu feminino ser para apresentá-lo ao mundo ao seu lado? Só nós sabemos. E, como somos confraria, cabe a nós resguardarmos para nós mesmos esses nossos pensamentos. Meus leitores casados sabem do que estou falando. Meus leitores solteiros podem imaginar. Já minhas leitoras que me perdoem, nada compartilharei desse tema em detalhes. Ao menos, nada de detalhes que comprometam, se é que algo há para ser comprometido (deixemos aqui a pulga da dúvida, por gosto).
O que se pode dizer é que, nesses longos minutos de espera, nos quais “só mais dez minutinhos” significam, via de regra, pelo menos o triplo disso em tempo real, muitos de nós não conseguem evitar o reflexo de cantarolar mentalmente alguns versos em inglês da famosa canção de Eric Clapton, “Wonderful Tonight”, cujas imagens evocam exatamente essa situação: o cara esperando a parceira se arrumar para sair. Em tradução livre deste que vos escreve, fico no sofá, engomado, cantando mentalmente: “É tarde da noite/ ela está pensando em que roupas vestir./ Ela põe a maquiagem/ e penteia seus longos cabelos loiros”.
E assim vamos nós ali, sentadões no sofá, o paletó já amarrotando, a gravata para o lado, as pernas esticadas sobre o pufe, e “lá-l-a-rá-lá-lá...” Os olhos passeando pelos quatro cantos da sala, observando os quadros, as lombadas dos livros, o risquinho na parede, até que, sem mais, repousam sobre os próprios pés ensapatados e... epa! Tem algo errado! Sim, senhor! Na pressa de vestir-me, calcei um sapato diferente em cada pé. Ambos pretos e sociais, sim, lustrosos, bonitos, semelhantes, porém, diferentes. Coisa que qualquer olhar observador detectaria já no primeiro “boa noite”. Uma meia de cada cor, vá lá, todos o fazem de vez em quando... Mas um sapato de cada espécie já é demais.
Ainda bem que detectei a gafe a tempo. Salto do sofá, cruzo por ela, que já vem vindo prontinha e perfumada pelo corredor, e enfurno-me de novo no quarto, providenciando a troca sapatal. Tudo isso para escutá-la reclamar, lá da sala: “Vamos, logo, amor, você está nos atrasando”! Sim, eu mereço.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de julho de 2014)

segunda-feira, 21 de julho de 2014

O rosa da rosa

Tem coisas que não entendo. A caixa-preta dos aviões, por exemplo, é cor-de-laranja. O quadro-negro, ao menos nas escolas em que estudei e também na universidade, sempre foi verde-escuro. O vinho branco, na verdade, é amarelo, convenhamos. A rosa, que deveria ser rosa e ponto, já existe em todas as cores imagináveis, e a gente cultiva rosas vermelhas, rosas amarelas, rosas alaranjadas, rosas azuis e até rosas pretas. Só a Pantera Cor-de-Rosa segue fiel à cor que a nomeia.
O burro, quando foge, esse sim, a exemplo da Pantera, continua atento à ordem cromática do universo e assume, na fuga, a cor-de-burro-quando-foge, mas não sei por quanto tempo isso vai permanecer assim. Até o camaleão anda confuso e não consegue saber direito o que fazer ao lado de uma rosa vermelha: camufla-se de rosa ou de vermelho? O tempo perdido na indecisão pode ser a sentença entre a vida e a morte, porque a águia de lá de cima, com seu olho de águia (óbvio), não perdoará a bobeira do camaleão indeciso e záz, vocês podem imaginar o desfecho da cena sem que eu tenha de ser explícito.
Preocupante é detectar que a dessintonia entre o nome da coisa e a coisa por ela denominada não atinge somente o universo das cores e começa a se espalhar como praga por todos os lados. O que fazer, por exemplo, quando um amigo afirma que vai telefonar para você assim que tiver início a novela das oito? Ora, pela lógica, você deveria esperar o telefone tilintar exatamente às 20h, pois não? Não, aí é que está. No Brasil, a novela das oito começa às nove. Pior, começa mesmo é lá por nove e vinte, nove e meia, depois do Jornal Nacional, esse sim, com início às oito, oito e pouco. Por que então novela das oito se ela é das nove? Por que essa teimosia em mantermos tudo como está, até mesmo as expressões consolidadas pelo tempo, se, justamente com o passar desse tempo, as coisas em si mudaram em suas essências?
A novela das oito não existe mais há muito tempo. O que existe é a novela das nove e pouco. Então, que seja assim denominada: novela das nove e tanto. Caixa-laranja dos aviões. Quadro verde-escuro. Flor amarela em formato de rosa mas que não é rosada. “Alô? Seu florista? Gostaria de encomendar uma dúzia de flores azuis em formato de rosa, mas que não são rosadas. Sim, traga-as depois do final da novela das nove e vinte. Escreva no quadro-verde o pedido, para não esquecer”. Pronto. Simples, direto, sincero e preciso.

Precisamos ser mais precisos. Caixa-preta não é preta. Pantera Cor-de-Rosa é rosa. Brasil não é mais o país do futebol. O que é, é; e o que não é, não é. Afinal, é preciso acreditar que pelo menos alguma coisa ainda pode ser mudada...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de julho de 2014)

domingo, 20 de julho de 2014

Cachorrada cientifica

Ah, esses cientistas maravilhosos e suas pesquisas transformadoras! Eu sou vidrado nessas notícias surpreendentes sobre descobertas de ponta realizadas em laboratórios desconhecidos decorrentes de experimentos com voluntários de todos os tipos, comprovando teses até então inimagináveis.
 Adoro descobrir que quem come mais melancia vive seis dias a mais do que quem come bergamota, coisas desse tipo. E sou altamente influenciável por tudo aquilo que leio, porque acredito no poder da palavra impressa. Uma vez que melancia é melhor do que bergamota, passo um período me fartando de melancia e discriminando as bergamotas. Isso até me deparar com outra pesquisa indicando o consumo de bergamotas (com casca, semente e felpinhos) como benéficas contra a queda de cabelo. Ah, é na hora que jogo pela janela as melancias (isso foi apenas uma figura de linguagem, ok?) e sequestro sacas e sacas de bergamotas na feirinha aqui do lado do prédio onde moro. Isso sou eu, o mais feliz cidadão influenciável pela ciência do planeta.
Agora a notícia científica que me ataranta vem de um laboratório na Escócia, afirmando que possuir um cachorro de estimação tem o poder de fazer com que a pessoa se sinta até dez anos mais jovem. Ah é? Pois agora, quero um cãozinho. Vou esperar minha esposa chegar e anunciar que amanhã mesmo haverá um cão nessa casa e, com isso, ela passará a ter um marido rejuvenescido em uma década. Não! Dois! Dois cãezinhos! Totó e Tutu! Decidido! Dois! Quero voltar a me sentir com aqueles revigorantes vinte e poucos anos! Ah, que maravilha essas descobertas da ciência moderna!
A descoberta do tal cientista escocês é fruto de pesquisas feitas sobre o comportamento de 547 pessoas (isso que dá credibilidade para a coisa toda... foram 547 analisados, e não apenas 324 ou insignificantes 436...). Havia aqueles com cãezinhos e os sem cãezinhos. Ah, mas foi tudo de bom com os cãezinhos, e foi uma tristeza com os sem cãezinhos, cheguei a ficar com pena! Além de se sentirem mais jovens, os com cãezinhos fazem mais exercícios por dia do que os outros, porque passeiam com seus animaizinhos e ainda por cima ampliam sua rede social, pois se encontram na rua com pessoas (outras com cãezinhos e também algumas sem cãezinhos, que param para admirar o seu cãozinho), passam a conhecer os vizinhos e podem adicionar mais amigos no facebook.

Está decidido. O que a esposa pode é discordar dos nomes, mas amanhã mesmo estarei passeando pelo parque com Totó e Tutu, ou seja lá quem forem. Totó, Tutu e eu, lépido e fagueiro, no alto de meus rejuvenescidos vinte-e-tantos aninhos!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de julho de 2014)

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Calorias relativas

Está comprovado: o Faustão engorda. Não, não, espere, posso ter me expressado mal ao iniciar esta crônica com frase deliberadamente ambígua. Não estou me referindo a algum suposto processo de engorda repentina a acometer o famoso apresentador de televisão que invade as tardes de domingo da população brasileira há décadas. Refiro-me é aos efeitos biológicos de assistir a programas semelhantes ao dele, que agora foram detectados em laboratórios suecos. E a questão é que engorda.
O que acontece é que os cientistas da Universidade de Uppsala, na Suécia, fizeram lá suas pesquisas com algumas centenas de voluntários e chegaram a uma instigante conclusão, agora divulgada pela mídia internacional: assistir a programas de televisão considerados chatos pode fazer a pessoa comer 50% mais porcarias do que quando ela está assistindo a programas divertidos e agradáveis. Ou seja, saindo do sueco e traduzindo para o brasileiro: afundar no sofá, em frente ao Faustão, engorda.
Sim, porque, conforme os mesmos cientistas, o que você busca quando se afofa no sofá da sala esgrimindo o controle remoto da tevê é prazer e satisfação. E se esse deleite e essa satisfação não são satisfeitos com aquilo que transita na telinha à frente de seus olhos, o seu subconsciente, esse sacana, induz você a ir buscar no consumo de porcarias (salgadinhos, chocolates, refrigerantes e afins) aquela sensação de prazer que você tanto está desejando. E aí é aquilo: pobre da balança no dia seguinte, que vai escutar poucas e boas, além de ter de aguentar em cima dela os quilos a mais que você mesmo cultivou ao longo do final de semana.
Um dos testes realizados lá em Uppsala foi assim: fizeram a turma assistir a um programa humorístico de auditório e depois a um documentário sobre arte. E anotaram nas planilhas para ver em que ocasião a turma devorava mais chipitos e porcarias. Resultado: comeram muito mais assistindo ao documentário do que ao programa de auditório. Conclusão: comem mais quando assistem a programas chatos. Só que é aí, amigos leitores, que entra em cena a questão da subjetividade, que põe por terra todo o rigor científico da conclusão da pesquisa. Quem disse que documentário sobre arte é mais chato do que programa de auditório?

Ainda bem que eu não estava lá em Uppsala entre os voluntários, porque, se estivesse, embaralharia os resultados da tal pesquisa, por não suportar o apresentador sueco colega do Faustão. E teria ficado vidrado na tela durante a exibição do documentário sobre arte, dito chato para os demais. “Tudo é relativo”, diria Albert Einstein, comendo pipoca.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de julho de 2014)

quinta-feira, 17 de julho de 2014

O botão principal

Nesses tempos pós-modernos, em que nosso cotidiano é cada vez mais adornado por quinquilharias eletrônicas de todos os calibres, tenho amadurecido a conclusão de que, entre todos os avanços tecnológicos que vejo surgirem desde o advento da torradeira elétrica, um dos que mais me encantam é o botão (e/ou a tecla) “desligar” (ou “off”) que acompanha todas essas engenhocas. A cada dia que passa, apaixono-me um pouco mais pelas teclas e botões “off” que me rodeiam.
É a tecla “off” do controle-remoto da televisão que me permite fazer a coisa certa sempre que a programação exibida começa a ofender meu senso do ridículo. Não penso duas vezes quando tem início a gritaria do programa de auditório dominical, ou as brigalhadas das telenovelas. Pressiono o botão e off nela! A um simples toque, a paz, a mansidão e a inteligência voltam a reinar nos domínios de minha sala de estar.
O mesmo acontece com as estações de rádio que sintonizo em busca de vida inteligente. A música fica ruim ou os comentários do comentarista começam a nivelar com o raso da alma humana? Off nele. Pronto, a poluição sonora é varrida como que em um toque de mágica de dentro das paredes de minha casa, do escritório, do automóvel, e volto a escutar o doce som do silêncio.
O telefone celular, esse aparelhinho criado para nos tornar dependentes da possibilidade de sermos contatados a qualquer hora do dia, felizmente também vem equipado com a fundamental teclinha. Sendo assim, não penso duas vezes e mando ver off no celular quando estou no cinema; off nele no teatro; off nele no casamento; off nele na reunião de trabalho e em vários outros momentos da jornada diária. Não tenho a obrigação de estar disponível 24 horas por dia. Off, off, off! Não podemos esquecer que quem ainda está no comando somos nós, seres humanos, e não os aparelhinhos que nos cercam. Lembram da luz elétrica? Há momentos em que a intimidade fica bem melhor quando a gente “off” no interruptor.
Reaprender a desligar pode ser a melhor maneira de nos religarmos com nossa essência humana. Desligar renova o silêncio e a privacidade. Desligar recarrega as baterias, restaura o bom-senso e a boa educação. Precisamos colocar a tecnologia dentro de seu devido lugar, provando a nós mesmos que não somos escravos dela, enquanto ainda é tempo. A primeira pergunta que faço aos vendedores nas lojas, antes de adquirir qualquer novo produto que funcione a bateria ou a eletricidade, é: “Onde se desliga esse troço?”.
Afinal, dormir ainda é o melhor remédio para sanar os males do espírito, do corpo e da alma. Que os eletronicotrecos saibam também obedecer à ordem de ir para a caminha, de vez em quando...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de julho de 2014)

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Saber delegar

Antes de ser jornalista, sou um auxiliar de laboratório de análises químicas. Minha formação secundarista habilitava-me a atuar profissionalmente nessa área específica e transitar no fascinante mundo dos laboratórios químicos, a desempenhar nem lembro quais funções.
Mas larguem-me sozinho e saltitante dentro de um laboratório de análises químicas e causarei estragos. Não tenho a menor habilidade para manusear buretas, pipetas, cadinhos, tubos de ensaio e coisa e tal. Não tardei a perceber que minhas aptidões vocacionais residiam nas áreas humanas e não nos laboratórios (para alívio de toda a humanidade) e fiz-me jornalista, cronista e escritor. Virei um alquimista das letras e o planeta livrou-se de um perigoso alquímico desastrado.
O segredo disso tudo reside na capacidade (e na responsabilidade) que temos de descobrir nossas verdadeiras vocações a tempo de evitar frustrações e cometer erros que prejudiquem a nós próprios, aos outros e à sociedade. O mundo a meu redor é mais seguro tendo a mim enjaulado em salas escrevendo, ao invés de pirilampeando desgovernado dentro de um laboratório, com as mãos e os braços balançando para todos os lados, como um polvo desequilibrado.
A moral da história é que devemos não só reconhecer nossas próprias habilidades e vocações, mas principalmente aprender a delegar, aos que forem melhor habilitados, a realização das tarefas para as quais não temos nenhuma aptidão. É o que fazemos quando vamos às urnas, votar nas eleições. Estamos ali, naquele momento, delegando poderes para que pessoas habilitadas legislem e governem em nosso nome, e assim, bem governados, possamos nos dedicar aos laboratórios, à escrita, às nossas atividades em geral.
Mas o que fazer quando alguns candidatos não possuem tais habilitações para nos representarem nos âmbitos da governança e da legislatura? Primeiro, não votar neles. Depois, se votados forem, devemos lembrar que não há mal que não possa ser remediado. Devemos e podemos nos livrar dos polvos loucos desgovernados que pirilampeiam pelo mundo da política no país, em todas as esferas.

Claro que ameaçar trancá-los dentro de um laboratório comigo lá dentro chacoalhando as pipetas não chega a ser uma solução e soaria sinistro. Melhor mesmo é puxarmos para nós a responsabilidade pela escolha correta, bem como assumirmos a postura de cidadãos participativos que acompanham o trabalho daqueles a quem delegamos poderes pelo nosso voto. Nessa hora, cada um de nós, com o título de eleitor na mão, representa um técnico responsável pela escalação da seleção de políticos que atuarão no país ao longo do próximo período. Precisamos evitar os fazedores de gols contra.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de julho de 2014)

terça-feira, 15 de julho de 2014

Ah, a autocrítica...

“Desculpem, perdão, errei, eu estava equivocado. Lamento muito, especialmente se meu erro causou algum dano eventual a alguém. Já estou fazendo uma avaliação para detectar os motivos pelos quais cometi o erro, e vou me esforçar para que eles jamais voltem a se repetir. Grato pela compreensão de todos”.
Palavras e frases como as elencadas acima são aquelas que a gente espera escutar de alguma pessoa (qualquer pessoa) que tenha cometido um erro, seja esse equívoco voluntário ou mesmo involuntário. Como todos bem sabemos, uma das graças de sermos humanos reside exatamente nessa capacidade que temos de cometer erros, reconhecê-los enquanto erros, admiti-los, refletir sobre eles e, especialmente, aprender com eles, evoluindo e nos tornando pessoas melhores nesse processo. É por isso que costumamos ser tolerantes com quem erra, percebe, admite, faz autocrítica e se esforça para não repetir o erro e evoluir. Gostamos de ver esse tipo de atitude tanto nas pessoas que nos cercam quanto em nós mesmos, e é o mínimo que esperamos das personalidades públicas.
Quando não o fazem, ou seja, quando insistem teimosamente em tapar o sol com a peneira, em não admitir seus erros mais escancarados, em encastelarem-se na soberba do não arrependimento, passamos a desconfiar profundamente dessas pessoas, porque sabemos que, no fundo, elas não acalentam dentro delas nenhum pingo de propósito de evoluírem. Elas não vão mudar. Elas vão continuar a cometer esses erros e todos os outros que advierem dele. São incapazes de fazer autocrítica, porém, estão sempre no início da fila dos que gostam de criticar os erros alheios. Nossa tendência natural é nos afastarmos dessas pessoas, quando elas integram nosso círculo de relações, ou a desabonarmos a imagem da pessoa quando se trata de figura pública.
A pior consequência que se apresenta a quem se agarra a esse tipo de atitude é a perda da credibilidade do público e da parte de quem cerca o teimoso. Isso porque, com sua atitude, a pessoa acaba passando recibo de que é, além de incorrigível, mal-intencionada. E, além de incorrigível e mal-intencionada, ainda desdenha da inteligência dos demais, insultando-os ao imaginar que engolem as desculpas esfarrapadas que apenas tentam camuflar sua incamuflável arrogância.

Reconhecer os erros e fazer autocrítica são atitudes civilizadas que se espera de pessoas maduras e confiáveis. Ainda mais quando são figuras públicas. E mais ainda quando pretendem continuar sendo figuras públicas e com suas imagens em alta. Pena que às vezes tem uns que...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de julho de 2014)

segunda-feira, 14 de julho de 2014

A maçã afrodisíaca

O que você faz quando lê uma notícia informando que cientistas italianos, depois de demoradas e minuciosas pesquisas, concluíram que o consumo de maçã incrementa a vida sexual das mulheres, proporcionando-lhes níveis mais elevados de excitação e satisfação? Bom, se você é mulher e anda insatisfeita com a qualidade de sua vida sexual, suponho que vá correr para a feira adquirir um punhado de maçãs a fim de fazer o teste em si própria. Creio também que, se você for uma mulher já plenamente satisfeita com o andamento de sua vida sexual, é capaz até de comer uma que outra para ver se a frutinha produz em você um efeito equivalente ao que uma pílula de viagra exerce em alguns homens, só por curiosidade.
Mas se você for homem, acredito que, ao ficar cônscio dos poderes afrodisíacos da até então inocente e pacata maçã, irá voando entupir sua parceira com nacos saborosos da fruta, empanturrado de primeiríssimas intenções. Ah, detalhe: é fundamental, dizem os tais pesquisadores, que se consuma a maçã com a casca, porque é na casca, pessoal (atenção, aí no fundo), é na casca que residem as substâncias responsáveis por operar o milagre nelas.
E se você for, assim como eu, um homem que, ainda por cima, é cronista de jornal? O que você fará com a notícia? Ora, você vai imediatamente pensar com os seus botões: “hum, que interessante, botões, isso rende crônica”, e colocará dedos à obra. Sem perder mais tempo, você, o leitor-cronista, vai se arremessar ao computador para começar a produzir um texto engraçadinho que terá como base a ligação imediata, que é impossível evitar fazer, entre o que foi noticiado quanto aos poderes sexuais da maçã sobre as mulheres e a história bíblica de Adão e Eva lá no Jardim do Éden, quando justamente Eva, com a intenção de tentar Adão, presenteia-o com o quê? Quem lembra? Quem prestou atenção no dia dessa lição nas aulas de catequese? Com uma maçã, isso mesmo, muito bem, palmas para o senhor de óculos e cavanhaque ali no meio!

Então, se é assim, por que diabos este cronista aqui que vos escreve não fez exatamente isso? Simples: porque não é possível fazê-lo sem incorrer em erro histórico e crasso. Folheando a Bíblia no livro do Gênesis, lá onde consta a história de Adão e Eva, percebe-se que em momento algum o texto bíblico faz alusão explícita a uma maçã. O que consta ali é que Eva colheu um dos frutos proibidos da Árvore do Conhecimento, instigada pela serpente, mordeu um pedaço e ofereceu outro a Adão. Mas não fala em maçã. Impossível fazer a crônica sob essa ótica. Estou ralado, e agora? Ficamos sem crônica...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de julho de 2014)

sábado, 12 de julho de 2014

O passado presente

O passado, bem o sabemos, não existe. Pelo menos, não existe enquanto objeto ou fato tangível, uma vez que representa tudo aquilo que já existiu ou aconteceu (sempre no passado, naturalmente) em um tempo anterior ao presente instante. Viveríamos aprisionados em um infinito presente se não fôssemos dotados com o poder da memória, que tem a função de manter o passado presente, ou melhor dizendo, vívido (para não incorrermos em uma contradição em termos).
O dramaturgo inglês Harold Pinter (1930 – 2008), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2005, resumiu a questão desse modo: “O passado é aquilo que você lembra, aquilo que você imagina que lembra, que você se convence de que lembra ou finge lembrar”. Resumindo ainda mais, o que me parece que Pinter quer dizer é que o passado em si, mesmo sendo estático e encravado no tempo, é plenamente cambiante e mutável, uma vez que está à mercê dos sabores de nossa memória, ela sim, fugaz, etérea, fluida, inconstante, temperamental, inconfiável, volúvel (meu suposto resumo do resumo ficou imensuravelmente maior do que a tese, perdão).
Com o passar dos anos, acabamos transformando nossas próprias recordações em “causos” despudoradamente remodelados a fim de melhor se encaixarem à visão que temos de nós próprios, ou à imagem que pretendemos vender de nossas pessoas para quem nos cerca. Mas nem sempre (talvez quase nunca) esse processo se dá de forma consciente e deliberada.
Eu, por exemplo, até há poucos dias, estava me mortificando pelo fato de, cerca de 20 anos atrás, quando era editor do caderno Sete Dias do jornal Pioneiro, ter manuseado uma bela fotografia antiga da poetisa Vivita Cartier (1893-1919), morta e enterrada em Criúva, e publicado-a na capa do suplemento para ilustrar uma reportagem sobre eventos culturais que evocavam a memória de poetas do passado. Na época, não imaginava que eu mesmo, dali a duas décadas, estaria me escabelando em busca daquela mesma foto para ilustrar o livro que agora organizo sobre a história da vida da poetisa. Considerava uma ironia do destino o fato de eu mesmo ter manipulado a foto que agora me escapa e que tanto busco.

Porém, acabo de descobrir que não sou culpado de nada. Verificando as datas, percebi que a página do caderno em questão foi editada dois meses antes de eu chegar em Caxias do Sul para assumir a editoria do Sete Dias. O eu do passado que editou a foto de Vivita não existiu, diferentemente do que pensava o eu de hoje, que a procura. Não somos a mesma pessoa. Minha memória me culpava por algo de que sou totalmente inocente. Quero ver se as provas são suficientes para que ela me absolva. Isso, só o futuro dirá.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de julho de 2014)

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Quero um clone

Fiquei muito feliz algumas décadas atrás (mais precisamente em 1996), quando o mundo foi surpreendido pela notícia de que cientistas britânicos haviam conseguido clonar uma ovelha, a Dolly, abrindo caminho para o que fascinante mundo da clonagem saísse da ficção científica e invadisse a realidade. Crédulo e otimista como sou, fiquei imediatamente convencido de que seria apenas uma questão de poucos anos para que pudéssemos sair clonando a nós mesmos e já fui guardando dinheiro para entrar na fila da clonagem, ávido por povoar meu roupeiro com meia dúzia de Marcos-Clones, prontos a serem utilizados para as mais variadas (e chatas e difíceis) tarefas.
Bom, não foi o que aconteceu, como todos sabemos, e ainda sou eu mesmo, o Marcos original, quem tem de sair da cama de manhã cedinho para trabalhar e me enfiar nu sob o chuveiro para banhar-me nesses gélidos dias serranos. Enquanto a água se choca contra minha pele, não consigo deixar de sonhar com aquele mundo que imaginei, quase 20 anos atrás, em que poderia dar ordens ao meu clone, tipo: “ô clone, vai tomar banho, meu!”, e o clone iria, toc-toc-toc, tomar banho por mim, sem reclamar. À medida que o clone se lavasse, eu, o original iria ficando automaticamente limpinho. Sim, porque, se é para sonhar, que se sonhe direito: tudo o que acontecesse com o clone, deveria ter reflexos diretos no original.
Isso seria uma mão na roda na questão da leitura dos tantos livros que tenho para ler, por exemplo. Eu enfileiraria três clones meus (sim, eu teria uma horta repleta de clones) sentadinhos no sofá da sala, enfiaria um livro nas fuças de cada um e daria as ordens: “Clone 1, leia ‘Os Sertões’, do Euclides da Cunha; Clone 2, manda bala na ‘Montanha Mágica’, do Thomas Mann; Clone 3, devore ‘Ulisses’, do James Joyce. E não ousem pular uma página sequer, que estou de olho”. Eles iriam lendo e eu iria absorvendo. Que maravilha!

Claro, de vez em quando, seria necessário tirar o clone do armário para que não pegasse mofo e também para leva-lo a passear no parque, comprar-lhe um sorvete, fazer-lhe um agrado. Seria preciso estar de bem com os clones, para que eles não se revoltassem. Aliás, “A Revolta dos Clones” seria um ótimo roteiro de filme. “Ô, Clonão, encaminha o registro da ideia e descobre os telefones de Hollywood”. Opa, não há clone algum. Bom, bom, deixemos de viagens e vamos ao banho, fazer o quê.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de julgo de 2014)

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Fiasco de quem?

Eis que então caiu a máscara e pudemos, terça-feira, visualizar a verdade nua e crua: as zebras, no fim das contas, éramos nós! Não a Nigéria, a Argélia ou a Costa Rica, mas sim a trôpega e prepotente Seleção Brasileira, que resolveu fazer história pelo avesso, espalhando pistas sobre suas intenções já na primeira partida contra a Croácia, ao estrear sua avacalhada participação na Copa do Mundo com um gol contra.
Aliás, foi justamente o temor de protagonizar pirâmides de gols contra no processo de acolher os visitantes estrangeiros para a Copa, devido às conhecidas precariedades estruturais do país, que pautou a maioria dos debates anteriores ao início da competição. Porém, o que se viu foi que nossa verdadeira fragilidade não residia na capacidade externa de maquiarmos momentaneamente nossas mazelas para receber bem os turistas. Nossa real fragilidade situava-se mesmo era dentro de campo, quando a nossa essência teve de ser revelada, mostrando aquilo que somos: infantis, perdedores, messiânicos e descomprometidos. Acreditamos que nossos problemas e desafios solucionam-se a partir de passes de mágica.
A Seleção Brasileira de futebol se equivale à classe política brasileira (a quem tanto criticamos), uma vez que tanto uma quanto a outra é composta por brasileiros iguais a nós todos. Ambas nos representam fielmente; ambas são espelhos de nossas essências e refletem exatamente aquilo que somos. O que se viu em campo terça foi um embate entre a seleção do “jeitinho” e a seleção do trabalho árduo e focado. Só que o tal “jeitinho” não funciona mais, nem no futebol e nem em qualquer outro aspecto da vida humana, ocupando cada vez menos espaço no mundo civilizado, que se pauta pelo empenho, pela dedicação, pelo suor, pela constância de propósito, pela convicção de que os bons resultados advêm da entrega plena, e não da vontade de deuses, de santos, de salvadores da pátria, de golpes de mágica redentores do fracasso, do descompromisso e da vagabundagem.

Depois do jogo, as pessoas passaram a externar vergonha por serem brasileiras. Sim, com certeza que sim. Mas a goleada sofrida pela Seleção Brasileira frente à Alemanha é o menor dos problemas que devem nos envergonhar, só para situar a coisa dentro de seus devidos lugares. Agora temos eleições, por exemplo. Momento crucial para apontarmos aqueles brasileiros que vão representar a todos nós nos próximos anos. Há muito a fazer para que deixemos de tomar goleada da civilização. A começar pela mudança de nossas posturas pessoais no trânsito, no trabalho, em família, no dia-a-dia. Deixemos de ser hipócritas: os políticos são iguais a nós. Os fiasquentos da Seleção, também.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de julho de 2014)

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Apenas uma metáfora

Sabe aquela sensação de estar com a cabeça enfiada dentro de um aquário (mas sem a presença do peixe, graças a Deus)? Pois é, foi me sentindo exatamente assim que eu saí da cama ontem de manhã. O quê? O senhor não sabe patavinas do que estou falando, uma vez que nunca vivenciou a experiência de enfiar a cabeça dentro de um aquário, com ou sem peixe? Bom, então vou entrar em detalhes, afinal, quando se escreve e se publica uma crônica, faz-se mister que seja-se compreendido (“fazer mister” equivale a “é necessário”, e explico porque hoje estou explicante).
A sensação de estar com a cabeça dentro de um aquário equivale a sentir-se meio zonzo, aéreo, com os sentidos todos em estado de aguçamento excessivo, em especial a audição e a visão (mais ou menos como deve ser o usual para o Super-Homem, que dizem possuir superaudição e supervisão, o que, convenhamos, deve ser um inferno). Tudo ecoa e ressoa mais alto e as cores são excessivas, ferindo o olhar. É um sentimento de claustrofobia imanado de dentro para fora, se é que assim me faço entender melhor. Não? Pior ainda? Bom, quando as comparações e metáforas não funcionam, o único jeito é partir para a prática mesmo.
Não, senhor, calma, não estou a sugerir que o senhor vá ao centro da cidade adquirir um aquário para enfiar a cabeça dentro, eu não seria deselegante a esse ponto. Muito menos elegante seria o senhor se o fizesse, e se decidisse fazer pior, que seria invadir a loja de artigos para peixinhos, ir abrindo caminho entre mães e crianças que escolhem entre os nadadores dourados e os azuis e vermelhos, para ir mergulhar a cabeça (o chapéu já retirado, em mãos... ah, o senhor não usa chapéu, pois bem) dentro de um dos aquários do mostruário, de preferência vazio. Não, nada disso, não se ofenda. Desnecessário ir tão longe.
Como? Se eu já enfiei a minha própria cabeça dentro de um aquário, para sair escrevendo uma asneira dessas? Pior é que também não, leitor amigo, nem eu, tampouco, já cometi uma imbecilidade dessas, uma das poucas que ainda não cometi, admito, para o bem da verdade histórica a respeito de mim mesmo. Então por que escrevo isso? Ora, porque foi a forma mais aproximada que imaginei ser capaz de repassar ao leitor a sensação horrorosa que se abateu sobre mim, devido a uma longa madrugada de insônia.

O problema é que as palavras e as imagens e as metáforas nunca são suficientes para transmitir com exatidão uma sensação. Este texto, ao menos, poderá servir como prova para essa tese, sempre que isso se fizer necessário. Prazer foi meu, em poder colaborar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de julho de 2014) 

terça-feira, 8 de julho de 2014

Um pão de queijo

Ah, um cafezinho no meio de uma tarde gelada, acompanhado por um redondo,  quentinho, dourado e saboroso pão de queijo! Tem coisa melhor? Bom, pensando em termos absolutos, claro que daria para elencar algumas dezenas de coisas melhores do que um irresistível pão de queijo a aquecer um estômago vazio no meio de um dia de trabalho, ou ainda no início da manhã.
Mas a pergunta é apenas retórica e a resposta certa, para fins de efeito estético deste texto, é você concordar com a intenção do cronista e dizer “não, não existe no mundo nada melhor do que um pão de queijo em um cenário como o que você descreveu, amado cronista” (a expressão “amado cronista” decorre aqui da necessidade irrefreável de afago ao ego que este que vos escreve estas mal traçadas linhas, ao sabor de pães de queijo, necessita receber em doses cavalares, ficando, portanto, optativa ao critério dos leitores, estes sim, todos indiscriminada e democraticamente amados pelo colunista). E já que agora, quando chegamos à metade do texto, entramos em concordância e compartilhamos a concepção de que nada há no mundo (por ora) melhor do que um pão de queijo quentinho e coisa e tal, passa a soar razoável que façamos aqui uma justa homenagem aos padeiros, esses abnegados trabalhadores anônimos tão fundamentais para a manutenção de um dos aspectos mais triviais e fundamentais de nosso cotidiano.
Sim, porque hoje, 8 de julho, é o Dia do Padeiro. Levando-se em conta que a humanidade consome pães há seis mil anos e que o pão de queijo, em específico, levando-se em conta todo esse cenário histórico, é invenção recentíssima, é preciso que teçamos loas à criatividade gastronômica que invade sazonalmente o âmago de alguns desses profissionais, instando-os a criarem essas pequenas pérolas alimentares que preenchem de sabor nossas bocas e nossas almas. Meus sinceros parabéns, portanto, aos padeiros em seu dia, especialmente por proporcionarem às nossas mesas essa variedade inesgotável de sabores a partir de pães como o d´água, de centeio, integral, francês, baguette, sírio, de forma, de leite, de mel, preto, sovado, de milho, de forno, assado na palha e tantos outros.

Não fossem os padeiros a produzirem esse tão básico e vital alimento, não conseguiríamos, nós, escritores, forjarmos as figuras de linguagem que unem o alimento do corpo com o do espírito, tentando elevar nossos escritos à categoria de produto vital como o é de fato e inegavelmente o pão. Todos convidados, então, a brindarmos, com uma tacinha de expresso e um pão de queijo, ao Dia do Padeiro, ali no café da esquina.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de julho de 2014) 

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Nem em sonhos

“Durante um dia inteiro de outono, escuro, sombrio, silencioso, em que as nuvens pairavam, baixas e opressoras, nos céus, passara eu, a cavalo, sozinho, por uma região singularmente monótona – e, quando as sombras da noite se estenderam, finalmente me encontrei diante da melancólica Casa de Usher. Não sei como foi – mas, ao primeiro olhar lançado à construção, vi se aproximar aos poucos uma figura que se assemelhava ao meu gato de estimação falecido no ano passado. Um gato preto se aproximava, e uma sensação estranha de que ele fugia de alguém que desejava emparedá-lo me acometia o íntimo...”.
 Opa, epa, que é isso... Quando me dei por conta, eu havia pegado no sono no sofá da sala, em plena releitura de alguns dos contos mais famosos de Edgar Allan Poe, e meus sonhos haviam invadido a história (ou, pelo inverso, a história lida era quem invadia os domínios de meu sono). Lancei um olhar para o relógio pregado na parede da cozinha: meia-noite passada. A hora das bruxas, se eu fosse personagem de Edgar Allan Poe, o que explicaria o sonho esdrúxulo e bruxuleante. Mas, na verdade, hora de rumar para a cama, dormir e levantar cedo para trabalhar, uma vez que sou personagem é de mim mesmo e a vida real é quem me espera.
Tirei os óculos de leitura (porque agora, nessa fase, a gente passa a usar óculos de leitura, sabe), cruzei as hastes sobre o elegante volume de capa dura de “Histórias Extraordinárias”, de Poe, já devidamente repousado sobre o pufe alaranjado da sala de estar, e dirigi-me para a cama, já meio sonado, um zumbi a esbarrar em paredes e quadros. Como não poderia deixar de ser, a noite toda sonhei que lia as páginas do afamado escritor norte-americano, e perambulei por cantinas repletas de barris de amontillado, sendo perseguido por um gato preto enorme que desejava emparedar a mim dentro do porão da Casa de Usher antes que ela caísse, mas na hora “h” eu era salvo por uma dupla de moças chamadas Berenice e Ligeia, que insistiam em me confundir com William Wilson, o tio delas que havia desaparecido anos antes ao mergulhar no Maelstrom.

Acordei suado ao despertar do relógio. Rumei para a sala ao encontro do livro que estava lendo antes de dormir e o marcador continuava cravado na mesma página em que o deixara, sem ter se movido uma página sequer adiante. De nada adiantara minha leitura turbulenta em sonhos durante a madrugada. Teria de encarar aquelas páginas no mundo desperto de novo, sem outra alternativa. Impossível delegar ao onírico aquilo que precisamos concretizar no mundo desperto. Afinal, a vida não é um conto de Edgar Allan Poe.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de julho de 2014)

domingo, 6 de julho de 2014

O direito delas

Amigo leitor, aproxime-se. Venha cá, sente-se aqui, ao lado. Sim, sim, o assunto é sério, foi por isso que o chamei. Quer um café para acompanhar a conversa? Melhor não, café é estimulante, excitante, pode deixá-lo nervoso. Garçom, uma água sem gás, por favor. Isso, perfeito. E aí, como vai indo a vida, a família, tudo bem? E a esposa? Vai boa? Pois então, é sobre ela que quero falar. Não, não, calma, nada disso, não se antecipe aos fatos. Relaxe aí na cadeira e me escute.
Lamento sinceramente, estimado leitor, ter de ser eu a fazer a revelação, mas existem responsabilidades que acabam recaindo sobre as costas de quem se dedica a burilar textos em colunas de jornais conceituados como este, e não há como se furtar de cumpri-las. Vamos, pois, a elas. Espero que assimile da melhor forma possível. Olha só, leitor, reflita comigo: sabe os jogos da Copa do Mundo, pois não? Você certamente percebeu o súbito interesse da sua patroa pelas partidas da Copa, não foi? De repente ela estava ali, com a tabela dos jogos nas mãos, sabendo melhor do que você o horário do jogo entre Portugal e Gana, não foi assim? E você ali, encantado com ela, pensando que finalmente surgira nela aquele interesse pelo nobre esporte bretão, moldando-se enfim a companheira com quem poderia passar a discutir as agruras do Gauchão e os acertos da direção de seu time no período de contratações para a nova temporada do Brasileirão.
Sonho seu, leitor ingênuo, sonho seu, nada disso. Mais uma água, isso, isso. Sabe o que é que despertava a atenção dela, e de todas as outras mulheres, a ficarem de olhos vidrados nas telas dos televisores durante os jogos? O tórax do Cristiano Ronaldo, meu querido leitor torcedor. Sim, senhor, elas olham para isso, especialmente nesses períodos de Copa do Mundo. E tem mais: não é a bola que elas estão acompanhando avidamente com o olhar, mas sim as dezenas de pares de gambitos dos jogadores que correm atrás dela pelo gramado. É por isso que elas não sabem se foi escanteio ou tiro de meta, meu amigo. Elas estavam olhando era para a calipígia avantajada do Hulk.
Você não viu em todos os sites, blogs, jornais e revistas, as votações abertas para eleger os musos da Copa? Quem você acha que propõe esse tipo de pauta? As mulheres jornalistas, meu querido, que se divertem à larga com o desfile de musos atléticos pelas telinhas nesse período. É isso aí... caiu na real, né? Pois é, as mulheres estão cada vez mais vivas e um dos mais importantes direitos que conquistaram foi exatamente esse: o de se divertirem. Calma, calma, vai trincar a borda do copo, larga, não fica mordendo, tá parecendo o Suárez...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de julho de 2014)

sexta-feira, 4 de julho de 2014

No final da missa

Os alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Cinquentenário, de Farroupilha, estão de lápis apontados e com os narizes mergulhados na leitura de livros e de textos, em plena preparação para participar de mais uma edição da Olimpíada de Língua Portuguesa, iniciativa bianual do Ministério da Educação que tem como foco incentivar professores, escolas e alunos a incrementarem seus esforços na leitura e na produção textual. Independentemente da classificação que vierem a obter no certame, já são todos vencedores, pelo simples (e crucial) fato de estarem envolvidos no processo de produção e análise de textos literários. Sabem que, assim, estão pisando firmes no terreno da formação pessoal transformadora por meio da leitura. Ponto para eles.
Dentro das atividades preparatórias desenvolvidas na escola, as professoras decidiram convidar este cronista que vos escreve a ir até lá bater um papo com os alunos do nono ano, que andaram se debruçando sobre o gênero crônica e queriam tirar algumas dúvidas ao vivo e a cores. Pois fui-me manhã chuvosa dessas para lá e, como não poderia ser diferente em se tratando de mim mesmo, meia hora antes do combinado lá estava eu, a meia quadra da escola, porque não consigo chegar atrasado nunca a nada e não há psicólogo que me cure dessa coisa. Que fazer? Uma opção seria chegar e atazanar a vida das profes, aparecendo muito cedo. Outra, seguir até Caravaggio, que fica a um pulinho dali, e consumir o tempo restante. Foi o que fiz.
Estacionei defronte ao Santuário e telefonei para a esposa, que estava em casa. “Adivinha onde estou?”, perguntei. “Num café”, chutou ela. “Não, em Caravaggio. Cheguei muito cedo, não sei o que fazer”, expliquei. “Já que está aí, aproveita, entra na igreja e dá uma rezadinha, ué”, aconselhou ela. Como conselho de esposa é ordem, obedeci. Saí do carro, corri para dentro do Santuário (chovia, lembrem), de onde escutava que estava sendo rezada a missa das nove, e me sentei em um dos bancos da última fileira. Foi eu sentar que o padre, as mãos elevadas à frente, pronunciou: “Ide em paz”, e encerrou a missa, bem na minha chegada, deixando-me ali, com cara de “tá, meu, e aí”.

Levantei e rumei para a escola, onde fui confrontado com a pergunta que não quer calar: “de onde você tira as ideias para as crônicas?”. Ora, do fato de estar impressionantemente vivo, conferindo significados mágicos a tudo o que acontece em volta e aprendendo, todos os dias, que a vida não tem nada de banal e que até mesmo chegar no fim da missa pode resultar em algo positivo, como servir de tema urgente para mais uma crônica, por exemplo. Basta estar atento.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de julho de 2014)

quinta-feira, 3 de julho de 2014

A verdade é pouco

A realidade que nos cerca é pequena, é pouca, é insuficiente para saciar o desejo de vida que nós, humanos - seres conscientes, racionais, simbioses ambulantes moldadas em matéria e sensações -, possuímos. Viver nossas vidas cotidianas, aprisionadas e apequenadas dentro dos limites impostos pela realidade, nos é sufocante demais, e subvertemos essa imposição consumindo e criando arte.
É para isso que as artes existem: para ampliar as fronteiras de nossas existências, permitindo-nos pular as cercas dos limites da (pseudo) realidade que nos cerca. É só assim que conseguimos justificar a amplitude da maravilha de nossa existência humana, e é por isso que amamos cinema, teatro, literatura, música, dança, esculturas, quadros, fotografia, quadrinhos e assim por diante. As artes justificam a existência humana e é por causa delas que somos poupados da destruição total por parte dos deuses, que se reúnem em assembleia sazonalmente, com a intenção de dar um fim às diabruras aprontadas por nossa espécie, conforme nos revela Jorge Luis Borges em um de seus textos famosos. Os deuses decidem sempre por nos riscar da face da Terra, mas daí sempre há algum deles que evoca as maravilhas artísticas que somos capazes de gerar, e que tanto encantam os deuses, e acabamos sempre ganhando sobrevida. Os artistas são os redentores de nossa raça humana.
Zapeio pela tevê a cabo e pego um fragmento de entrevista que a repórter Ilze Scamparini fez em Roma com o diretor de cinema Ettore Scola. O cineasta acaba de lançar seu novo filme (após um recolhimento de dez anos), intitulado “Que Estranho Chamar-se Federico!”, em que faz uma homenagem biográfica a seu colega Federico Fellini, morto em 1993. Sobre o amigo, Scolla diz que “sim, ele era um grande mentiroso; mentiroso no sentido de inventor de histórias não reais, no sentido de criador de verdades fictícias; ele fazia isso porque a realidade não lhe bastava”.

O escritor peruano Mario Vargas Llosa (Nobel de Literatura de 2010) escreveu um livro intitulado “A Verdade das Mentiras”, no qual se debruça a resenhar 36 grandes obras ficcionais universais que nos ajudam a entender melhor a vida. “A missão do romance é mentir de maneira persuasiva, fazer passar por verdades as mentiras”, escreve ele, mostrando que “a ficção é a arte de dizer a verdade, nem que para isso seja preciso mentir – mesmo que seja um pouco”. Sorte a de nossa espécie essa, a de nascerem entre nós esses moldadores de inverdades tão fundamentais à nossa existência.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de julho de 2014)

quarta-feira, 2 de julho de 2014

O meio do ano

Bem-vindo, leitor, à metade do ano! Exatamente hoje, 2 de julho, deixamos para trás 182 dias já transcorridos desde que recebemos com espumante e espocar de fogos a chegada de 2014 e temos, pela frente, até 31 de dezembro, mais 182 dias a serem percorridos. Sendo hoje o 183º dia do ano, estamos vivenciando o exato meio do ano. Se estiveres lendo este texto ao meio-dia, estará então, leitor, encravado no epicentro do meio do dia do meio do ano, sacas tu?
Pense assim: vivendo e acordando mais um lote de 182 dias iguais aos que já passaram desde 1º de janeiro, atracarás em 31 de dezembro, quando novas garrafas de espumante estarão a gelar no freezer e o céu límpido e claro de dezembro – lembram, disso, céu sem nuvens, sem cerração, com estrelas, aquelas coisas que acontecem em dezembro? – estará pronto para ser colorido pela surpresa radiante das cores dos fogos de artifício que saudarão a chegada de 2015. Ahhh... 2015... ano desprovido de Copa do Mundo, desobrigado de campanha eleitoral... somente 182 dias nos separam de ti, 2015, um ano trivial e singelo como tantos outros de nossas existências.
É claro que somos torcedores natos da Seleção Brasileira de futebol e um ano com Copa do Mundo, ainda mais sediada no Brasil, se transforma em efeméride a ser saboreada com dedicação por todos nós aqui nascidos. E, sim, somos cidadãos conscientes de um país que lutou para conquistar a democracia e temos orgulho em exercitar nosso direito e dever cívico participando ativamente das campanhas eleitorais e afluindo às urnas para elegermos nossos dignos representantes. Assim, um ano de eleição, como este 2014, reveste-se também de uma aura de suma importância que sabemos valorizar.
Mas, isso posto, não dá para negar que, encerrados nossos esforços de brasileiros torcedores e de cidadãos participantes da vida política (sim, porque nós, brasileiros, torcemos pela Seleção só quando ela entra em campo e, paralelamente a isso, julgamos que nosso dever cívico se resume ao ato de depositar o voto na urna a cada par de anos), vamos receber de braços abertos um aninho singelo, despretensioso e modesto como 2015, que se nos apresenta logo ali, ao dobrar da esquina, só 182 dias à frente.

E já que passa voando, é melhor ir tratando de gelar aquele espumantezinho brut rosé, para não ser pego de surpresa na hora “h” da virada, pois não? Sim, o prevenido morreu de velho, e, num piscar de olhos, já é depois de amanhã. Feliz meio do ano!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de julho de 2014)

terça-feira, 1 de julho de 2014

Parabéns, Mr. Low

Quando você chegar em casa hoje à noite, após mais um movimentado dia de atividades (trabalho, estudo, tarefas de todas as ordens), provavelmente será mais um entre milhões de seres humanos que, para relaxar a mente e o corpo, tomará uma mesma atitude prosaica e simples: vai ligar a televisão para ver o que se passa no mundo em noticiários ou documentários, ou para descansar frente a uma programação que lhe traga diversão.
 Perfeito, muito bem, afinal, você é um cidadão do seu tempo e está em sintonia com o espírito da época em que vive. Agora, fica aqui a sugestão: enquanto troca de roupa para se sentir confortável em sua casa, olhe com certa atenção reverencial para o aparelho de televisão, esse ser inanimado tão fundamental para a harmonia de seu lar, e renda-lhe uma silenciosa homenagem, afinal, ele hoje está de aniversário, e não é qualquer aniversário: a invenção da tecnologia que permitiu seu surgimento completa seu primeiro século de existência exatamente hoje, neste 1º de julho. Saúde e longa vida, ó televisão tão querida!
Pois sim, é bem isso que você está lendo (ou será que assistiu a algum documentário na programação da tevê a respeito?): a televisão completa hoje 100 anos de trajetória. Foi em 1º de julho de 1914, com o mundo às portas do início do conflito que viria a ser conhecido mais tarde como a Primeira Guerra Mundial (as escaramuças armadas teriam início em 28 de julho daquele ano), que um cientista, escritor e inventor inglês chamado Archibald Montgomery Low (1888-1956) apresentou ao mundo um aparelho cuja função era emitir imagens a distância. “Isto se chama ‘televisão’”, disse ele (e se não disse assim, deve ter dito parecido, claro que em inglês, pois foi ele quem cunhou o termo, naquela ocasião).
Depois daquele protótipo pré-histórico, passaram-se décadas nas quais diversos cientistas se debruçaram sobre o invento de Low, aperfeiçoando a tecnologia por ele inventada, até que a tevê se transformasse em um aparelho realmente viável dentro dos lares das pessoas. A coisa só começou a ganhar grandes proporções a partir da década de 1950, a partir dos avanços tecnológicos obtidos ao redor do mundo em função dos esforços científicos decorrentes das demandas bélicas da Segunda Guerra Mundial. A tevê em cores surgiu nos Estados Unidos em 1954. No Brasil a primeira transmissão de sinal de TV ocorreu em 1948 e a primeira transmissão em cores, todos nós na Serra sabemos, foi a Festa da Uva de Caxias do Sul, em 1972.

Tudo por causa do senhor Low, hoje quase tão esquecido. Então, uma zapeadinha em homenagem a ele.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de julho de 2014)