segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Reflexos de um fixo olhar


O bom da vida é que as surpresas sempre estão à espreita a dois passos antes de qualquer esquina, e, para o bom aprendiz, basta estar atento para seguir acumulando experiências e lições de vida com o passar dos anos. Muito mais do que o futebol (que muitos definem como uma representação lúdica do viver), a vida em si é a verdadeira caixinha de surpresas. Algumas assustadoras, outras preocupantes, claro, o fato é que podemos aprender e absorver ensinamentos com todas as espécies de surpresas que o andar da vida nos oferece. Mas óbvio que preferimos sempre as boas e positivas ou, no mínimo, aquelas que ensinam sem grandes dores.
Dia desses fui alvo do estalar de uma dessas surpresas específicas, manifestada durante um prosaico e despretensioso passeio de mãos dadas com minha esposa pelos corredores atribulados de um centro de compras da região, motivados pela necessidade de buscarmos in loco a inspiração necessária para a aquisição dos presentes natalinos com os quais desejamos regalar a lista dos entes queridos presenteáveis, seguindo à risca a tradição. Andávamos a esmo vislumbrando as lojas e as gentes quando, em determinado momento, detectei um olhar mais atento e fixo da esposa sobre minha pessoa. O que havia? O que em mim lhe havia chamado a atenção? Meu cabelo desgrenhado? Não, não deveria ser isso, pois, conforme o costume, ela não perde tempo em externar seu desagrado relativo ao crescimento desordenado de minhas cada vez mais escassas madeixas. Não haveria de ser o cabelo. O que seria, então? Seguimos, eu com a dúvida, ela com os olhares.
Mais adiante, ela voltou a me olhar fixamente, os olhos brilhando, uma luz cintilante iluminava sua face, que na minha repousava. Teria ela sido possuída de súbito por uma irresistível sensação natalina que lhe embevecia a alma, lhe reativava e resgatava uma profunda paixão semelhante àquela dos primeiros anos de relação? Assim, de repente, sob a trilha sonora dos pequeninos sinos de Belém a bater?  Aqueles olhos em mim estariam a revelar um processo de redescobrir no outro os sentimentos mais doces e ternos que às vezes deixamos sufocar devido ao atribular do cotidiano? Olhei de volta a ela, sorrindo, e inquiri: “Que foi, amor”? Ao que ela respondeu: “Fica mais prá trás um pouquinho, pra eu poder ver as vitrines, por favor”.
Lição advinda da surpresa: nos shoppings, deixe sempre a esposa (namorada, companheira, noiva) andar no lado junto às vitrines. Não lhes atrapalhe a vista de encantamentos interpondo a imagem de sua cara batida. E deixe-as felizes. Simples assim.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 24 de dezembro de 2018)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Grave dilema na hora do chá


Fazia tempo que elas não se manifestavam, achava até que haviam me esquecido ou, na melhor das hipóteses, me perdoado pelos erros do passado, só que não: ela seguem vivas, vívidas, na ativa e atiladas, como sempre, e, ao que tudo indica, sustentando um renovado asco mesclado com ojeriza pelos textos de segunda que pratico aqui neste espaço já há quase uma década, indiferente ao fato, tantas vezes externado por elas, de que não possuem mais o fôlego necessário para acompanhar do início ao fim a extensão quilométrica de alguns dos períodos que me ponho a escrever, permeando intercalações com vírgulas, traços e ponto-e-vírgulas, que lhes sacrificam os pulmões e lhes desatinam a capacidade de compreender que diabos, afinal, eu queria dizer desde o começo da frase. Nem sempre escrevo assim. Mas não adianta: as senhorinhas que se reúnem às tardes de sexta-feira para tomar chá e desancar minhas crônicas seguem firmes no propósito de um dia conseguirem me emendar, e, atualizadas tecnologicamente como são, enviaram-me um whatsApp preocupante, dia desses.
Em poucas e certeiras palavras, informam estarem desasadas com a insistência com que eu abordo aqui, nestas mal-digitadas linhas, a questão (segundo elas, irrelevante e desprovida de interesse sociológico e antropológico) da temperatura ideal para servir e degustar o sagu, essa especiaria típica regional que a maioria dos nativos afirma apreciar em condições quentes ou mornas e que, na prática, é oferecido nos restaurantes frio ou gelado, bem ao gosto explícito deste escriba portador de crônicos maus gostos culinários, temáticos e redacionais. Nas entrelinhas do whats, explicitam um convite (que logicamente não aceitarei, pois que o medroso morreu mais tarde) para comparecer a uma degustação às cegas de sagu, quando disporão à minha frente quatro tigelas repletas com o doce e eu serei instado a definir qual é a que contém sagu frio, qual a que tem sagu gelado, a de sagu morno e a com sagu quente. Tudo muito fácil, mas desconfiei da parte em que elas exigem me colocar uma venda nos olhos. Eu, hein!
Temeroso e prudente, penso em banir o tema do sagu no próximo ano, voltando minhas atenções a questões menos polêmicas como o nível de textura adequado para a obtenção de um bom Chico balanceado ou a quantidade aceitável de grumos na produção de um creme branco razoável. Um bom cronista de segunda sempre é capaz de encontrar temas relevantes que não afetem sensibilidades e papilas alheias. Feliz Natal e saborosos panetones (de chocolate ou com frutas cristalizadas?) a todos!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 17 de dezembro de 2018)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Ubuntu e a chave do Graal


Que tal, madama, aproveitarmos esta crônica de segunda para iniciar a semana com os pés direitos (o seu e o meu), refletindo sobre o que se pode depreender a partir de um continho alegórico? Sim, a senhora está certa: alegoria é a apresentação de uma ideia de forma figurada, tipo, dizer uma coisa mostrando outra coisa. Isso! Então, vamos lá: nosso continho alegórico evoca as antigas lendas medievais envolvendo um dos mais afamados cavaleiros da Távola Redonda, que eu sei que a senhora gosta dessas coisas de espadas e brumas, e damas e sagas, e galanteios e cortesias, e capas e véus, caras e coroas, escudos e lanças.
Parsifal, nosso destemido cavaleiro andante, perambula pelo Reino de Avalon montado em seu cavalo (cavaleiro mais cavalgante do que andante, mas vá lá) e ensanduichado em sua armadura ataviada com elmo e espada, à procura do Graal. O Graal, como a madama sabe, é o cálice sagrado no qual Cristo teria celebrado a Santa Ceia e que os cavaleiros medievais procuravam incansavelmente nas antigas sagas, com a esperança de, ao encontrá-lo, conquistarem grande poder. Ao longo da jornada, o próprio cavaleiro vivenciava uma profunda transformação interior, independentemente de encontrar ou não a relíquia. Pois bem, Parsifal, em certo momento de sua busca, depara subitamente com o Castelo do Graal (cavaleiro dos mais sortudos) e penetra em seus domínios. Lá, detecta que o reino, apesar de possuir o Graal, está decrépito, caindo aos pedaços, da mesma forma que o soberano encontra-se fraco e adoentado, à beira da morte. Estupefato, Parsifal emudece diante da cena e vai embora, sem fazer a pergunta-chave que restabeleceria o esplendor do reino e a saúde do rei.
Burro, esse menino, pois mais tarde, quando percebe qual pergunta deveria ter feito, não consegue mais encontrar o caminho de volta para o Castelo do Graal e fica vagando por anos em meio às brumas de Avalon. Até que, pimba, reencontra de súbito o Castelo do Graal, penetra lá de novo e, dessa vez, faz a pergunta certa ao rei: “Tio, o que te aflige?”. Agora, sim, o reino volta a ter vida, o monarca se recupera e Parsifal é sagrado o novo Rei do Graal. Tudo porque aprendeu o valor poderoso da empatia, a capacidade psicológica de sentir o que o outro está sentindo e ter compaixão por ele, demonstrando importar-se.  A tradição sul-africana emprega o termo “ubuntu” para designar o sentimento de humanidade para com os outros. Nossos reinos contemporâneos talvez precisem de doses cavalares de ubuntu para evitar a decrepitude a que podem estar sujeitos, não acha, madama?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 10 de dezembro de 2018)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O real valor de um presente


Matheus Monteiro é o nome de um jovem cidadão brasileiro que ganhou as páginas do noticiário na semana passada. Morador da periferia de Bragança Paulista (SP), ele comemorou seu aniversário de 12 anos na quarta-feira, dia 28. Um dos presentes mais significativos que recebeu veio de um tio, que lhe deu a quantia de R$ 35,00 para que ele fizesse o que quisesse com o dinheiro. Matheus não pensou duas vezes e decidiu destinar a verba para seu colega de escola e grande amigo, Iago Oliveira, que não poderia participar de uma excursão promovida pela escola, por seus pais estarem desempregados e não disporem da quantia, vital para a manutenção básica do cotidiano da família, composta ainda por mais quatro irmãos. O valor total do passeio que levará a turma da quinta série de uma escola municipal paulista amanhã, terça-feira, para dois museus em São Paulo, é de R$ 45,00 por aluno. Os R$ 10,00 faltantes na quota de Iago, o pequeno Matheus integralizou solicitando diretamente com sua mãe, que anuiu.
Matheus e Iago, além de colegas e amigos, são vizinhos e caminham juntos de suas casas até a escola todos os dias, há quatro anos. Na quinta-feira passada, um dia depois do aniversário de Matheus, a dupla rumou direto à sala da diretora, com a missão de solucionar a presença de Iago na lista dos alunos que participarão da tão sonhada excursão. Matheus chegou perguntando se ainda era possível inscrever Iago na lista, e depositou os R$ 45,00 em cima da mesa da diretora, em um montinho de notas de R$ 10,00, R$ 5,00, R$ 2,00, retiradas do bolso. A diretora quis saber de que forma Matheus havia obtido o dinheiro e, ao ouvir o relato, inscreveu prontamente Iago na lista, para a alegria de ambos. Dessa forma, Matheus terá como presente de aniversário a preciosa e inestimável companhia do grande amigo Iago nas visitas ao Museu Cultural e Educacional Catavento e ao Museu do Futebol em São Paulo. Isso não tem preço!
Devido a seu ato de altruísmo (e de cidadania, e de humanidade e de coração), Matheus ganhou, na escola, uma Medalha de Atitude Solidária. E também recebeu de volta os R$ 45,00, pois a instituição decidiu custear o passeio de Iago. Os dois estão felizes, e Iago poderá ajudar Matheus, no passeio, a carregar sua mochila, recheada com dez sanduíches de mortadela, que Matheus pediu para sua mãe preparar. Não, ele não é comilão. É para oferecer a algum coleguinha que eventualmente não tenha lanche. Não é preciso inventar crônica quando a vida real ainda se mostra capaz de proporcionar a renovação da esperança na espécie humana.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 3 de dezembro de 2018)

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

"Meu Deus, há quem o ame!"


A jovem francesa Charlotte Corday (1768 – 1793) nutria um ódio mortal por Jean-Paul Marat (1743 – 1793). Odiava-o a partir das profundezas de seu coração e de suas convicções pessoais. Educada em um convento católico e criada no seio da aristocracia, Charlotte via-se diretamente atingida em seus valores pela Revolução Francesa, que fizera seu mundo ruir a partir de 1789 com o movimento capitaneado por Marat e seus principais parceiros, como Danton e Robespierre. Monarquista, sofria com as notícias da morte do rei Luís XVI e das execuções dos contrarrevolucionários na guilhotina. Ela era uma contrarrevolucionária e odiava Marat, em quem personificava a manifestação do mal.
Marat era o mal e precisava ser eliminado. Foi com essa convicção que Charlotte bateu à porta da casa dele em uma noite de sábado, em Paris, 13 de julho de 1793, aviada de um punhal e de uma convicção. Por meio de um subterfúgio, adentrou os domínios do poderoso e afamado líder revolucionário, encontrando-o nu na banheira, onde obtinha alívio imerso em banhos preparados para combater a doença dermatológica que o afligia. Apresentou a ele uma lista contendo o nome de contrarrevolucionários e, ao ouvi-lo dizer que os enviaria à guilhotina, não titubeou: apunhalou Marat no peito, assassinando-o ali mesmo. Quatro dias depois, Charlotte era julgada e guilhotinada por seu crime, entrando para a História.
François Ponsard (1814 – 1867), poeta e dramaturgo francês, revisitou o drama real em uma peça intitulada “Charlote Corday”, que estreou em Paris em 1850. Nela, a poderosa cena da morte de Marat dá lugar à liberdade poética quando o autor atribui a Charlotte um breve momento de hesitação frente ao ato que está prestes a cometer. Ao bater na porta do endereço de Marat, pronta para matar aquele em quem via a personificação da monstruosidade em pessoa, Charlotte é atendida pela esposa do líder revolucionário. Chocada, ela recua e exclama para si mesma: “Meu Deus, é a mulher dele, há quem o ame!”. Por perceber haver quem amasse aquele a quem considerava um monstro, Charlotte quase abre mão de seu intento, mas acaba levando-o a cabo ao ouvir Marat determinado a condenar à guilhotina os desafetos da Revolução. O drama, no fim, obedece aos fatos históricos. Mas as entrelinhas do texto artístico sugerem uma reflexão concernente: sempre há quem ame os nossos desafetos, que, apesar de tudo, também são humanos. Precisam ser combatidos no campo das ideias, claro, mas não podemos nos rebaixar a agir, frente a eles, como os  monstros que os julgamos ser. Afinal, também sempre há quem nos ame.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 26 de novembro de 2018)

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Lasca de sonho à beira-mar


O menu era tentador, com todos os ingredientes presentes: sol radiante, feriado de meio da semana pedindo para ser transformado em feriadão. Uma oportunidade impossível de ser desperdiçada, afinal, a vida é curta, polvilhada de pedras no meio do caminho, e, para enfrentá-las e pulverizá-las, é preciso saber aproveitar os raros momentos de deleite nos quais recarregamos as forças vitais para seguir adiante. Assim sendo, partiu praia!
O porta-malas recheado com o acotovelar das esteiras, dos chapéus, dos guarda-sóis (para tecer latifúndio de sombra na areia onde abrigar as alvuras de minha pele de fada), das cadeiras dobráveis, das sacolas térmicas, dos maiôs e congêneres, das toalhas, das toalhonas e das toalhinhas, dos tubos de protetor solar e dos cremes hidratantes a envolverem o ambiente do carro naquele característico perfume praiano cujo resultado é a produção de uma imediata sensação de paz e descompromisso, em pleno novembro. Tem coisa melhor? Ah, tem, e é isso que vou relatar a seguir.
Soberanamente estabelecido em meus domínios praianos na areia, guarda-sol plantado e sombreando, atarraxado o sentante na cadeira e livro no colo, pus-me a observar o mar e a paisagem, extasiado. Eis que de repente, surgida por detrás de minhas praianças, concretiza-se a fantasia latente nos mais recônditos pensamentos de um homem sentado à beira-mar: uma bela loira, com os atributos de sua sensual feminilidade engaiolados dentro do par de cândidas peças do biquíni, se aproxima e me pede, em voz cantada, para que eu espalhe protetor solar em suas costas. Ato contínuo, ela se agacha à minha frente, expondo a superfície da delicada e morna pele que terei de espalmar em movimentos circulares espalhando o creminho. Resoluto, dou início ao processo, administrando a velocidade da mão espalhante para que não o faça tão rápido a ponto de impedir-me de usufruir o momento mágico, e nem tão lento que cause estranhezas. É preciso também aplicar um certo equilíbrio na pressão do toque: nem tão brusco a ponto de assustar e nem tão delicado a ponto de não fazer sentir a mão que espalha nas bronzeantes costas espraiadas. Estou imerso nessas reflexões, desempenhando dedicadamente a delicada tarefa, quando ouço-a dizer, em sua vozinha de praia: “Uma das tuas unhas está lascadinha, não é mesmo, amor?”.
Meu deus do céu, que mico: eu estava raspando a pele dela! O castelo de areia teria desabado por completo, não fosse nossa risada cúmplice e em sintonia.  Afinal de contas, esposa que é esposa nunca deixa nada passar em branco, não é mesmo?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul,  em 19 de novembro de 2018)

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Oumuamua, o fake estelar


Bah, mas que pena! Eu já estava todo faceiro, abanando o rabinho frente à notícia bizarra e encantadora, e agora vem o lava-jato d´água estragar tudo. Já tinha até conseguido decorar o nome da coisa: “Oumuamua”. Passei uma tarde treinando, confesso, mas estava convicto de que valia a pena, afinal, tratava-se da mais importante revelação da História da humanidade: estávamos sendo visitados por um artefato estelar que passava a apenas (?) 30 milhões de quilômetros da Terra (sabe a distância entre o centro de Caxias e Vila Cristina?... pois é... mais do que isso, madama... bem mais...), e que, segundo uma dupla de renomados astrônomos norte-americanos, havia sido fabricado zigulhões de anos atrás, por inteligências extraterrestres habitantes do espaço-além! Oumuamua era a prova cabal e esperançosa de que existe, sim, vida inteligente fora da Terra! Ou, para sermos fieis à realidade dos fatos: de que existe vida inteligente no universo, e ela se encontra mesmo é fora da Terra. Oumuamua era a prova! Só que não!
Oumuamua, uma espécie de asteroide diferente dos outros asteroides, em forma de charuto alongado, viajando a uma velocidade surreal e apresentando um comportamento diverso do padrão adotado pelos asteroides que são apenas asteroides mesmo, o que colocou pulgas atrás das orelhas dos astrônomos, sempre tão céticos e desconfiados. Astrônomos são diferentes de astrólogos e de ufólogos. Astrônomos, a princípio, optam pelo “não”. Mas, dessa vez, com o Oumuamumnumuma... quer dizer... já esqueci... deixa soletrar que eu acerto... dessa vez, com o Ou-mu-a-mua... isso, com o Oumuamua, a coisa era diferente. Tudo estava diferente, e a astronomada começou a achar que finamente podia relaxar e dizer “sim”! Sim, sim, siiimmm, estamos sendo visitados por um objeto criado por inteligências extraterrernas e esse tareco é o tal do Oumuamununu..., enfim, aquela pedrona que passou raspando e fazendo vento a apenas 30 milhõezinhos de quilometrinhos de distância de nossa velha e boa Terra!
Só que não. Primeiro, a coisa passou meio que despercebida, tão envolvidos estávamos em nossas tradicionais questiúnculas terráqueas equilibradas entre fake news e verdadeiras-news-de-dar-enxaqueca. Segundo, que o Oumuninununino não era alienígena coisa nenhuma, era asteroide mesmo, não foi fabricado por homenzinhos verdes em Alfa Centauro. Não, madama. Os inteligentes do Universo continuamos sendo nós, mesmo, por enquanto. Até que um redentor lava-jato venha um dia nos colocar em nosso devido lugar universal. Até lá, paciência: segue sendo tudo conosco...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 12 de novembro de 2018)

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

A lógica de achar o pepino

As coisas têm lógica, madama, as coisas sempre têm alguma lógica, mesmo que seja oculta, mas têm. Cabe a nós, viventes, aprendermos a aguçar os sentidos e tentar detectar as lógicas (às vezes aparentemente ilógicas) existentes por trás de algumas coisas que nos intrigam. Por mais inocentes que pareçam à primeira vista, algumas atitudes e padrões podem estar sendo tomados com a intenção de obedecer a lógicas ocultas que atendem aos interesses de alguns setores. Algumas, de consequências inocentes e admissíveis; outras, nem tanto. É nessas outras que mora o perigo.
Atentei para isso dia desses quando fui ao supermercado cumprir uma lista de compras que resultaria no prato especial definido para o jantar. Na seção dos hortifrútis, fui dirigindo o carrinho por entre os setores, atrás das maçãs, dos limões e dos pimentões necessários para preparar o acepipe que logo mais deleitaria as gustativas papilas minhas e da esposa (os demais ingredientes já estavam em casa, à espera, conforme a madama já suspeitou). Foi no momento da pesagem dos produtos, junto à balança administrada pela sorridente funcionária postada ali no meio do setor, que percebi haver adquirido somente produtos de cor verde (a maçã era verde, o pimentão, também, bem como os limões). “Tudo verde hoje!”, exclamou a funcionária. “Tudo verde, mesmo!”, repeti, surpreso. E saí dali pensando...
Não seria mais fácil para o consumidor se os supermercados agrupassem por cores os produtos hortifrutigranjeiros nesses setores? Ali num canto, os verdes (além dos já citados, as alfaces, a rúcula, as melancias intactas, os pepinos, as abobrinhas...); ali no outro, os vermelhos (as maçãs, os pimentões vermelhos, os moranguinhos, as melancias cortadas, as beterrabas...); adiante, os alaranjados (as laranjas, as abóboras, as cenouras, os mamões...); ao lado, os amarelos (bananas, carambolas, mangas, os pimentões amarelos, mandioquinhas em cubos...) e assim por diante? Economizaríamos tempo indo direto à cata de nossas necessidades por cores, ao invés de perder tempo, como eu, feito mosca tonta, em busca de visualizar onde diabos meteram dessa vez o repolho-roxo?

Mas não, né madama, a lógica é exatamente essa: induzir o consumidor a passear por entre todos os setores, quando então estará sujeito a deparar com uma brilhante e convidativa caixa de suculentas peras que não estavam na lista, mas que irresistivelmente terão de ser levadas para casa. Essa a lógica, madama. Nesse caso, inocente, válida, competitiva, compreensível, simpática, até. Mas tem outras, e essas outras... 
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 29 de outubro de 2018)

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Nem alho, nem água benta


Não sou afeito a abordar temas de forma sequenciada neste espaço, madama, afinal, esse tipo de coisa me parece que não cai bem em mundanas croniquinhas de segunda. Mas, veja bem: quando menos se espera, pode surgir uma exceção no meio do caminho e, se isso acontece, o que se faz? Ora, excetua-se! Excetuemos, então, pois! Dias atrás tergiversamos aqui, a senhora e eu, sobre a questão da raiva e concordamos na necessidade de aprofundar conhecimentos sobre o tema, que nos parece muito pertinente nesses tempos que estamos vivendo na nossa pátria amada Brasil, não foi? Pois é. Tão pertinente e tão premente que daremos sequência a nossos autodidatas estudos sobre o assunto nesta mundana de segunda. Assim sendo, partiu exceção!
A raiva, essa doença comportamental altamente contagiosa que está grassando de forma epidêmica no país de cima a baixo, do centro à periferia, da esquerda à direita, começa a atingir proporções incontroláveis, haja vista a contaminação que se dá em todos os seres, independentemente de raça, credo, posição política, idade, grau de instrução, gênero, sexo, altura, peso, time do coração, naturalidade, profissão, cor dos olhos, comprimento do cabelo. Nada, mas nada parece servir de antídoto contra o alastrar da doença. Seres raivosos pululam nas redes sociais, na internet, no trânsito, nas calçadas, nos estádios de futebol, nos restaurantes, nas esquinas, nos clubes, nas famílias, nos bosques, nos aviões... Não existe abrigo, não há bunker capaz de manter afastada a moléstia, madama minha.
Mas como lidar com os raivosos? Vejamos. Vampiros, por exemplo, são seres muito raivosos. Mete-se alho e gruda-se uma cruz na testa deles para espantá-los. Lobisomens, raivosíssimos, escorraçamos com balas de prata. Demônio babão possuindo o corpo de jovem inocente? Tacamos um “vade retro”, aspergimos água benta e exorcizamos o raivosinho. Para deter cachorro raivoso, chamamos a carrocinha (ainda existe?) e damos injeção no pobrezinho, afinal, esse é vítima irracional, não adota a moléstia por opção, como o fazem seus primos mamíferos humanos.
E com pessoa raivosa, madama, o que se faz? Nada. Não há o que fazer. Se você tentar acalmar, a raiva dela só aumentará. Se tentar argumentar, ela espumará de raiva. Se tentar se defender, será o pretexto para ela atacar. A raiva, madama, é cega, é surda, mas não é muda. Raiva grita. Raiva é apavorante. E não só grita: mata. Mata a civilização, conquistada a árduas penas ao longo dos milênios. Frente à raiva humana, madama, só dou um conselho: fique longe, longe, longe...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 29 de outubro de 2018)

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Hidrofobia é coisa que pega


Em tempos espinhudos, é preciso redobrar os cuidados, não é mesmo, madama? Um cronista mundano que o diga, uma vez que, para ser mal interpretado, basta que leiam somente o título de seus textos para que o bombardeio agressivo venha de cima, de baixo, da esquerda e da direita, tudo na mesma intensidade e raiva. Não é fácil, madama, é preciso pisar em ovos, e ainda cuidar para não ser tachado de opressor de ovinhos pelas patrulhas pró-ovos, e vá a senhora tentar explicar que se tratava apenas de uma metáfora! Nada apazigua a ira e a cegueira de quem parte de bases fundeadas na raiva, madama, nadinha. Mas urge tentarmos ajudar a elucidar as coisas, pois isso faz parte das atribuições do cronista, ainda que mundano. Sendo assim, vamos tratar de ciências.
Falaremos de uma questão pertinente aos dias de hoje, que evoca um cruzamento das ciências psiquiátricas e biológicas. Falaremos da raiva. Nesses tempos raivosos, é importante compreender as coisas, a fim de obter instrumentos capazes de fornecer proteção contra elas. É preciso, pois, estudar a raiva. Chamada também de “hidrofobia”, a raiva, quando abordada pela psiquiatria, evoca um distúrbio caracterizado pelo temor doentio da água e dos elementos líquidos em geral. O personagem Cascão, criado por Maurício de Sousa, representa bem a parcela da população que sofre desse transtorno. Cascão não foge da água, da chuva e do banho porque é desasseado, mas, sim, porque, talvez, sofra de hidrofobia. Já pensou nisso, madama? Pois é, e a gente aqui, julgando o pobrezinho do Cascão. Somos rápidos no gatilho em julgar quando movidos por preconceito e raiva, né, madama? Aquela outra raiva...
Já biologicamente falando, a hidrofobia, também conhecida como raiva, é uma doença infecciosa que afeta os mamíferos, causada por um vírus que compromete o sistema nervoso central dos contagiados. Pode ser transmitida pelo ser infectado ao sadio por meio de mordidas (cães), arranhões (gatos), lambidas (morcegos) e xingamentos (seres humanos). Chama-se popularmente de “raiva” devido ao comportamento agressivo que os indivíduos adotam após infectados. Cães antes dóceis passam a morder indiscriminadamente e a ter alucinações. Gatos também. Seres humanos, então, manifestam os sintomas de formas variadas (todas perigosíssimas). E são difíceis de conter. Não dá para negociar com quem tem raiva, madama. Não há argumento. É preciso manter-se longe, longe, longe... E cuidado: é um vírus altamente contagioso. Depois, a senhora não venha dizer que essas crônicas de segunda não servem para nada...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 22 de outubro de 2018)

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Nem Haddad e nem Bolsonaro


Sim, nem Haddad e nem Bolsonaro. Ao findar da campanha eleitoral deste marcante ano de 2018, o maior derrotado terá sido o processo civilizatório no Brasil, representado por um batalhão de vítimas. A primeira delas: a qualidade do debate de ideias. Morreu o debate de ideias. Discutir, de forma madura, propostas de governo e de sociedade entre os eleitores foi substituído pelo extravasar de veneno, de ódio, de fel, de amargor, de raiva e de violências. Convencer o outro que pensa diferente foi trocado por destruir o outro que ousa pensar diferente. Enterrou-se a civilidade, a grande perdedora das urnas em 2018.
O resultado final dessas eleições, seja ele qual for, trará embutido o recado de que os opostos se repelem e que a sociedade brasileira, em sua maioria (salvo as raras exceções de praxe), optou por acolher uma postura estranha de que é lícito endemonizar e massacrar os contrários. Conviver com a diferença é prática que vem sendo varrida para a lata do lixo no país pelos brasileiros. Ninguém está nem aí para qualquer espécie de ambiente, seja ele natural ou social ou emocional ou humano. O negócio é jogar no ventilador, se abaixar e ver no que dá. A molecagem tomou conta. Adotou-se a postura do gato malandro, que chacoalha a escada e é o primeiro a escapulir porta afora a salvar o próprio couro assim que a estrutura desaba, sem arcar com as consequências do que fez, eximindo-se das responsabilidades. Um país de gatos malandros, de todos os matizes, sob todas as bandeiras, camuflados em todos os discursos. Todos.
Nesse contexto, a multidão de perdedores é incontável. Perde o passado, que parece não ter mais relevância em seu papel de ensinar com os erros ancestrais. Perde o presente, em que o convívio fraterno está comprometido pelo espraiar do ódio e da intolerância. E perde o futuro, que se embasa em estruturas inumanas, incivilizatórias, carcomidas pelo cupim do rancor e das más intenções mútuas e recíprocas. O que esperar de uma sociedade que aposta na desagregação como alternativa? Que opta pelo ódio, pelo veneno, pelo desamor, pela arrogância, pela surdez coletiva, pela desarmonia, pela violência manifesta em todas as formas possíveis? O suicídio social é completo quando as nuvens pesadas vêm de cima, de baixo, da esquerda, da direita e do alto. Quisera poder ser mais leve nesta crônica de segunda. Lamento. Não deu. Depois dessas eleições, tentarei renovar meus votos, no Natal e no Ano Novo, pela retomada da convivência civilizada entre as gentes desse país, na esperança imorredoura de não brindar sozinho.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 15 de outubro de 2018)

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

E de sobremesa, um paradoxo

Nestes tempos bicudos, um cronista, por mais mundano que se apresente, não pode se furtar de oferecer a seus leitores alguns momentos de reflexão sobre temas relevantes para a compreensão do mundo que nos cerca, fazendo jus à essência do conceito “crônica”, oriundo do termo grego “chrónos”, usado para designar o tempo (o tempo cronológico, madama, não aquele volúvel e indisciplinado que tanto atazana os meteorologistas). Se a crônica induz a debruçar um olhar sobre as coisas de nosso tempo e de nosso mundo, urge que o cronista cronique reflexivamente vez que outra, a fim de manter viva a chama do interesse e justificar sua permanência no espaço que ocupa. Lá vamos nós, então, hoje, debater sobre um paradoxo que, sazonalmente, assola os pensamentos deste dedicado cronista de segunda.
O leitor pertinente e a leitora sagaz logo esperariam, frente ao anunciado, que o cronista estaria prestes a compartilhar alguma reflexão reveladora a respeito, por exemplo, do famoso “Segundo Paradoxo de Zenon”, que fascina a humanidade ao longo dos séculos, desde que o pensador grego Zenon de Eleia (490 a.C. – 430 a.C.) o enunciou, para queimar as pestanas de quem se dedica ao raciocínio lógico. O paradoxo tem como personagens Aquiles e a Tartaruga, ambos prestes a disputar uma corrida. Como Aquiles corre mais rápido do que a Tartaruga, os juízes posicionam o animal alguns metros à frente de Aquiles, para que tenha alguma vantagem. Dada a largada, o que Zenon propõe em seu Paradoxo é que Aquiles jamais alcançará a Tartaruga, porque, quando ele atingir o ponto de partida da Tartaruga, ela já terá se deslocado até um ponto mais adiante, e, quando Aquiles passar esse ponto, também a Tartaruga terá se deslocado, e assim até o infinito, configurando o paradoxo do movimento.

Mas não é nada disso, madama, o meu paradoxo é mais prosaico, serrano e caseiro, e intitula-se “O Paradoxo do Sagu Quente”. Pensador reflexivo que sou, fico sempre a me perguntar por que razão os serranos afirmam, em sua esmagadora maioria, preferir o sagu quente ao sagu gelado, se a iguaria nos é ofertada nos restaurantes e nos buffets a quilo sempre em temperatura ambiente? Como podem preferir quente se é servido frio? A preferência, madama, não se sustenta e não encontra amparo legal (no sentido de “bacana”). Exceto, pois, em Vila Flores, onde descobri, dia desses, um surpreendente restaurante que serve o sagu em uma panela posicionada sobre um réchaud, mantendo-o quente e deitando por terra a essência desse paradoxo de segunda. Tá, mas eu prefiro frio.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 1 de outubro de 2018)

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Horas e horas pra burro!


Olha só, madama, vamos dar, juntos, uma pensadinha? Hoje este mundano cronista que vos escreve estas mal digitadas linhas de segunda está reflexivo, sofrendo da síndrome de espelho retrovisor, porém, pretendendo estender o olhar para adiante. Vamos nessa? Pois, então, veja só, vou apresentar alguns números, pois sei que medidas volumosas costumam deixá-la assombrada e causar-lhe espanto. Espante-se então, madama, com as que enfileirarei a seguir e, na sequência, una-se a mim, em reflexão.
Nosso incansável Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que conhecemos pela sigla IBGE, publicou recentemente um relatório apontando que a expectativa média de vida do brasileiro chegou aos 76 anos. Um grande salto quantitativo se pensarmos que, na década de 1960, a previsão de longevidade nacional esbarrava na faixa dos 54 anos, essa flor da idade em que a senhora e eu hoje navegamos lépidos e faceiros, às vezes mais faceiros do que lépidos, verdade. Pois bem. Adiante. A senhora, madama, parou para pensar que esses 76 anos possíveis, que é a expectativa (claro que almejamos ultrapassar em muito essa meta, naturalmente), representam 27.740 dias? É dia pra burro, não é mesmo? Quer dizer, não sei a expectativa de vida dos burros, quis só usar um clichê ilustrativo de espanto, a senhora perdoe o mau jeito. E se transformarmos esse montante em horas, os 76 anos de vida nos oferecem 665.700 horas, que vamos nos permitir arredondar para 666 mil voltas do ponteiro grande do relógio. É hora pra burro, né, madama? Ops, desculpe, de novo.
Pois se temos uma expectativa de dispormos de uma média de 666 mil horas de vida, das quais, a grosso modo e via de regra, destinaremos um terço (ou seja, 222 mil horas) ao sono reparador de oito horas por dia, então, madama minha, chegamos à cifra assombrosa de 444 mil horas a serem plenamente vivenciadas despertos, ao longo de nossa brasileira expectativa de existência. Claro, bem sabemos, a madama e eu, que quantidade não implica qualidade, e sabemos também que o tempo passa voando, quando vemos, záz, foi-se um milhar de horas, e o que estivemos fazendo esse período todo, além de organizar escalações de times fictícios no smartphone e torcendo pela melhor voz do Brasil frente ao aparelho de tevê? Quatrocentas e quarenta e quatro mil horas, madama! É bastante, sim, mas voa. Mesmo assim, é o suficiente para decidir viver uma vida plena, que faça a diferença de forma criativa, cidadã e positiva, e não se restrinja a ser apenas um número a mais na contagem das gentes. Bom dia, madama. E boas horas.

(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 1 de outubro de 2018)

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

(Sobre)viver na Era da Ira


Depois da Era do Gelo, da Era do Fogo, da Era do Bronze, da Era dos Transportes, da Era das Comunicações, chegamos, enfim, à atual Era da Ira. Vivemos tempos turbulentos em que a sociedade optou espontânea e conscientemente pela adoção aberta e ampla dos sentimentos mais vis da psique humana como condutores de seu destino e pautadores de seu cotidiano. Odiar é a regra. Odiar é o mantra. Desconstruir, humilhar, agredir, reduzir, difamar, caluniar, injuriar, xingar, cuspir, esfaquear, estripar, pisar, gritar, ofender, ironizar, esmagar, torcer o pescoço, esculhambar, ferir, são os verbos do momento. Compete-se para ver quem acumula mais pontos na escala da ira.
A fórmula para transitar nessa espinhosa Era da Ira é simples, e está ao alcance (e sendo praticada) de todos, independentemente de idade, gênero, cor, raça, religião, escolaridade, conta bancária. A democracia do ódio está plenamente instalada. Ela se baseia em princípios básicos como a dedicação ao reducionismo tacanho e às generalizações rasas (“todos os que pensam e agem diferente de mim são isso ou são aquilo, e, na maioria das vezes, são tanto isso quanto aquilo e ainda mais aquiloutro”); o exercício diário da capacidade de xingar o próximo como não se deseja que xinguem a nós mesmos; o abandono da empatia pelo culto da “odiopatia”; a convicção de que todos merecem ser odiados, exceto nós mesmos, claro, porque nos imaginamos ungidos pelo cetro da verdade (e cegados pelas trevas do preconceito, da intolerância, do desamor e da barbárie).
Tudo isso revela apenas o tamanho de nossa insegurança interna, do medo de sermos o que somos, de nossa incapacidade imatura de nos relacionarmos com as diferenças, com o contrário, com o contraditório. Quem pensa e age diferente precisa ser eliminado, execrado, desconstruído. É o comportamento primitivo floreado pela roupagem enganadoramente perfumada da modernidade. O atual dedo nos teclados é a reconfiguração do ancestral punho no tacape. Homens e mulheres de cro-magnon fantasiados de carteira de motorista e diploma universitário, incapazes de camuflar o primitivismo bárbaro que molda e move suas almas bestiais. A barbárie, quando evocada como modelo de sociedade, como via aceitável a ser adotada, conduz a um só desfecho: o fim da civilização. A decadência do escopo social é clara e inexorável, a partir do momento em se opta pelo xingamento ao invés do debate inteligente, civilizado, fraterno, construtivo e transformador. A Era da Ira não veio para ficar. Veio para reduzir a pó qualquer possibilidade de permanência.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 24 de setembro de 2018)

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Um roteiro no mundo da lua


Nosso guia chamava-se Ítalo, mas só descobri seu nome ao pescar de ouvido uma conversa casual que ele travava com uma colega de jornada sentada no banco de trás, quando nos preparávamos para desembarcar na primeira cidade prevista no roteiro. “Ítalo”, pensei. Eu deveria ter desconfiado. Só mais tarde é que me dei por conta de que outra pista surgira logo na partida, assim que o ônibus amarelo pintado com vibrantes cores psicodélicas começara a rodar, saindo defronte à sede da Agência de Viagens Viajantes. “Fafner” era como haviam batizado o veículo, informou-nos o guia. Mas eu, distraído e ansioso pelo passeio, deixei por isso mesmo e entreguei o timão de meu destino naquela semana à condução de Ítalo e de Jules, o motorista que administrava as marchas de Fafner pelas quebradas da cosmopista transfigurada em infinita highway.
A primeira etapa da mágica e misteriosa turnê foi a cidade de Antares, na fronteira noroeste do Rio Grande do Sul. Depois do rápido city-tour, Fafner parou alguns minutos junto à pracinha central onde ainda existe o coreto em que se desenrolou o verissíssimo incidente. Dali, seguimos ao cemitério, mas não pudemos entrar porque uma nova greve dos coveiros estava sendo articulada e decidimos ir adiante, rumo a Maracangalha, onde adquirimos dúzias de chapéus de palha para presentear na volta os amigos e parentes a quem infernizaríamos com as sessões de fotos do passeio. Ítalo revelou ser amicíssimo do rei e por isso fomos recebidos com taças de espumante em Pasárgada, lamentando que Ciro não estivesse presente. Desviando da rota da Conchinchina, que fica à esquerda pela Estrada de Santos, rumamos a Sucupira, onde também questões relativas à inauguração do cemitério agitavam o meio político local, pelo que preferimos visitar o museu que abriga a famosa coleção de borboletas, antes que incendiasse.
Retornando ao Sul, passeamos pela singela Tapariu, onde nos deleitamos com a gastronomia à base de brócolis, e encerramos o passeio na vizinha Uvanova, presenciando a hospitalidade serrana adoçada com sagu quente para os conservadores e sagu gelado para os hereges. Ano que vem farei o roteiro internacional, guiado por Xavier, que inclui a cidade de Combray (onde degusta-se madeleines geradoras de sonhos nostálgicos), Macondo (onde se conhece a origem do gelo), uma romaria à Cantuária guiada pela Mulher de Bath, um banquete servido sobre uma ovalada távola em Albion e a infinita biblioteca de um mosteiro medieval italiano, em cujas galerias ronda um constante e indecifrável eco. Pois viajar é preciso.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul,em 17 de setembro de 2018)

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Em tempos de tanque cheio


Quando o combustível da marcha é o ódio, o final da jornada será o abismo. Sempre. Se esse mesmo ódio receber como aditivos vindos direto da bomba a intolerância, a soberba, a insanidade e a brutalidade, embaçando a visão do trajeto, o final da jornada será necessariamente o abismo. Sempre. Não importa a causa, que até pode ser, em essência, justa. A causa, por mais justa e legítima e louvável que seja, sucumbirá ao abismo se for conduzida pelo ódio, pela raiva, pelo rancor, pela desinteligência, pelo belicismo, pelo segregacionismo, pelo socar a mesa, pelo desamor. Não há causa justa que se sustente quando os pilares são fundeados sobre as areias movediças do fel e da estupidez. Nesses casos, à frente, no final do caminho, nada mais haverá a esperar do que a voraz beira do precipício, no qual sucumbirão todos os acólitos que concordaram em marchar sob o incentivo da raiva. Sempre.
Foi assim na Segunda Guerra Mundial, por exemplo. O combustível da marcha do nazismo (causa que, aliás, em nada consegue sustentar um pingo de defensibilidade por quem respeita os preceitos básicos da civilização), capitaneada por Hitler e sua camarilha de psicopatas, era nada menos do que o ódio animalesco e insano, inspirado por eflúvios claramente infernais. Ameaçando as estruturas da vida em harmonia entre os povos, as gentes e suas peculiares e encantadoras diferenças, Hitler e seu bando de bestas-feras obrigou o mundo civilizado a se aliar na “defesa de tudo o que fazia com que a vida merecesse ser vivida”, conforme resumiu o então primeiro-ministro britânico Winston Churchill, que liderou os ingleses na longa e sangrenta batalha contra o terror hitlerista que procurava mergulhar o mundo nas mais sórdidas profundezas do horror. Sim, porque o nazismo e seu ódio intrínseco representavam a antítese dos elementos que fazem a vida valer a pena ser vivida. Não há lugar para o ódio em uma vida que se almeje plena, construtiva, colaborativa e significativa. Nem um milímetro sequer. Nunca.
É interessante também assinalar que, dentro de seu claustrofóbico bunker, enquanto Hitler babava e surtava de ódio contra seus oficiais a cada eventual revés no desenrolar da guerra que travava contra o mundo, Churchill, por outro lado, incentivava seus aliados com palavras plenas de lucidez: “Ao fitarmos com olhar firme as dificuldades à nossa frente, podemos retirar uma confiança renovada da lembrança das que já superamos”. O final da História todos sabem qual foi. Afinal, cada um escolhe o combustível com o qual deseja encher o tanque de sua jornada.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 10 de setembro de 2018)

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Um chef que mete a colher


Essa onda de gastronomia gourmet, popularizada pela televisão, chegou ao cotidiano da singela e simpática Uvanova, aquela cidadezinha encravada no seio da Serra Gaúcha, vizinha a Tapariu e a Vila Faconda, revolucionando a forma de se relacionar com a comida entre as gentes dali. Jornalista em essência que este cronista de segunda jamais deixa de ser, sempre atento e alerta, detectei o surgimento em Uvanova de um chef ainda não descoberto pela grande mídia e que, em breve, alcançará renome nacional. Esta coluna antecipa uma exclusiva entrevista com o chef uvanovense Bambino Mêscolo, abordando com ele alguns conceitos da gastronomia contemporânea, em primeira mão aos leitores de segunda. Evoquei os conceitos da “nouvelle cuisine” e o chef soltou o verbo. Confira a seguir, sem censura:
O que é finger food, em sua opinião? “Nom gosto de expressões estrangeiras. Chamo de ‘dedom food’. É comida pra comer com as mão, para se lambuzar mesmo. Nos meus eventos, sirvo uma sequência composta por coxinhas fritas de galinha, rodelas de salame, cubos de queijo e até mesmo codeguim. Pode-se servir também fatias de polenta brustolada, mas tem de assoprar bastante antes quando for recém retirada da chapa quente, pra evitar queimar os finger dos convidados. Tem gente que confunde ‘finger food’ com o hábito de alguns garçons locais enfiarem os dedom drento da caçarola de sopa de anholine ao conduzi-la até a mesa dos clientes, mas nom é nada disso”.
Qual seu conceito de sobremesa gourmet? “Nada supera um bom tijolinho de mandolato, daqueles bem duro, de quebrar obturaçom e lotar sala de espera de consultório de dentista (um irmom meu é dentista, cobra pouco e aceita salame de adiantamento). Também tem o tradicional sagu que pode ser servido quente recém saído da panela ou em temperatura ambiente. Gelado nunca, porque as bolinhas brancas endurecem e engrumam, caem todas pro fundo da bacia e se separam do caldo. Só quem vem de fora consegue gostar de sagu gelado”.
Defina salada césar. “Isso é baboseira. O Césaro, filho do Beppe, nem sabe fazer salada. Nom existe salada do Césaro. Telefonei pra ele pra ver que salada ele gostava e ele disse que gosta de radicci cotti. Entom, salada do Césaro é radicci cotti com gema de ovo cozido drento. Ele também gosta de mix de folhas verdes com agriom e pissacán”.
O que é gastronomia fusion? “É a famosa gastronomia de fujom. É comida que faz gente de estômago fraco fugir correndo pela porta afora, tipo mocotó bem temperado ou bucho apimentado. Afinal, gastronomia gourmet tem de ser gastronomia de comer. Buon apetitto!”
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 3 de setembro de 2018)

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Ei, tudo vai melhorar, Jud!


O que você poderia esperar de um cara chamado Jud Fry, se você souber que ele desconhece seus pais verdadeiros, foi criado a mão de ferro pela família de seus patrões em um rancho interiorano, possui parca educação formal, trabalha pesado de sol a sol e é dotado de um temperamento taciturno, rude e agressivo? Primeiro, você vai manter distância regulamentar dele, claro. Depois, vai imaginar que uma criatura dessas não poderá jamais inspirar nada de bom no mundo e, mais tarde, terá de engolir seus próprios pensamentos, porque não é bem assim que as coisas são. De que diabos estou falando? Siga lendo, estimada leitora, pertinaz leitor, porque, como sabemos, isto é uma crônica de segunda e surpresas espreitam a dois passos da esquina.
Jud Fry, em primeiro lugar, não existe. Ou melhor, existe, porém, só no âmbito da ficção. Ele é um dos personagens principais de uma trama muito popular nos Estados Unidos nas décadas de 1940 e 1950, intitulada “Oklahoma!”, que virou peça teatral musical em 1943 e acabou transposta para o cinema em 1955. A história é simples: Laurey Williams é a filha do dono de um rancho no qual trabalha o bom moço conhecido como Curly. Os dois se apaixonam, porém, entre eles, interpõe-se o malévolo Jud, que também ama Laurey e faz o diabo para impedir que o casal de apaixonados fique junto. Jud, pois, é o vilão da história.
No entanto, alguns anos mais tarde, ele serviu de inspiração para o músico britânico Paul McCartney solucionar uma passagem de uma das mais populares canções dos Beatles de todos os tempos: “Hey Jude”, lançada em 26 de agosto de 1968, exatos 50 anos atrás. Paul compôs a música pensando em levar conforto a Julian Lennon, então com cinco anos de idade, que se via deprimido frente à separação de seus pais, John Lennon (que agora amava Yoko Ono) e Cynthia Powell. “Hey, Jules”, primeiramente escreveu Paul, para conferir a sonoridade e o ritmo adequados ao andamento melódico da canção (ao invés de “Hey, Julian”). Depois, Paul decidiu transformar o personagem da letra em “Jude”, inspirado, como revelou mais tarde, no nome do personagem de “Oklahoma!”, filme que muito o marcara na adolescência. O grosseiro Jud do musical hollywoodiano, portanto, induziu o florescer do lírico e encantador Jude dos Beatles. Afinal, sempre é possível transformar uma situação ruim em algo melhor, basta não querer “carregar o mundo em seus ombros” e tentar “fazer melhor, melhor, melhor”, conforme diz a cinquentona canção, que, como esta crônica de segunda, encerra com infindáveis e alegóricos “na, na, na, nanana...”.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 27 de agosto de 2018)

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Parente, mas não serpente


Muito mais do que aranhas, poeira e ácaro podem saltar de dentro de caixas de guardados. Nostálgico e memorialista como sou, cultivo fissura pelo ato de mergulhar dedos, nariz, óculos e atenções nesses depositórios de lembranças, de vidas e de memórias que resguardam o passar das eras e das biografias por meio do acúmulo (ordenado ou não) de cartas, documentos, fotografias e papéis diversos. Jogar uma caixa de memorabília no meu colo é o atalho mais fácil para garantir que eu fique quietinho num canto fuçando ali, imerso na pescaria de universos passados, catando preciosidades que o Tempo não foi capaz de apagar por meio da ação corrosiva que costuma produzir sobre a manutenção da Memória. Logo começo a sentir saudades de gente que nunca conheci, de tempos que não vivi, de coisas que outros fizeram. É assim que produzo a mágica de evocar vida a partir do silêncio que adormece nas fronhas do passado.
Dia desses, uma tia arremessou-me duas caixas dessas, repletas de tesouros familiares, para meu deleite e surpresa. Em meio a todo o farto material que meus dedos iam capturando, deparei, de repente, com a fotografia antiga, em preto e branco, de um personagem de figura marcante: testa larga e enrugada, olhos claros fundos, nariz aquilino e uma longa, espessa e desgrenhada barba que lhe caía até quase a altura do umbigo. Tratava-se de um tataravô meu (pai da mãe de minha avó paterna) e descobri que portava uma biografia excitante: nasceu na Áustria no início do século 19, migrou ao Brasil jovem, circulou por conflitos no Rio Grande do Sul e no Uruguai antes de partir para os Estados Unidos. Lá, ingressou como voluntário para lutar na Guerra da Secessão (1861 e 1865). Sobreviveu, voltou ao Brasil e estabeleceu-se definitivamente no Rio Grande do Sul, em Lajeado, onde chegou a ser conselheiro municipal no início do século 20 e conquistou medalha em uma Feira Agrícola Industrial realizada ali em 1903, por apresentar produtos de qualidade como arroz, canjica e azeite de amendoim, o que finalmente explica a origem de meu pendor para a gastronomia amadora.
Mas espera aí. E a Guerra da Secessão? Será que meu ancestral optou pelo lado certo naquele histórico episódio que dividiu norte-americanos entre escravagistas e antiescravagistas? Mais adiante, descubro que sim: lutou junto aos nortistas, que defendiam o fim da escravatura no país. Ufa! Que comesse canjica e óleo de amendoim eu admito, mas seria indigesto encarar parte de meu DNA composto por ancestralidade discriminatória e intolerante. Parabéns, caro tata!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 20 de agosto de 2018)

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Como ver "flores em você"


Somos diferentes, somos diversos, somos únicos. Não somos iguais. Pensamos diferente, agimos diferente, cultivamos gostos e jeitos próprios e exclusivos. Não somos produzidos em série, frutos de uma linha de montagem de automóveis ou de máquinas de lavar roupa. Somos gerados de forma especial, um a um, personalizadamente. Somos produção customizada, ao gosto específico de cada cliente, ou seja, nós mesmos. Eu sou cliente de mim mesmo, e eu moldo meu ser de acordo com minhas visões de mundo, meus gostos, minhas reflexões. Que são óbvia e naturalmente diferentes das suas e das de todos os demais dos sete bilhões de habitantes deste planeta repleto de vida. “Nessa vida passageira, eu sou eu, você é você”, canta (e resume) o Ira!
Lançar-se à vida imaginando que é seu dever reduzir o mundo inteiro aos limites de ação e percepção de seu próprio umbigo, procurando homogeneizar a rica existência em volta e subjugá-la aos seus próprios padrões, tendo a si mesmo como modelo, é o ápice da estultice e do desperdício de energia. A régua da medida do mundo não é o tamanho de nosso umbigo. Ele, aliás, é pequeno demais para abarcar a amplidão da diversidade que pulula em meio à florida e encantadora variedade das gentes que existem no mundo e que o fazem tão rico, divertido, fascinante. A diferença é o que encanta. Porque não somos iguais, e todas as tentativas (pessoais, coletivas e impostas) de homogeneizar a expressão da existência humana vão sempre incorrer no pecado inaceitável da intolerância, da barbárie, da psicopatia, do totalitarismo, do nazismo.
Somos diferentes. Somos humanos. Seres humanos não são produzidos em fábricas que determinam e delimitam formas de pensar, de amar, de agir, de ser, de parecer, de dizer, de ver, de perceber, de sentir, de se relacionar. Precisamos, sim, observar regras gerais de conduta social e de convivência que permitam justamente vivenciarmos e expressarmos nossas diferenças de forma pacífica dentro do espaço coletivo, sem que imponhamos nossos interesses pessoais aos demais de forma a inviabilizar a existência do outro. Para isso, as leis. Fora isso, a lei da convivência harmônica é uma só: respeite, aceite e conviva com as diferenças (e mais: aprenda a apreciá-las). Seu umbigo não é a régua do mundo, que é bem maior do que isso e está fora do alcance de sua jurisdição. Eu não quero um planeta repleto de “eus mesmos”. Eu cultivo o fascínio pela diferença e pela amplitude de mundo que o outro me proporciona. É assim que “vejo flores em você” e afasto de mim a intolerância da ira, não é mesmo, Ira!?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 13 de agosto de 2018)

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Truques para estender o ser


O que queremos ser na vida? Sabemos que temos somente uma vida para viver (ao menos, essa que estamos vivendo é só essa, sob essa identidade, nascidos nessa específica configuração familiar, social, temporal e geográfica) e, por isso, em alguns momentos da caminhada, impõe-se esse antigo e batido dilema: “o que vou ser quando crescer”? Ou, também, “agora que cresci, estou sendo aquilo que realmente desejava e desejo ser?”. Ou, ainda: “mesmo sendo o que sou, ainda posso mudar de rumo, reinventar-me, ser alguma outra coisa ou, enfim, vir a ser aquilo que sempre quis?”. Pois é, trata-se de um dilema que, dependendo do caso, pode nos acompanhar por toda a nossa existência, materializando-se na forma de frustração ou de realização pessoal. Ou, ainda, como sublimação de desejo não realizado. Vai saber.
Eu, na minha infância, primeiro desejava ser bombeiro. Correr pela cidade encarapitado em cima de um flamejante caminhão de bombeiros reluzindo em vermelho, a sirene aberta abrindo passagem, rumo ao cumprimento de missões que resultariam no salvamento de inocentes e no combate a tragédias, era meu sonho. Abandonei o intento no mesmo dia em que vi com meus próprios olhos uma casa arder em chamas na vizinhança e o perigo real a que os bravos combatentes do fogo se expunham no cumprimento do dever. Não, aquilo não era para mim. Seria astronauta, mesmo, igual ao trio Armstrong, Collins e Aldrin, os primeiros a andarem pela Lua. Fascinava-me observar o céu à noite, detectar os nomes das estrelas, constelações e planetas que meu avô me ensinava a identificar. Mas esse sonho caiu por terra quando soube que foguetes podiam explodir nos testes, como já havia acontecido antes, e eu, hein, tô fora! Optei então por ser agente secreto, igual ao 007 do Sean Connery. Perguntei a meu pai o que deveria fazer para me transformar em um deles, e recebi como resposta bem humorada: “em primeiro lugar, não conta nada pra ninguém”. Achei difícil seguir a regra e abandonei também essa meta.
No final das contas, me transformei em jornalista e escritor (atividades em que o foco é contar tudo para todo mundo). Descobri que a vida, curta como é, precisa ter um foco, não dá para querer ser escritor, astrólogo, caminhoneiro, cozinheiro, professor, detetive e gato, tudo ao mesmo tempo. Vive-se apenas uma vida, com foco e dedicação. As demais, aquelas que poderiam ter sido, mas não foram, a gente supre vivenciando-as alegremente nas páginas dos livros e nas telas dos cinemas. Afinal, as artes expressam exatamente nisso o seu valor vital e redentor. Ufa!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 6 de agosto de 2018)

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Santo segundo plano, Watson!


Todos estão convencidos de que a ideia partiu de Watson. Era o único que se apresentava, ao menos segundo uma primeira avaliação, com capacidade intelectual mínima suficiente para conceber a proposta, o propósito, a configuração e a forma de agir do grupo. Alguma coisa de elementar, afinal, haveria de ter aprendido em decorrência dos anos de convívio com o pernóstico fumador de cachimbo da Baker Street, supúnhamos. E creio que supúnhamos certo, pois que seria difícil concordar em atribuir a Sancho, o da pança, a autoria da criação do intento, uma vez que, literalmente preconceituosos como éramos, não víamos nele resquícios de atributos capazes de situá-lo na esfera da atuação dita “intelectual”, ainda que periférica. “Naquela cachola só sopram ventos advindos daquele traumático encontro com as pás dos moinhos”, cochichava um de nós.
O fato é que passaram a se reunir em segredo sempre que os volumes que habitavam eram fechados e guardados de volta nas estantes, ou descansados sobre os criados-mudos nos quartos de dormir, ou recolocados de volta nas prateleiras por bibliotecárias zelosas. O que pudemos apurar é que o primeiro encontro contou somente com a presença dos dois já citados. Porém, como as notícias também voam entre estantes e entrelinhas, não demorou até vários outros passarem a se apresentar, solicitando ingresso na seleta e secreta entidade, em que se viam representados. Sexta-feira foi admitido de imediato, comprovando que a boa nova se espalhava às mais remotas ilhas. A maré favorável e os bons ventos trouxeram ao mesmo porto também Ismael. Renfield obteve anuência, mas não sem gerar certo desconforto. Na sequência, vieram Guildenstern e Rosencrantz, cuja presença cimentava em todos a convicção de que o problema essencial era “ser e deixar de não ser”, essa era a questão.
“Ser ou não ser” o que, pergunta a madama? Ah, sim, desculpe. Esqueci de informar que estávamos investigando o surgimento de um grupelho subversivo literário autodenominado “A Convenção dos Coadjuvantes”, destinado a reunir personagens cansados de serem ofuscados pela opressão egocêntrica dos protagonistas das páginas dos livros que habitavam. Mas a coisa morreu na casca com a chegada de um mascarado de sunga verde e capa amarela, que revoltou Watson e o fez retornar, injuriado, ao modesto aposento no 221-B da Baker Street. “Ah, não! Robin, não!”, teria vituperado, ao abandonar o projeto. Afinal, ninguém gosta de ser coadjuvante, é verdade, mas assumir protagonismo a qualquer custo e em qualquer companhia também não dá, né, madama!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 30 de julho de 2018)

segunda-feira, 23 de julho de 2018

O que não vem na conta


A solidão transportada pela madrugada se estende mais rápido nos bairros em que os paralelepípedos revestem as ruas. Neles, em seus perfis periféricos e arrabaldinos, o asfalto central inexistente desconvida ao cruzar célere dos automóveis tardios, permitindo que gatos pardos (como todos o são a essas horas adultas) agora exibam destemidos e garbosos as suas felinices pelo centro das vias, transformadas em passarelas das quais se apossam para desfilar suas empáfias, secretas e noturnas. A tênue luz amarelada jorrada pelos postes de iluminação pública produz bolsões ovalados de uma claridade opaca sobre fragmentos da rua, originando um tabuleiro de xadrez intercalado entre claro e escuro a cada vintena de metros ou dezena de apressadas passadas do transeunte ímpar que cruza o nada, vindo de nenhures, mãos nos bolsos, rumando a lonjuras enquanto machuca o silêncio com o fincar cadenciado da sola do sapato na pedra fria forte sólida da rua, ecoando poesia concreta sem a intenção de ser.
Em horas assim, a companhia da solidão da rua é o silêncio que dela emerge, quebrado de tempo em tempo pelas lufadas do vento negro que sopra de longe, sacudindo fios de luz onde agora nenhum passarinho se assenta. Também eles já se recolheram a seus ninhos ermos e secretos, vitalmente afastados dos olhares da urbe que, enfim, adormece. Quem cruza as ruas é o vento, ele só, dobrando esquinas sem dar sinal, avançando semáforos, ignorando preferências, correndo livre a fazer inveja ao jovem, ao tolo, ao imprudente e ao estranho que segue espetando sapatos agora lá longe, bem longe, escuridão adentro, entregando-se ao engolfar aveludado da noite que o suga para entranhas perenes. Quem era? Quem é? Ainda será, agora que foi-se? Dele, restam os sons dos últimos passos que também evanescem no longe da cena.
Silêncio. Vento e silêncio. E um novo gato que passa, talvez o mesmo, talvez outro, não há como saber, afinal, é pardo, como qualquer um que habite essas horas tardas. Nessa cena deveria haver lua, mas lua não há. Uma manta de nuvens age de escudo e impede o fluir do lume das estrelas, dos planetas e de qualquer outro ente brilhoso que poderia aliviar com cintilâncias a aura soturna que teima em imperar. A pouca luz que vigora é essa, da rede de postes, pensada para alumiar solitudes e nadas profundos de eus imprevistos tal gato solitário ou pardo passante. Serve também para luzir a pouca inspiração de um cronista de segunda, mas isso, pelo menos, não vem acrescido na conta da luz ao final do mês. Poesia noturna ainda nos chega de graça.


(Crônica publicada no jornal "Pioneiro" de Caxias do Sul em 23 de julho de 2018)

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Cuidar de casa dentro e fora


Estou convencido de que uma das fórmulas eficazes para conquistar mais qualidade de vida (e a partir disso, intrinsicamente, obter saúde psíquica e física, longevidade com excelência e paz de espírito) decorre da convivência em ambientes sadios. Isso tanto externa quanto internamente. Se é verdade que, a partir dos hábitos (comportamentais e alimentares) que decidimos adotar, é possível proporcionar ao nosso organismo um ambiente interno sadio, e assim, por conseguinte, promover saúde física e mental ao nosso corpo, então é verdade que a convivência diária em ambientes físicos externos psiquicamente sadios também é capaz de produzir saúde tanto física quanto mental.
Tanto nosso corpo precisa ser constituído de um ambiente interno sadio (para evitar as doenças e prolongar a vida com saúde) quanto nosso entorno precisa ser moldado por ambientes que nos tragam paz de espírito e permitam um viver harmonioso, criativo, edificante, construtivo, colaborativo, feliz e cidadão. Se é correto afirmar que devemos evitar poluir nosso organismo com lixo alimentar a fim de zelar pela nossa saúde orgânica, é também verdade que devemos evitar nossa inserção e permanência em ambientes psiquicamente perniciosos, que adoentam nossa alma. Óbvio que tanto um quanto outro quadro depende também de nossa própria ação proativa. Cabe a mim decidir o que ingerir a fim de zelar pela minha saúde física, e cabe também a mim me esforçar para que os ambientes em que me insiro sejam sadios. E quando detectamos que nossas ações não bastam para transformar o quadro, o negócio é optar pelo recuo estratégico: não mais frequentar o local pernicioso, a relação perniciosa, o contexto pernicioso. Saber afastar-se do que nos faz mal é uma das chaves da felicidade e do sucesso.
Dia desses, fui surpreendido por ver-me inserido em um ambiente de trabalho carregado por energias positivas que jamais imaginaria encontrar naquele tipo de instituição. As pessoas que ali dispensam oito ou mais horas diárias de suas vidas fazem questão de se cumprimentar umas às outras com entusiásticos e genuínos “bons dias” a cada nova jornada. Olham-se nos rostos, sorriem, apertam-se as mãos. E não o fazem por obrigação de manual interno de conduta, por determinação gerencial. Fazem porque querem, e esse hábito impregna a atmosfera com uma energia sadia e inspiradora que se apodera até mesmo do visitante e do colaborador eventual, inserido de imediato em um ambiente no qual tem prazer em transitar. Pequenos gestos que produzem grandes efeitos. Infelizmente, ainda tão raros.


(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 16 de julho de 2018)

segunda-feira, 9 de julho de 2018

O limpador de sapatos



“O limpador de sapatos” é como ficou conhecida e entrou para a História a primeira imagem registrada fotograficamente de um ser humano. Na verdade, aparecem no retrato dois seres humanos: o limpador de sapatos em si, agachado à direita, no canto inferior esquerdo da composição, e o cliente que faz uso de seus serviços, o dono dos sapatos, à esquerda, em pé, com uma perna alçada e apoiada sobre a caixa a partir da qual os pisantes são lustrados. Na verdade, também, não se trata de uma fotografia na concepção atual do termo, mas, sim, de um daguerreótipo, método inventado pelo cientista francês Louis Daguerre (1789-1851), um dos precursores mundiais dos sistemas de captura e fixação de imagens por meio de processos químicos.
O flagrante típico do cotidiano foi obtido a partir da janela de um prédio em que Daguerre se instalou com sua parafernália, nos subúrbios de Paris, há exatos 180 anos, em 1838. Naqueles tempos de antanho, ele e outros inventores davam os primeiros passos para a rápida criação dos processos fotográficos à base de filmes, que passariam a registrar a saga da humanidade a partir de então, resultando décadas mais tarde nas ultramodernas câmeras digitais e nos smartphones, que permitem o desvario sem fronteiras da expressão da vaidade e do cultivo do narcisismo coletivo por meio das adoradas selfies, de reprodução instantânea, porque, afinal, não faz bem para o ego deixar a autoestima esperando. Vale aqui ressaltar e contrastar o tamanho do anonimato a que estão relegadas para sempre essas duas históricas figuras, que, sem jamais terem se dado por conta disso, acabaram se transformando nos dois primeiros seres humanos a terem suas imagens eternizadas por meio de um retrato fotográfico. Simplesmente estavam no lugar certo na hora certa, pessoas comuns vivendo em Paris suas vidas comuns. Delas, nada mais sabemos, sequer os detalhes de suas feições (apenas as silhuetas esfumaçadas pelo tempo).
O que sabemos é que, há quase dois séculos, os humanos dominam a técnica de registrar e perenizar as imagens de si mesmos e dos outros, de seus feitos e defeitos, sem mais precisar recorrer aos pintores e aos escultores que, via de regra, só retratavam para a posteridade a elite abonada e afamada. De Daguerre para cá, a possibilidade de captura de nossas imagens próprias concorre para tirar qualquer um de nós do anonimato e alcançar a perenidade visual. Mas a questão que permanece é: que tipo de imagem andamos tratando de cultivar? E, dependendo da resposta, será ela passível de ser revelada por uma selfie? Vai saber...
(Crônica publicada no jornal"Pioneiro" em 9 de julho de 2018)

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Esse deserto sem fronteiras


Estamos sós. Após tantas especulações, depois de tanto investimento em pesquisas astronômicas e astrofísicas, após tantos debates e dezenas de centenas de milhares de relatos de possíveis encontros e de supostos avistamentos, após tantos filmes e livros de ficção-científica, parece que, a bem da verdade, a humanidade é mesmo a única expressão de vida inteligente existente em todo o universo. Ao menos, essa é a conclusão a que chegaram recentemente três (obviamente inteligentes) cientistas da Universidade de Oxford, que se dedicaram a analisar minuciosamente as leis da probabilidade que entram em cena quando a questão é admitir ou não, na teoria, a existência de outras civilizações habitando outros planetas em distantes galáxias. Conforme o resultado do estudo, é bom irmos nos acostumando com a ideia: o quintal do universo é todo nosso. Não temos vizinhos. Estamos sós.
Os autores do estudo são Anders Sandberg, pesquisador do Instituto Futuro da Humanidade, da Universidade de Oxford; o engenheiro Eric Drexler, responsável por popularizar o conceito de nanotecnologia; e Tod Ord, professor de Filosofia também em Oxford. Detalhando as coisas, o trio de humanas inteligências científicas demonstra que, apesar do incontestável fato de existirem bilhões de galáxias no universo, e que cada uma dessas galáxias contempla a possibilidade (a possibilidade, ressalte-se bem, e não a certeza inequívoca) da existência em seus sistemas solares de planetas habitáveis, e que em alguns desses trocentos milhões de planetas habitáveis pode ter surgido vida, e entre essas tantas vidas poder haver vida inteligente, apesar disso tudo, nada, absolutamente nada, mas nadica de nada e nadinha garante que de fato ela exista fora daqui da Terra. E dizem mais, os três impiedosos inteligentes cientistas oxfordianos: asseguram que a possibilidade de estarmos, nós, terráqueos, sós no universo, em termos de expressão de vida inteligente, beira à casa dos 85%. Mas que barbaridade, diria um solitário e silencioso Blau Nunes à noite, a sorver sua cuia de chimarrão enquanto observa o céu estrelado das solidões pampeanas gaúchas. Que barbaridade!
Porém, Blau Nunes, frente a isso tudo, não consegue evitar chegar à seguinte conclusão: se for levado em conta que o parâmetro atestado para classificar como “inteligente” determinada forma de vida for aquele que enquadra no topo da lista os seres humanos que habitam o planeta Terra, então, o mais correto seria afirmar que é o Universo inteiro quem está só, absolutamente só, deserto e inabitado. Que barbaridade!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 2 de julho de 2018)

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Um dilema ao pé do vulcão


Cenário 1: À sombra de um vulcão, no Período Cretáceo, exatos 65 milhões de anos atrás. Venha, madama, não tenha medo, suba aí nesse coqueiro e observe. Eu sou Ugh, meu ancestral direto, um típico homem das cavernas. O dia já amanheceu e eu, Ugh, vou saindo, tacape em punho, da caverna que habito com Agh, a mulher das cavernas minha companheira, com quem tenho os filhos Ughinho, Bambam e Pedrita, para alimentar. A expectativa de todos é de que eu retorne logo trazendo um suculento dinossauro para servir de refeição para toda a família. Ainda não criaram a tele-entrega e nem a língua inglesa para substituí-la por delivery, impossíveis de imaginar antes da invenção das motocicletas, dos telefones para fazer os pedidos e dos motoboys. Só resta mesmo eu, Ugh, empunhar o tacape e ir à caça do primeiro dinossauro que encontrar pela frente e transformá-lo em banquete. Lá vou eu.
Horas depois, já ao findar do dia, retorno à caverna de mãos vazias e com uma catastrófica notícia para informar à faminta família: não há mais dinossauro algum sobre a face da Terra. Eles acabaram de ser extintos. “Como assim, extintos?”, exclama, indignada e desconfiada, Agh, minha esposa das cavernas. “Ainda ontem você trouxe um belo Risotossauro com o qual fiz a janta e só não congelei o resto porque ainda nenhum de seus amigos inúteis inventou o freezer! Como assim, os dinossauros estão extintos? Pra mim, você andou o dia todo é no Caverna-Club enchendo a cara com cinza de vulcão... Não me venha com essa, que quem vai acabar extinto aqui é você”! Bom, madama, agora desça da árvore e volte comigo às incivilizações da Era Moderna, à qual pertencemos. O Cenário 2 é essa nossa Caxias do Sul de 2018 depois de Cristo, quando descobri, aterrado, que os dinossauros acabam de ser extintos também em toda a cidade.
 Sim, madama, andei perambulando por todas as lojas de brinquedos dia desses, atrás de um ovo que, quando submerso em uma tigela de água, abre três dias depois e dá à luz um dinossauro esponjoso que faz a alegria de meu afilhado de seis anos de idade, a quem já brindei com dois exemplares da espécie e andei prometendo ampliar a família. O que eu não contava era com a extinção dos ditos-cujos, e minha situação deve ter sido similar à de Ugh, meu ancestral, que, assim como eu, precisou lidar com a decepção causada frente ao não cumprimento de uma expectativa gerada. Eu, de minha parte, comprei um álbum de figurinhas da Copa, a título de plano B. Já Ugh... Nem imagino o que fez... Talvez tenha se mexido e inventado a telentrega...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 25 de junho de 2018)

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Salve a data e a língua!


Recebo via e-mail um convite para um evento. Os organizadores, organizados que são, enviam com antecedência de cinco meses o convite, a fim de que seus convidados possam se organizar a tempo (a pobreza de vocabulário invadindo tal qual vírus o estilo do cronista, enfileirando flexões empobrecidas dos termos  “organizadores”, “organizar”, “organizados”, “convite”, “convidados”... mas está frio demais para vasculhar regiões glaciais do cérebro em busca de sinônimos que enriqueceriam o texto... vai assim mesmo e peço calor humano...). Compreendo o objetivo louvável dos elaboradores (“elaboradores”? Não, horrível... voltemos a “organizadores”), que, a partir dessa técnica de antecipação convidacional (agora apelei ao neologismo; pelo menos, surpreende), convidam o convidado (argh!) a se organizar (ai!) e a já reservar a data em sua sempre atribulada agenda de compromissos.
Até aí, tudo bem. Problema é essa mania crescente, inexplicável, indesculpável e desconfortável que as pessoas andam cultivando, aqui pelas plagas verdeamarelas, de usar e abusar de termos, palavras e expressões em inglês para dizer aquilo que a língua portuguesa é capaz de expressar com perfeição e até mesmo, na maioria das vezes, com mais elegância. Lá vem o convite, aterrissando na tela de meu computador, via correio eletrônico (por que “e-mail”?), pedindo para que eu, em novembro, “save the date”. Hã? Cadê meu livrinho do nível três do cursinho de inglês? “Save the date”, explode na tela, alegre e brilhante, convidando-me a reservar a data. Não seria mais eficiente os organizados organizadores, ao convidarem o convidado, irem direto ao ponto solicitando, em bom português, que ele “reserve a data”? Por que tenho eu de “save the date”? What a hell? Quer dizer... Que diabos! Ou, em dialeto “talian”... Será que escrevem assim imaginando serem “chiques”? Ora, ser chique é cultivar a sua própria língua, a sua cultura, e não inflar estrangeirismos desnecessários.
Mas, de volta ao tema. Por que “save the date”? Por que os preços em promoção agora ficam “off” nas vitrines? Por que a invasão de “outlets”? Estabeleceu-se, porventura, o mantra de que em inglês o cliente gasta mais? Em inglês o convidado reserva a data? Por que não empregar então, em Caxias do Sul e adjacências, o italiano? “Prenota la data”, deveria sugerir o convite. Para convidar os vizinhos da Região das Hortênsias, vamos direto no alemão: “Buchen Sie das Datum”, e pronto, estaremos todos lá, reunidos, felizes e contentes, na data devidamente “saved”. Afinal, tudo é uma questão de organização, isn´t?
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 18 de junho de 2018)

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Velharias em descompasso


“Anacronismo” é o termo que se emprega para identificar uma atitude ou fato que não esteja de acordo com a sua época. Fazer algo, agir ou mesmo pensar e defender ideias que já foram enterradas pelo processo evolutivo ininterrupto da humanidade significa incorrer no “pecado” do anacronismo. Torna-se, portanto, imperioso que se fique atento às tentativas de resgate de anacronismos que de vez em quando surgem aqui e acolá, porque, mesmo que revestidas de uma aura aparentemente inócua e bizarra, essa ideias estão sempre tentando encontrar terreno fértil onde possam voltar a florescer para reconduzir a sociedade de volta às trevas, instituindo processos perigosos de retrocesso e involução social, ética e humana. A defesa das conquistas civilizatórias precisa ser constante e perene, sob o risco de se verem engolfadas por ondas obscurantistas que surgem e se avolumam à sombra de nossas eventuais desatenções.
Comecemos por um exemplo manso de anacronismo, desprovido de más intenções. Você, leitor amigo, leitora atenta, não irá chamar nenhuma pessoa de seu círculo de relações de “vossa mercê”, e nem mesmo de “vosmecê”, que é como esse antigo pronome de tratamento evoluiu com o passar do tempo. Você vai empregar mesmo é o termo “você”, pois estamos vivendo em pleno século 21 e não mais na era do Brasil colonial. “Vosmecê” e “vossa mercê” desapareceram no tempo, ao passo da evolução do processo de horizontalização das relações sociais, e se tornaram, hoje, anacrônicos. Empregar trabalho escravo é uma prática que também desapareceu (ao menos, oficialmente) nas brumas do tempo, repudiada pelo processo civilizatório. Hoje, escravagismo é crime e configura um anacronismo deletério.
A questão está justamente aí: em identificar e combater as tentativas de ressurgimento de anacronismos deletérios, e nessa esteira pode-se elencar vários deles que não cansam de teimar em recolocar a fuça para fora do lodaçal ao qual já haviam sido condenados pelo bom senso e pela civilização. Discriminar pessoas por sexo, raça, gênero, opção sexual, ideias, identidade de gênero, posição política, status social, forma física, é anacronismo. Fumar em ambientes fechados, beber e dirigir, também estão saindo de moda. Assediar e oprimir sexualmente outrem, já era. Julgar-se proprietário do outro em relacionamentos é postura anacrônica. Ah, defender revolução armada é coisa do século passado. E imaginar que intervenção militar pode ser a solução para problemas sociais e políticos, então, é anacronismo dos mais preocupantes (e deletérios). Estejamos alertas.


(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 11 de junho de 2018)

segunda-feira, 4 de junho de 2018

A bordo da nau de Bosch


Cem anos atrás, em 1918, o Museu do Louvre, em Paris, passava a incorporar em seu acervo uma tela significativa e importante pintada por um renomado artista holandês medieval. O pintor, autor da obra-prima, chamava-se Hieronymus Bosch, nascido em 1450 e morto em 1516. O nome esquisito não era nome de batismo, mas, sim, um pseudônimo inventado por Jeroen Van Aeken, provavelmente para esconder sua verdadeira identidade e escapar das garras da Inquisição, uma vez que o conteúdo temático de grande parte de suas obras costumava retratar de forma alegórica e crítica os excessos do clero europeu e o comportamento bárbaro da sociedade de sua época. Previdente e esperto esse Von Aeken, conhecedor de técnicas básicas de segurança e sobrevivência quando se está imerso em tempos intolerantes e insanos, como eram aqueles dias.
A tela em questão, acolhida desde então pelo Louvre (o quadro segue lá, pendurado na parede, para quem quiser e puder conferir de perto), é conhecida pelo título “A Nau dos Insensatos” e mostra um grupo de pessoas desprovidas de juízo e de lucidez reunidas em um festim luxurioso a bordo de uma pequena e frágil embarcação. A atmosfera resultante da interação dos inconsequentes personagens retratados na cena pintada pelo talento de Bosch (aliás, um dos precursores do movimento Surrealista que, no século XX, teria Salvador Dalí como um dos maiores expoentes no âmbito das artes plásticas) induz o observador à incômoda sensação de estar testemunhando um triste, perigoso e suicida processo de desagregação social que conduz direto ao caos. O caos, por sinal, é o único destino plausível de ser alcançado por uma nau composta por uma tripulação de insensatos (pleonasmo gentil para “loucos” mesmo, ou “desmiolados inconsequentes”).
O que esperar de uma embarcação dessa natureza? Ora, que eles próprios, os insensatos a bordo que usurparam o leme, atendendo à cegueira ensandecida de seu surto indomável, acabem furando o fundo do barco e com ele naufraguem, tragados ao abismo revoltoso para o qual conduziam seu destino desde que se deixaram levar pelos instintos incivilizados que os dominavam. Com essa tela contundente, Bosch procurava advertir, de forma burlesca, contra a perda dos valores éticos e civilizatórios que abre as portas para a barbárie e leva a sociedade ao caos. É estranho: 500 anos se passaram desde que ele pintou o quadro e eu aqui, do outro lado do mundo, em pleno século 21, me vejo balançando e sentindo enjoos como se estivesse, repentina e inadvertidamente, a bordo da dita nau. Que insensatez!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 4 de junho de 2018)

segunda-feira, 28 de maio de 2018

O reabastecer de um pecado


A inveja é, entre todos os sete pecados capitais, possivelmente o mais autodestrutivo dos sentimentos que se pode cultivar. Tudo bem, também há a gula, conforme ressalta madama, essa sempre tão atenta leitora. Verdade: a gula, quando exercida em sua plenitude pecaminosa, acarreta efeitos deletérios irreversíveis ao corpo do pecador de maneira tamanha que talvez nem mesmo a redenção por meio de dietas e horas de academia seja possível de ser alcançada. Mas a inveja, madama minha, a senhora sabe: ela corrói por dentro, ela danifica a alma, ela deteriora a lucidez, ela carcome a leveza e a alegria de existir, ela infecta venenosamente a essência daquilo que somos em função da inalcançabilidade do objeto invejado. Inveja mata aos capítulos, madama, e é ruim.
Reflito sobre o poder da inveja ao longo desses dias turbulentos que vivenciamos desde que a legítima e justa greve dos caminhoneiros nos foi privando aceleradamente do poder de locomoção causado pelo desabastecimento dos combustíveis nos postos, obrigando-nos a reduzir nossos deslocamentos automotorizados na medida em que a consciência do problema passava a ser apreendida ao ritmo do esvaziamento dos tanques de nossos carros. O desacelerar compulsório do ritmo do cotidiano talvez ofereça como ponto positivo a possibilidade de encontrarmos então aquele tempo tão precioso para refletir sobre alguns aspectos da existência que moldam o que somos, individualmente e também enquanto sociedade. Assim, pus-me a refletir sobre a inveja, especialmente essa inveja ancestral humana, que se manifesta em sua plenitude sempre que nós, terrenos seres humanos caminhantes, alçamos os olhos aos céus e flagramos o voo de uma ave.
Ah, que inveja desse voo livre que aquele pássaro traça elegante e levemente deslizando pelo céu. Em questão de segundos ele atravessa o bairro e desaparece no horizonte por detrás da torre da igreja, vencendo sem esforço uma distância que eu precisaria de penosas dezenas de minutos alçando um pé atrás do outro, ou que só conseguiria cumprir em pouco tempo dirigindo o carro que adormece desidratado na garagem. Veículos agora são incapazes de me mover daqui rumo a meus compromissos e engulo o gosto amargo da inveja pelas asas de Ícaro, pelas asas de anjos e arcanjos e pelas asas dessa delicada borboleta que não sei como consegue batucar o vidro da janela de meu escritório no alto desse décimo-primeiro andar. Melhor aterrissar de novo o devaneio, madama. Andamos mesmo precisando nos alimentar de novos combustíveis nessa nossa maneira de sermos brasileiros.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 28 de maio de 2018)

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Reinações de lá e de cá


Enquanto aqui em Caxias do Sul celebramos a goles de graspa e vino rosso a coroação do novo trio de soberanas da Festa da Uva, entronizadas na noite do último sábado, os britânicos espalhados pelo planeta seguem elevando brindes com suas “pints” ao enlace matrimonial de seu Príncipe Harry com a atriz norte-americana Meghan Markle, ocorrido também no sábado, devidamente distanciados os dois eventos em termos de fuso, pompa, gala e gastos. Conforme me ia relatando o barbeiro, na gélida manhã de sábado da semideserta Caxias encarangada de frio, enquanto conduzia por minha cabeça a máquina de corte (que pouca resistência capilar encontrava pelo caminho), informado que estava a respeito dos dois majestosos eventos, soube que só o vestido de noiva da sorridente Meghan custara cerca de 500 mil reais. Coisa de arrepiar os cabelos, caso eu os tivesse em volume suficiente que justificasse idas mais frequentes ao encontro do atilado profissional da tesoura, do corte e da costura de dados curiosos.
Quinhentos mil reais por um vestido de noiva é coisa que dá o que pensar. Bem, né, madama, dá o que penar às cabeças de nosotros, terceiro-mundistas militantes das plagas de cá das mazelas do mundo, espevitados que andamos com os escândalos financeiros envolvendo políticos nacionais, cujas cifras permitiriam financiar vestidos de casamentos reais por gerações e gerações de sangues azuis sem pestanejar. A sorridente Meghan deve ser a última mortal do mundo a encasquetar-se com isso, especialmente hoje, em que já deve estar saboreando as delícias da sua edílica lua-de-mel com a real barba-ruiva de seu marido em um hotel de luxo lá na Namíbia, sul da África, emoldurada ao pôr-do-sol e ao rugir dos leões e das zebras. Das zebras não, que zebra não ruge, né, madama. Dos leões e dos tigres, então. Como? Tigres também não, pois não há tigres na África, só na Ásia? Ora, madama, Ásia, África, tigre, leão, vestido caro, e lá a norte-americanice natural de Meghan e seu sorriso haverão de se importar com esses frivolidades? Ela está é dedicada a usufruir de sua suíte de 2,5 mil reais a diária, isso sim, onde há de haver um cofre grandão para guardar seu vestido de meio milhão de dinheiros.
Ou isso, ou está analisando as provas da estátua de cera de sua pessoa, a ser instalada no Museu da Madame Tussauds, em Londres, para que nós, da plebe mundial, possamos fazer selfies ao lado de sua agora nobre imagem. Tudo isso fiquei sabendo ao longo do corte, por meio do barbeiro esclarecido. Pena que pouco me sobrou sobre a cabeça para sair dali devidamente arrepiado.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro" em 21 de maio de 2018)

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Ópera literária em 80 atos


Não é todo mundo que tem o privilégio de receber uma ópera inspirada em livro de sua autoria como presente de aniversário. Também não é todo mundo que possui a capacidade e o talento para produzir uma obra que mereça ser transformada em ópera, depois de já ter sido transposta das páginas originais do livro em que foi concebida para as telas do cinema (chegando a concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro). Afinal, não é todo mundo que se dedica com afinco a construir diariamente, ao longo de mais de seis décadas, uma sólida e profissionalizada carreira de escritor, a ponto de gerar obras de consistência estética e literária. Isso porque não é todo mundo que se chama José Clemente Pozenato, que segue a passos firmes rumo à completude de seus primeiros 80 anos de idade, a serem oficializados no próximo dia 22 de maio.
Só José Clemente Pozenato se chama José Clemente Pozenato, e só a ele cabe administrar essa sua muito bem construída biografia pessoal consolidada nos pilares de uma intensa, criativa, rica e generosa vida dedicada à cultura, à educação e às artes, em especial a da escrita. Pozenato chega aos 80 anos usufruindo a expectativa pela montagem de seu livro “O Quatrilho” em formato de ópera, que estreia no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, no dia 28 de julho, e depois em Caxias do Sul em 18 de agosto, no Teatro do Colégio Murialdo. “É meu presente de aniversário”, exclama o aniversariante, devoto de Santa Rita (que rege a data de seu nascimento), “a santa das causas impossíveis”, conforme ressalta.
Pozenato tem dedicado 65 de seus 80 anos à causa de transformar em possível uma vocação minuciosa ao labor da escrita, alimentada pelo único combustível conhecido: a leitura criteriosa daqueles que, como ele, entendem do ofício. O rapaz natural de São Francisco de Paula que escreveu seus primeiros poemas aos 15 anos de idade e venceu seu primeiro concurso literário aos 17, transformou-se em um referencial da escrita não por acaso. Pozenato lê, e muito, sempre procurando compreender a técnica existente por trás de uma frase bem escrita de Machado de Assis e de Clarice Lispector ou de um verso feliz de Petrarca, de Ovídio, de Virgílio (a quem, por sinal, lê no original), de Manuel Bandeira, de Cecília Meireles, de Drummond... Não se chega aos 80 anos por acaso. Também não se constrói uma carreira literária sólida por acaso. José Clemente Pozenato não é fruto do acaso, e a forma como vem compartilhando seu talento é o presente de aniversário com que brinda a todos nós. Parabéns, generoso Mestre!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 14 de maio de 2018)

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Quem merece ser picado?

“Com um grande poder, vem uma grande responsabilidade”. A frase, carregada de verdade e de sabedoria, ficou famosa e ganhou o mundo a partir da década de 1960 do século passado, ao ser proferida por Tio Ben ao seu sobrinho, o adolescente Peter Parker, já na revista de estreia do Homem-Aranha (uma história em quadrinhos), nos Estados Unidos. Tio Ben estava prestes a morrer pela ação de um bandido tresloucado que minutos antes o recém superpoderoso aracnídeo, alter-ego de Peter, deixara fugir ao vê-lo cometer um roubo à mão armada, “por não ter nada a ver com aquilo”. O bandido escapa e acaba assassinando o tio do Homem-Aranha, que até então só estava usando seus novos poderes para proveito próprio. Depois da tragédia, Parker passa a vestir o manto de “herói” assim que decide usar com grande responsabilidade o grande poder que recebera por acaso, ao ser picado por uma aranha radioativa em uma aula de química, no Ensino Médio.
Mas aí vem a questão (pois são necessárias questões para embalar em responsabilidade estas crônicas de segunda). E se o Destino, esse semeador de incongruências, tivesse direcionado a picada da aranha radioativa a um destinatário desprovido do alcance da sabedoria de um Tio Ben e destituído de força de vontade, haveria super-herói salvando o mundo das ações do mal? Ora, no universo dos quadrinhos, quando um superpoder é conferido a uma pessoa sem caráter, ela logo se transforma em supervilão, a ser combatido pelos super-heróis, imbuídos de ética e senso de justiça. Mas o que aconteceria se esses grandes poderes fossem conferidos a um preguiçoso, a um niilista ególotra, sem a mínima vontade de vestir uma máscara e sair do sofá da sala a perseguir bandidos e distribuir sopapos?

Felizmente, nenhuma aranha radioativa picou a mão de Bartleby, o escriturário insubordinado e ocioso criado pelo escritor norte-americano Herman Melville (1819 - 1891), que entrou para a história da literatura entoando o mantra “prefiro não fazer”. Ele concorreria em inatividade heroica com o niilista absurdamente estático Meursault, criado pelo escritor francês Albert Camus (1913 - 1960) em seu livro “O Estrangeiro”. Nenhum deles usaria o grande poder com grande responsabilidade, isso é certo. No âmbito da vida real, que é o cenário em que a ficção pretende fazer incidir os reflexos daquilo que elucubra, é preciso ardentemente almejar que aqueles raros privilegiados dotados com o acesso aos grandes poderes saibam agir com grandes responsabilidades. Mas, pelo que se tem visto, esse tipo de coisa é mais presente na ficção.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 7 de maio de 2018)

segunda-feira, 30 de abril de 2018

Ah, bah: boa notícia!


Se os nomes Agnetha, Benny, Björn e Anni-Frid significam algo para você, então, sua certidão de nascimento com certeza remonta a meados do século passado. Mamma mia! Não tem como esconder. E se a evocação nominal desse quarteto provoca uma súbita transposição emocional a eras passadas, quando a juventude dos anos 1970 e 1980 se divertia em bailes animados por música cadenciada, em salões com luzes piscantes, denominados discotecas, ao som de discotecários (precursores dos DJs), então, você já pode ter uma ideia do que é que vamos tratar nesta crônica de segunda.
Não, não comentarei com o atarefado leitor e com a assoberbada leitora os caminhos e descaminhos das investigações de corrupção que animam a política e desanimam a vida dos brasileiros. Para isso há o Mirante, a página da Rosilene Pozza, que competentemente nos esclarece sobre os bastidores do fazer político em âmbito local, estadual, nacional e etecetera e tal. Tampouco transcorrerei sobre as louváveis iniciativas de empreendedores serranos no sentido de debelar a crise econômica abrindo novos empreendimentos na região, gerando postos de trabalho e reaquecendo a economia. Para isso há o Caixa-Forte, a página de economia assinada pela Silvana Toazza, que atentamente acompanha os andamentos do setor na Serra Gaúcha. Também não abordarei a gangorra que aflige e acalenta torcedores das duplas Ca-Ju e Gre-Nal, pois para isso há as páginas da turma do Esporte, acompanhando os lances que movimentam as séries A, B, C e D do futebol nacional. Não, nada disso.
Falarei, isso sim, sobre a notícia mais importante veiculada pela imprensa internacional nos últimos dias: o retorno do grupo pop ABBA, composto pelo quarteto de suecos cuja junção das iniciais dos nomes gerou uma das mais queridas bandas musicais de todos os tempos, não é mesmo, Fernando? Sim, pois é: os quatro integrantes do ABBA resolveram se reunir novamente, após 35 anos de separação, para gravar duas novas músicas em estúdio. Uma delas já teve até o título divulgado: “I still have Faith in you”, algo como “Eu ainda tenho fé em você”, em tradução livre deste cronista. “Nós envelhecemos, mas o som é novo”, afirmam, em comunicado oficial. Infelizmente, o público terá (teremos) de esperar até dezembro para conhecer as novidades. Mas também temos fé neles, e estamos, na verdade, todos, ao redor do mundo, sedentos por ao menos um pouco de notícia boa, que nos ajude a manter a vontade dançante de viver. Até lá, podemos abastecer a alma revisitando sucessos como “Chiquitita”, “Dancing Queen”, “I Have a Dream”...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 30 de maio de 2018)