segunda-feira, 29 de abril de 2019

Muito além do encenado


Você é um cronista mundano. Ocupa um espaço fixo no periódico impresso de maior circulação e representatividade da região em que habita e, portanto, tem responsabilidades crônicas periódicas. Escreve nas segundas-feiras, pegando os leitores (em especial as madamas e os cavalheiros, generosos seguidores de seus escritos) com os pés e os espíritos prontos para enfrentar uma nova semana. Mesmo que ciente de suas incumbências, não tem como negar a realidade que sobre si se impõe, clara e saliente: você é um cronista de segunda. Precisa estar à altura da missão, e se esforça semanalmente para dar conta do recado. Para tanto, sabe que tem de estar sempre alerta, e está.
À noite, no meio da semana (uma noite qualquer de uma semana qualquer), você leva a esposa para jantar em um restaurante que não seja qualquer (pois, apesar de ser de segunda o cronista, seu estômago faz exigências de primeira). Lá pelas tantas, saciada a fome e entrando o ritual naquela fase modorrenta em que se cruzam os talheres e passa-se a pensar na sobremesa (uma tigela de sagu gelado, como reza a tradição dos gostos controversos dos que adotaram esta terra para viver e foram por ela adotados), você ergue a cabeça e conduz os olhos em um giro panorâmico pelo ambiente. É quando você depara com as presenças de dois outros casais sentados às mesas próximas. Cronista que é, você se põe a observar, pois que a observação é o substrato vital para o ofício de qualquer escriba, dos de primeira aos de quinta, incluindo os de segunda, terça, sábado e afins.
Um dos casais (dois jovens) fala alto, animadamente, atropelando narrativas e ecoando gargalhadas. O outro, já na meia-idade, janta envolto em um manto de silêncio a pautar gestos morosos e olhares baços. Ah, que prato feito para as elucubrações de um perfeito mundano cronista! Lá vai ele, ao chegar em casa, sentar-se às teclas e discorrer sobre as obviedades da comunicação corporal, classificando o jovem casal conversador como exemplo de convívio sadio e amoroso, enquanto que à dupla madura imputará a pressão do desgaste da relação, que obviamente beira ao fracasso. Nada mais equivocado! Mal saberá o cronista de segunda que, dois meses depois, os jovens faladores já estarão brigados, enquanto que os maduros silentes seguirão unidos placidamente por anos a fio, até a separação imposta pela morte. As aparências são as armadilhas enganosas que engolfam impiedosamente o mundanismo apressado de qualquer um, cronista ou não-cronista, de primeira ou de segunda. A chave, madama minha, está em não julgar. Boa segunda!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 29 de abril de 2019)

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Os moldadores de sonhos


Não sabemos o seu nome, a imprensa não divulgou por óbvias razões, então, vamos chamá-lo aqui de “Yuri”, para facilitar a identificação do personagem ao longo desta crônica de segunda. “Yuri” é um garotinho russo de oito anos de idade, sonhador e determinado, que ganhou as manchetes da imprensa internacional após ser encontrado pela polícia a alguns quilômetros de sua casa, de onde havia partido com a missão de “viajar pelo mundo”. “Yuri” deixou um bilhete escrito para os pais, externando o motivo de seu sumiço, para não preocupá-los, lógico. Em uma mochila, reuniu livros (é um garoto leitor); brinquedos, incluindo um avião; um cofrinho com suas economias (pegou três táxis antes de ser encontrado a pé perto de uma ponte, às margens do rio Volga, que ladeia sua cidade) e uma banana, caso sentisse fome em algum momento da jornada. Além de determinado, o garoto provou ser previdente e organizado.
A família de “Yuri”, logo se constatou, não é disfuncional e seu lar não é desestruturado, muito pelo contrário. O garoto apenas sentiu-se estimulado a empreender a aventura após ler livros sobre viagens que lhe despertaram o desejo de conhecer o mundo, ampliar seus horizontes pessoais, ver novas gentes, novas terras, vivenciar experiências. “Yuri” pode também ter sido inconscientemente influenciado por um dos significados existentes na tradução do nome da cidade em que nasceu e vive, no sudoeste da Rússia: Astrakhan. Do mesmo porte de Caxias do Sul, com seu meio milhão de habitantes, a cidade, com mais de 700 anos de existência, faz alusão a um “rei peregrino”. Agora, abraça também, entre seus nativos, um menino com sede de andanças.
Do outro lado do mundo, uma criança brasileira, Bárbara Matos, de nove anos de idade, também virou notícia ao decidir transformar sonho em realidade. Aluna do Colégio Diocesano de Crato, no interior do Ceará, Bárbara sensibilizou-se com a situação do vendedor de picolés que há 40 anos faz a alegria da garotada em frente ao colégio. Aos 68 anos de idade, Francisco Santana Filho, o “Seu Zezinho”, não sabe ler e nem escrever. Seu sonho era conseguir assinar o próprio nome, e a menina, então, decidiu ajudar, ministrando lições ao picolezeiro no intervalo de suas aulas, que ocorrem na porta da escola, sob a supervisão de uma das professoras de Bárbara, a aluna-alfabetizadora. O que o russo “Yuri” e a brasileira Bárbara têm em comum, além da pouca idade, é a convicção de que o tamanho do mundo está ao alcance da amplitude de nossos sonhos e, por meio deles, pode ser transformado. Isso não é brincadeira!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 22 de abril de 2019)

Verdades da boneca de pano


Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais. Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta ideia do escrevedor. Mas para isso ele não pode dizer a verdade, porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha, para dar ideia de que está falando a verdade pura”. Essas filosofanças profundas e singelas não provêm da limitada capacidade deste mundano cronista, mas, sim, da genialidade de Monteiro Lobato, dando voz e vida a uma de suas mais brilhantes criações: Emília, a boneca de pano do Sítio do Picapau Amarelo.

O texto aqui reproduzido pertence à abertura do livro “Memórias da Emília”, em que a personagem protagoniza uma hilária e ao mesmo tempo reflexiva saga ao tentar narrar por escrito (com a ajuda do Visconde de Sabugosa, por ela empossado na função de seu secretário) os fatos que marcaram sua existência. “Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso.”, explica a boneca para uma estupefata Dona Benta. O livro surgiu no ano de 1936, integrando a saga de aventuras infanto-juvenis da Turma do Sítio, que vem encantando sucessivas gerações de leitores brasileiros. Lobato morreu em 1948 e, passadas sete décadas, sua obra cai agora em domínio público, permitindo reedições e adaptações de todas as sortes. O que fica, para sempre, é a magia e a sutil avaliação das nuances da alma humana, representadas pelos personagens e pelas tramas das obras, como as reflexões sobre o que é e o que não é a verdade, evocadas pela Emília no início desta croniqueta de segunda.
Em sintonia com o momento, o Instituto de Leitura Quindim, daqui de Caxias (situado junto ao Centro Cultural Moinho da Cascata, Rua Luiz Covolan, 2820), convida o público para visitar a mostra intitulada “Sra. Dona Emília de Trapo de Macela”, em que sete artistas plásticos da região revisitam a personagem a partir de seus talentos. Ilka Filippini, Sharizy Pezzi, Marina Prochászka, Marina Rombaldi, Matheus Montanari, Volnei Canônica e Rafael Dambros (que também responde pela curadoria) integram o time que mergulha na magia do Sítio do Picapau Amarelo para reinventar reinações artísticas ao agrado de crianças de zero a 99 anos. A mostra abriu na semana passada e segue até o dia 12 de maio. A visitação é gratuita. Uma experiência criada para ficar na memória e evocar as verdades mais íntimas de cada um, tanto das de seres de pano e macela quanto das de carne e osso. Chega lá!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 15 de abril de 2019)

segunda-feira, 8 de abril de 2019

A sutileza dos grandes


Do grande, do vitorioso, do poderoso, do vencedor, temos o direito e o dever de exigir generosidade e humildade. Do pequeno, do humilde, do fraco, do perdedor, não podemos exigir nada, porque, conforme ensinava o sábio Barão de Itararé, “de onde menos se espera, dali é que não sai nada, mesmo”. Não cabe ao grande ser altivo, presunçoso e prepotente, porque, em sendo assim, incorrerá na soberba, e a soberba é a ferrugem que carcome as bases da grandeza, levando-a à derrocada e à ruína. Se fores grande, sê dócil, leve e acessível. Não envelopa tua grandeza no celofane traiçoeiro da arrogância, porque ela é a argamassa da fundação do castelo de areia em que te verás assentado. Muitos serão os que, movidos pela inveja, soprarão essas frágeis fundações, e logo te verás quedado sobre as ruínas das dunas fugazes que tu mesmo edificaste. Sê manso, mesmo que grande, porque é essa mansidão que carimbará teu passaporte para a perenidade.
Se fores grande, saibas que a legião dos pequenos que te rodeiam nutre expectativas imensas de ti. Exigem de ti o que neles não veem possibilidade de obter, e projetam em ti aquilo que gostariam de ser. Mesmo que não o sejas, mesmo que te vejas pequeno para atender às exigências, faz o teu melhor, porque é isso que se espera de um grande. Arca com essa responsabilidade, porque a grandeza não é uma esfera que se atinge sem portar demandas. “Vae victis!” (“Ai dos vencidos”!), gritou o gaulês Brennus, no século quatro antes de Cristo, ao vencer os romanos e saquear uma Roma subjugada. “Gloria victis” (“Glória aos vencidos”!), foi a locução criada em antítese à prepotência do vencedor gaulês, que poderia ter se poupado de entrar para a História por pronunciar frase tão infame. É fácil, aliás, um grande, um poderoso, assentar-se na eternidade devido à infâmia a que se vê seduzido (e reduzido) por sua posição privilegiada.
Ao forte cabe cuidar dos mais fracos, e não usar sua força para oprimi-los. “Junto a um grande poder, surge uma grande responsabilidade”, já ensinava nos quadrinhos o tio do Homem-Aranha, em diálogo eternizado pela genialidade de Stan Lee. Chefe bom não é o que impõe temor, mas, sim, o que inspira exemplo. Difícil, isso. Não é para todos. A altura seduz, sim, mas é prudente saber que a queda do alto costuma ser mais devastadora do que a mera escorregadela ao nível do solo. “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, nos alerta há milênios o Eclesiastes. Vale pra todo mundo. De minha parte, madama, sempre quis escrever uma crônica epistolar. Mesmo ciente de que ela sempre será de segunda...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 8 de abril de 2019)

segunda-feira, 1 de abril de 2019

A civilidade do Gama


Nesses dias atuais pautados por ódios exacerbados dando o tom às postagens nas redes sociais e ao transitar na vida real, em que não se medem esforços para atacar e destruir a tudo e a todos, vale lembrar um episódio modelar ocorrido no Rio de Janeiro há mais de um século, e que foi registrado por um dos protagonistas na revista “Máscara”, produzida em Porto Alegre, em sua edição número 1, de 1918. Quem relatava o feito, em artigo naquela publicação, era o jurista, político e notável gaúcho João Carlos Machado, evocando um encontro casual que tivera alguns anos antes, no Rio (então capital federal do país), com o poeta gaúcho Marcelo Gama (1878 - 1915), ali radicado.
O poeta ainda vivia (antes de ser arremessado fatalmente do banco de um bonde sobre um viaduto no Rio, despencando de uma altura de sete metros), quando Machado deu com ele em uma quebrada no centro da metrópole. Gama convida o conterrâneo a segui-lo até uma mesa da tradicional confeitaria “Americana”, para conversar. Ali, do interior de uma pasta repleta de papéis, o poeta pinça um “libelo” que tencionava publicar na imprensa carioca, direcionado contra determinado escritor que vinha sendo aclamado pela imprensa e pela crítica, segundo ele, de forma injusta, pois não passaria de um “incompetente arranjador de lugares comuns”, incensado pelos “basbaques”. A crítica de Gama, segundo Machado, ao ouvi-la ser lida em primeira mão pelo autor, era demolidora, “atacando a fundo os vícios literários da notabilidade incipiente”.
“Que tal?”, perguntou o Gama ao amigo, ao findar a leitura do artigo arrasador, ainda inédito. De pronto, Machado respondeu: “Homem ao mar! Publicas isso num dia e, no outro, o homenzinho chorará cento por cento da sua reputação literária”. Ao ouvir isso do parceiro, “baixou a cabeça Marcelo Gama”; silenciou e passou a travar uma luta em seu íntimo. “Aquele coração, infeliz, mas fundamentalmente bom, não sabia praticar perversidades”, ponderou o interlocutor do poeta. Então, discretamente, Gama rasgou em pequenos pedaços o papel que continha a ácida crítica tão habilmente por ele arquitetada e jogou-os ao vento. Em seguida, sorvendo um gole de seu aperitivo, murmurou, resignado: “Esse inconsciente que suba!”
Marcelo Gama conseguiu abrir mão do ato de tentar destruir, ou, ao menos, chacoalhar uma reputação. Foi estoico. Heroicamente, refreou os ímpetos agressivos que assomam de tempos em tempos ao espírito de quem é humano. O Gama engoliu em seco seu fel e imortalizou civilidade. Ah, que falta nos faz uma gama de Gamas assim, um século depois!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 1 de abril de 2019)