sexta-feira, 26 de abril de 2013

Uma troca fantasiosa


O despertar de minha mente curiosa pautou parte de minha adolescência com o aprofundar de desejos fantasiosos que, caso concretizados, tornariam o mundo um lugar bem mais divertido para se viver. Naquelas longínquas tardes pré-internet, vividas na Rua dos Viajantes em Ijuí, eu acreditava, ou melhor, sonhava, ou melhor ainda, desejava que fossem reais algumas criaturas esdrúxulas e certos poderes paranormais a respeito dos quais devorava artigos publicados na revista “Planeta”, então editada pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão e tendo como colaborador um Paulo Coelho antes de descobrir a fórmula mágica para vender livros aos milhões.
Eu queria, e como queria, que o Monstro do Lago Ness fosse logo fotografado, para que os céticos mordessem suas línguas. Desejava também que o Pé Grande, ou o Yeti, fossem capturados em alguma armadilha para ursos no Canadá ou nos Estados Unidos para serem exibidos na televisão, reportagem que eu aguardaria ansioso no Fantástico domingo à noite, para pautar os comentários na hora do recreio na escola segunda-feira, comendo um pastel e bebendo uma Minuaninho Limão. Treinava meus dons mentais tentando fazer uma viagem astral fora do corpo até a casa ao lado para ver a filha da vizinha saindo do banho, o que nunca consegui, provavelmente devido à baixeza de minha motivação. Procurava enviar mensagens telepáticas ao meu coleguinha estudioso durante a sabatina de matemática a fim de obter dele, via ondas cerebrais, a resposta para os problemas envolvendo Bháskara. Aguardava por um contato imediato de terceiro grau com seres interplanetários para me explicarem a origem do universo e da vida, bem como desvendarem a extinção dos dinossauros e o motivo de Sandra não dar bola para mim.
Depois cresci e essas esperanças ingênuas e juvenis foram sendo substituídas por crenças mais terrenas e pés no chão, como o desejo de ver as pessoas sendo cidadãs, sabendo viver em sociedade, considerando o próximo, exercitando a solidariedade, trabalhando honestamente e respeitando as leis escritas e também as sugeridas pelo bom senso. Que burro, eu. Troquei fantasias plausíveis pela mais absoluta irrealidade.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de abril de 2013)

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Parabéns para mim


Quem ainda é ou já foi tímido vai entender do que eu estou falando. Na infância e na adolescência, eu rezava para que meu aniversário caísse em um sábado ou domingo (não podia sonhar com a remota coincidência de cair em um feriado, por não haver feriados em julho). Isso porque, nos demais dias da semana, havia aula e toda a turma voltaria os olhos a mim para entoar em uníssono o “parabéns a você”, no caso, a mim, que ao longo desses intermináveis 40 ou 50 segundos de duração da cantoria não sabia o que fazer com a cara de bobo que se agarrava em meu rosto, com o vermelhidão que me acamaronava a pele do pescoço à raiz dos cabelos (passando pelas orelhas) e com as mãos que parecem triplicar de número nessas horas e disputam espaço nos bolsos da calça ou nos pontos do cinto nos quais os polegares podem ser desconfortavelmente enganchados. Era uma tortura sem fim.
Mais tarde, a gente cresce, mas, no caso dos tímidos, a timidez parece crescer junto e poucas coisas mudam. Passamos a ter de apresentar trabalhos lá na frente, na universidade e, depois de formados, retornamos às salas de aula para dar palestras sobre a profissão ou, nesses dias de hoje em que a comunicação é tudo, somos convidados a falar em público nas mais variadas ocasiões, quando os olhares e as atenções se voltam todos para um único ponto de convergência: você, com suas mãos em excesso, suas faces ruborizadas, o suor frio escorrendo pela testa, os pés que tropicam em cadeiras e velhinhas sempre dispostas em lugares inesperados.
Segue sendo uma tortura. Porém, com o passar do tempo e o colecionar dos fios brancos, aprendi algumas técnicas para amenizar o problema e amaciar a cara de bobo. Nos aniversários nos quais os parabéns são remetidos a mim, passei a cantar junto, em alto e bom som, aliado à potência de meu incorrigível desafino. Sou uma tragédia cantando e isso ajuda a inibir o bis. Nas palestras e bate-papos em público, bato palmas junto ao final, como a agradecer de imediato os aplausos que gentilmente estão dirigindo a mim. Não ajuda a perder a timidez, mas a cara de besta consegue esboçar um sorriso e se esconder sob um tênue disfarce. Ajuda a seguir em frente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de abril de 2013)

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Tempo, memória e poesia


Vivita Cartier, a Noiva do Sol, que fez poesia e morreu em Criúva

A passagem ininterrupta do tempo é a maior inimiga da manutenção do frescor da memória. A fim de conservar vivas as lembranças que nos são significativas, não podemos contar apenas com a saúde dos nossos neurônios e precisamos lançar mão à imensa gama de recursos que servem de gatilhos para o recordar e de instrumentos para a manutenção e o resguardo da história. As fotografias, os livros, os jornais, os relatos, as entrevistas, os depoimentos, os documentários, os filmes, os eventos e as homenagens são alguns desses expedientes, fundamentais para que a vida humana e cada existência em particular não se transformem em um eterno recomeçar do zero a cada novo dia, mas se configurem em um processo contínuo de construção da história.
É nesse sentido que merece aplauso a iniciativa da Biblioteca Pública Municipal Dr. Demetrio Niederauer que, hoje à noite, a partir das 20h, realiza a terceira edição do projeto “Noite na Biblioteca”, tendo como tema os 120 anos de nascimento da poetisa Vivita Cartier, porto-alegrense nascida em 12 de abril de 1893 que morreu tuberculosa aos 26 anos de idade em 21 de março de 1919, em Criúva, onde há anos se estabelecera procurando nos ares da Serra uma esperança de cura. Enquanto buscava nos recursos da medicina de seu tempo o alento para os males físicos que a afligiam, Vivita produzia poesia a fim de amenizar as dores que lhe corroíam também a alma, entre elas, uma paixão não correspondida e a distância da efervescência cultural da Capital, da qual fizera parte ativamente nos anos anteriores ao agravamento de sua doença.
Produziu pouco e morreu jovem. Mesmo assim, os recursos da manutenção de sua memória e de sua contribuição para a literatura vêm sendo colocados em uso ao longo desses quase cem anos de sua morte, a ponto de Vivita amadrinhar cadeiras em duas academias literárias: a de Caxias do Sul e a Feminina do Rio Grande do Sul. O evento de hoje à noite é mais um importante lampejo para garantir que jamais se extinga a luz poética que sua vida e sua poesia trouxeram de forma fugaz, bela e sensível ao mundo, enquanto nele permaneceu. A memória de sua vida e de sua obra, ao que tudo indica, seguirá permanecendo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de abril de 2013)

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Profecia com todas as letras


Vou fazer uma profecia. E, como todo bom Nostradamus que se preze, tomarei o cuidado de datar o cumprimento de minhas previsões em um futuro longínquo o suficiente para garantir que eu não esteja mais por aí quando do advento das datas. Em a previsão se cumprindo, terei a infelicidade de não poder colher em vida os louros pelo acerto, mas confio na honestidade da História, que saberá me incensar com a devida justiça devido ao feito. Em não se cumprindo, me esquivarei espertamente do constrangimento de ter de inventar explicações que limpem minha barra, e que se ralem meus futuros detratores.
Então, vamos lá, ei-la: a internet não será responsável pelo desaparecimento dos livros, das revistas e dos jornais impressos. Ao menos, não nos próximos 100 anos.
Pronto. O que estou afirmando é que nossos netos e bisnetos, em 2113, ainda estarão em contato, no seu cotidiano pessoal e profissional, com esses centenários objetos de leitura que tanto amamos, impressos em papel, dobráveis, inflamáveis, rasgáveis, riscáveis, molháveis, sujáveis, facilmente carregáveis (e esquecíveis), singelamente acessáveis por meio de marcadores de páginas (normalmente, também impressos em papel), sublinháveis com caneta esferográfica ou ponta-porosa, alheios à necessidade de baterias recarregáveis ou à existência de eletricidade (exceto à noite, para que haja iluminação no quarto onde nos colocamos a lê-los), maleáveis, cheirosos, belos, charmosos, elegantes, concretos e tácteis.
Não, senhores, a internet não vai matar os livros e as publicações impressas em geral. Podem dormir tranquilos. Existem hábitos que a civilização arraigou ao comportamento e à cultura humanas e, entre esses, o ato da leitura na plataforma impressa é um dos que dificilmente serão abandonados pelos representantes futuros de nossa espécie. Ao menos, os do futuro próximo (falo em 2113, lembrem). As notícias de nossas mortes ainda sairão publicadas em páginas impressas nos jornais, bem como as alegrias dos anúncios sociais dos casamentos de nossos bisnetos, creiam-me. Quem viver, verá. Ou melhor, lerá.
A favor de minha tese profética, trago uma notícia publicada em fevereiro deste ano na imprensa (impressa) mundial. Em 2012, a receita obtida com assinaturas e com a venda de exemplares impressos da empresa The New York Times Company cresceu 10,4% em relação a 2011. Ou seja, o grupo norte-americano que edita os jornais The New York Times, The Boston Globe e The International Herald Tribune está vendendo mais jornais impressos e assinaturas do que antes. Mas não era para ser o contrário? Os jornais impressos não deveriam estar tendo seu mercado retraído com o avanço e consolidação dos blogs noticiosos mantidos por essas mesmas companhias?
E os livros? Publica-se como nunca antes na história da humanidade. As feiras de livro, as bienais e os encontros literários reúnem públicos cada vez maiores de leitores em todos os cantos do mundo, e vendem-se mais e mais livros (impressos) nesses lugares. O que a internet vem fazendo é exatamente agilizar, democratizar e ampliar o processo de aquisição de livros (impressos), e não retraindo o setor.
Meu tablet vai estragar se eu o deixar rolar ao chão ao pegar no sono em meio à leitura, deitado no sofá da sala. Meu livro, meu jornal e minha revista, no máximo, sofrerão um amassadinho e estarão me esperando alegremente para prosseguir na leitura quando eu acordar, amanhã de manhã.
Não, senhores. As traças, os ratos e os humanos de biblioteca prosseguirão sendo supridos com seu vital alimento impresso durante muito tempo ainda. Amansai vossas almas e boas leituras.

 (Publicado na seção "Planeta Livro" da revista Acontece Sul, edição de maio de 2013)

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Temor mortal


Para que buscar inspiração nos sonhos mais insanos se a pura e prosaica realidade é capaz de providenciar ao escritor os insumos mais férteis para povoar sua lavoura literária de histórias-sementes que germinarão metáforas e reflexões de melhor qualidade? Basta observar com atenção a vida que pulsa ao redor, conduzida pelos personagens-protagonistas que o cercam, cada um com suas manhas, manias e sanhas, que o desinspirado cronista logo recarrega as baterias da alma criadora e volta a ser capaz de preencher as linhas que lhe são periodicamente destinadas ao contato com seu público ávido pelas novidades que lhe saem do tento (digo isso porque sei da existência de cronistas possuidores de público ávido pelas novidades que lhes saem do tento).
Posso, por exemplo, compartilhar aqui nesta coluna, com meus abnegados e generosos leitores, a história contada por um amigo meu a respeito das preocupações mórbidas que andam assolando as ideias de sua mãe já octogenária, ideias essas que deram pano para manga e fome para vários pedaços de pizza noite dessas. Pois eis que ela, a senhora já tão bem vivida, está por demais preocupada com o que haverá de acontecer em seu inevitável futuro vindouro velório, que um dia lhe haverá de chegar, pois é certo, assim como o é para cada um de nós que tivemos a ousadia de nascer, ora pois. Assola a anciã não o medo da morte em si, mas sim o possível descontrole do que poderá vir a ocorrer no transcurso dos atos fúnebres relativos à sua pessoa.
Tem gente, por exemplo, que ela quer que vá ao seu velório, mas que, devido a intrigas ainda não resolvidas em vida, não tem garantia de que compareçam.  Por outro lado, há uma lista de pessoas que ela definitivamente quer que mantenham distância de seu caixão, gente que ela não quer ver nem morta, e não se trata aqui de figura de linguagem. Nutre também ela um temor mortal de vir a ficar morta sozinha no transcorrer da madrugada de seu velório, sem ninguém a lhe prantear companhia, o que obriga o filho –meu amigo – a fazer juras e promessas de que tudo transcorrerá da melhor maneira possível. Quem viver, verá, e quem souber de história melhor, que narre outra.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de abril de 2013)