quinta-feira, 30 de junho de 2016

A formulinha do marechal

Ao longo da vida, deparamos com vários tipos de pessoas, cada qual com suas nuances, cada qual ataviada com as características próprias que lhes moldam a personalidade a partir de seu temperamento, de suas inclinações, das experiências pelas quais passou e de como lidou com elas. Ninguém é exatamente igual a algum outro em seu perfil humano. Mesmo assim, na tentativa de facilitar nosso próprio esforço de compreensão dos outros, procuramos criar grandes grupos nos quais agregamos pessoas com perfis semelhantes, a fim de, classificando e reduzindo, conseguirmos identificar um pouco melhor a natureza de quem nos cerca e, de posse dessa compreensão (muitas vezes falha, sempre incompleta), podermos decidir como agir frente a elas.
É assim que surgem as fórmulas. Nós, humanos, gostamos de fórmulas e elas não se restringem às decorebas das aulas de matemática e física nos tempos da escola. Eu gosto de fórmulas humanas a título de curiosidade, mesmo sabendo que elas são imprecisas, reducionistas, impositivas e frágeis. Mesmo assim, uma delas me chamou a atenção recentemente, por ser aplicável às pessoas que nos cercam ao longo de nossas vidas, no ambiente de trabalho, na família, em todos os lugares. Vou compartilhá-la aqui, lembrando que, assim como gostamos de enquadrar os outros nessas formulinhas, eles também têm o direito, o poder e a inclinação de fazer o mesmo, enquadrando nelas também a gente.
Kurt von Hammerstein (1878 - 1943) era um oficial que estava no topo do comando do Exército alemão quando Adolf Hitler chegou ao poder, em 1933. Por discordar frontalmente dos ideais nazistas, o general afastou-se para a reserva ainda antes do início da Segunda Guerra Mundial e, até morrer, dedicou-se a combater internamente o regime do ditador. Conhecido por sua inteligência, Hammerstein tinha uma máxima ficou famosa. Dizia assim: “Eu divido os meus oficiais em quatro grupos. Há oficiais inteligentes, aplicados, burros e preguiçosos. Em geral, essas qualidades vêm aos pares. Há os inteligentes e aplicados, que devem ir para o Estado-Maior. Depois vêm os burros e preguiçosos; esses são 90% de qualquer Exército e são próprios para tarefas de rotina. Os inteligentes e preguiçosos têm o que é preciso para tarefas mais altas de liderança, pois têm clareza mental e firmeza dos nervos na hora de decisões difíceis. Mas é preciso tomar cuidado com os burros e aplicados; não podem receber nenhuma responsabilidade, pois só sabem causar desgraça”.

Interessante, não? Mas, cuidado, alguém pode estar lendo isso e pensando em você...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de junho de 2016)

quarta-feira, 29 de junho de 2016

A sombra pela alma; topas?

É preciso ter cuidado, pois o diabo está sempre à espreita, especialmente nas melhores páginas da literatura universal. Sempre disposto a tentar, pronto para surrupiar para si o que nós, seres humanos, temos de mais valioso - nossa própria alma - , em troca de bugigangas que, do alto de nossa vaidade e cegueira, imaginamos ser mais importantes do que ela (imortalidade, juventude eterna, riquezas, fama, poder, razão absoluta e xiita etc). Deu-se mal assim, por exemplo, o Fausto de Goethe (1749 – 1832), na obra homônima, e também o personagem Adrian Leverkühn, de Thomas Mann (1875 – 1955), no romance “Doutor Fausto”, para citar somente dois (ambos escritores alemães, mas a lista de exemplo se estenderia por diversas nacionalidades).
Dias atrás, caiu-me nas mãos o trabalho de outro escritor alemão que se debruçou sobre o tema, com a mesma genialidade que os já citados. Este, porém, pouco conhecido entre os leitores brasileiros, mas, ao que tudo indica, popular entre os europeus, tendo encantando, inclusive, o próprio Thomas Mann, que assina o posfácio da edição que ganhei de presente de uma madrinha. Trata-se de “A história maravilhosa de Peter Schlemihl”, de autoria de Adelbert von Chamisso (1781 – 1838), editado pela primeira vez na Alemanha em 1813. Desde que veio a público, o texto fascina e intriga devido às alegorias que apresenta e às reflexões que induz o leitor a fazer.
A história, grosso modo, é a seguinte: o jovem Peter Schlemihl, em um evento social, é abordado por um estranho homem que lhe oferece uma sacolinha de onde é possível retirar, eterna e ilimitadamente, moedas de ouro, proporcionando riqueza infinita. Em troca, pede apenas que Peter lhe ceda sua sombra, com o que ele concorda. Ao botar a mão no milagroso saquinho de moedas de ouro, Peter observa com espanto o homem enrolar sua sombra como se fosse um tapete, guardá-la no bolso e ir-se embora, prometendo procurá-lo dentro de um ano. A partir de então, Peter Schlemihl torna-se um homem sem sombra, causando estranheza, horror, medo e asco em todos os demais à sua volta, que passam a evitá-lo, apesar de sua riqueza.

Após um longo ano de desgostos devido à ausência de sua sombra, Schlemihl se encontra outra vez com o misterioso homem, que lhe propõe novo negócio: devolve-lhe a sombra (e, com ela, sua paz de espírito), desde que Peter lhe entregue a alma. O que Peter faz? Ora, leia o livro. E essa não é a questão. A questão é: o que você faria? Ah, o saquinho de ouro infinito? Sim, Peter poderia ficar com ele. Então? O que me diz?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de junho de 2016)

terça-feira, 28 de junho de 2016

Cronista vai esfriar o sagu

Semana passada, perdi de lavada aqui neste espaço dedicado ao exercício da crônica mundana, quando me botei a discorrer sobre preferências gastronômicas. Bem feito para mim, que ouso querer esquecer, na adultice, os conselhos das avós que pautavam e regiam com segurança a meninice, entre eles, o ponderado “gosto não se discute”. Inventei de discutir e tive de retirar meu cavalinho da chuva, ensacar a viola, recolher as fichas, baixar as orelhas, falar fino e sair de fininho. Foi o que fiz. Perdi. Reconheço. Não acerto sempre.  
Só que, dessa vez, perdi feio. Quase ninguém veio em meu socorro e me vi sozinho em um canto da sala, o nariz enfiado dentro de um derradeiro potinho de sagu frio, comendo sem fazer barulho enquanto a totalidade dos leitores e leitoras se uniam à preferência de minha esposa, aquela mesma que eu revelei adorar consumir sagu quente, coisa até então abominável aos meus olhos porque, do alto de minha ignorância e pobreza gustativa, imaginava só ser passível de saborear gelado, uma vez que supunha, anta saída de rio que sou, que sobremesas só são sobremesas porque se as devora frias e/ou geladas. Burro eu, porque assim não é. Não, não é, e descobri isso perdendo de goleada na preferência dos leitores. Senti-me um Brasil frente a uma Alemanha em campo de futebol: perdido, desnorteado, desprovido de argumentos e de jogadas que me fizessem sair da sinuca. Senti-me um Fred atordoado desejando fugir do campo e me esconder no vestiário, assoprando o relógio para ver se os 90 minutos passavam mais rápido.
E aprendi. Aprendi que sobremesa se come quente, sim, senhor, Marcos-Eu, mundano cronista de gostos duvidosos. Sagu frio? Até parece que bebo! Sagu se come quente, diz-me a quase totalidade dos que leram o estapafúrdio texto que escrevi semana passada, provavelmente inspirado por alguma indigestão que só pode ter advindo desse meu hábito extraterrestre de devorar sobremesas (ora essa, pois, pois) frias! Disseram-me até que existe sorvete frito! E que comem, sim, não só quente o sagu, mas também bolos fumegantes, arroz doce morno, pudins fervilhantes, sopa quente de frutas e fico aqui a imaginar aquilo que não me disseram, como Chico balanceado quente, torta de bolacha quente, picolé assado, salada de frutas torrada, compota de abóbora grelhada, brigadeiro borbulhante e assim por diante.

Concordo com tudo. Quem sou eu, afinal, para falar mal do sagu quente? Eu que fique aqui com meu mau gosto a tentar esfriar meu saguzinho. Por mim, tudo bem. Mas prefiro frio.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de junho de 2016)

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Tanque cheio de letrinhas

Lancei livro novo no sábado passado, em Caxias do Sul. Diversas pessoas foram até o local, movimentar o evento de lançamento. Recebi o abraço e o carinho de muitos amigos e conhecidos. E também fui alvo do prestígio de desconhecidos, leitores interessados diretamente no teor da obra (livro de resgate histórico dos primórdios da formação de Caxias do Sul). A maioria das pessoas que dedicaram algumas horas de sua manhã de sábado para ir ao encontro do autor e sua nova obra aproveitou para adquirir o livro e nele receber um autógrafo do escritor. Daí que eu fiquei cá pensando.
O livro estava sendo vendido a preço promocional de lançamento a módicos R$ 30,00. Ainda no início daquela manhã, no trajeto de casa até o local de lançamento (a saber, o Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami, situado na Avenida Júlio de Castilhos, 318, bairro Lourdes), estacionei o carro em um posto de gasolina, para evitar ficar sem combustível no meio do caminho, já que, desde a véspera, o sensor no painel acendia a luzinha, indicando estar o nível já perigosamente na reserva. Parei ao lado da bomba, meti a mão na carteira, conferi os trocos e identifiquei ali exatamente R$ 30,00, o suficiente para garantir meus deslocamentos imediatos. Não quis abastecer mais do que isso porque os procedimentos com pagamento em cartão me consumiriam minutos que eram preciosos. Mais tarde, voltaria lá e completaria o tanque.
Mandei, então, enfiar dentro do tanque de gasolina de meu carro o equivalente, em combustível, ao valor do livro que em breve eu iria lançar: R$ 30,00. Com esse montante, adquiri cerca de 7,5 litros de combustível, o suficiente para ir até o Arquivo, cumprir minhas tarefas de escritor até depois do meio-dia, rumar a um restaurante e almoçar e retornar para casa no meio da tarde. Oba! Uma vez que meu automóvel consegue oferecer um desempenho de consumo equivalente a 12 quilômetros por litro rodando na cidade, poderia antever uma autonomia de 90 quilômetros a serem percorridos com o livro que meti dentro do tanque. Minha rotina diária me obriga a percorrer esse montante em três dias.

Sendo assim, posso dizer que consumo um livro meu a cada três dias rodando pela cidade de carro. Aí que fiquei pensando sobre esses R$ 30,00 que compram 7,5  litros de gasolina ou um livro dos meus. Com a gasolina, abasteço meu automóvel e transito pela cidade. Com o mesmo valor, adquiro um livro (qualquer livro, em média), abasteço minha alma e viajo o mundo, através dos tempos, sem sair do lugar. É: sou mais feliz comprando livros do que gasolina.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de junho de 2016)

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Mantra universal via satélite

Tudo o que você precisa é amor. Escrito direto assim, o dito sugere que está a expressar a visão de mundo do autor da mundana croniqueta que ora se apresenta ao crivo da atilada leitora e do observante leitor. Mas, se devidamente colocada entre aspas (“tudo o que você precisa é amor”), ela recebe a dimensão de citação com autoria definida, e é fundamental que saibamos reconhecer os créditos e os méritos de quem os tem. No caso específico, o crédito da autoria da frase (que, em si, a bem da verdade, não contempla nada de original, mas encerra uma verdade absoluta e poderosa) vai para os Beatles, que a tornaram mantra universal há 49 anos (completados amanhã), a ser lembrado e repetido incessantemente e vindo a calhar em um mundo cada vez mais conflagrado. Falemos um pouco sobre isso.
Foi na noite de 25 de junho de 1967 que a BBC de Londres reuniu 19 países para promover a histórica primeira transmissão ao vivo de televisão via satélite. O programa, intitulado “Our World” (“Nosso Mundo”), teve duas horas e meia de duração e atingiu cerca de meio bilhão de telespectadores ao redor do planeta, pela primeira vez na história conectados em tempo real por meio de uma única transmissão de TV, via satélite (três satélites em órbita da Terra foram conectados e convocados a atuar em conjunto para viabilizar a revolucionária experiência). Cada uma das 19 nações convidadas foi convidada a ocupar determinado espaço de tempo para apresentar alguma produção que evocasse aspectos de seu país. Entre diversas atrações, a Espanha, por exemplo, colocou o pintor Pablo Picasso (1881 – 1973) a pintar uma tela ao vivo, no ar; a cantora lírica nova-iorquina radicada na França, Maria Callas (1923 - 1977), soltou a voz, e assim sucederam-se as atrações. E a Inglaterra, bem, a Inglaterra fez-se representar pelo maior fenômeno de massa que a cultura pop já havia produzido até então ao redor do planeta: os Beatles.

Os acordes iniciais da música (até então inédita), à base de sopros, invadiam a atmosfera enquanto a imagem em preto e branco aos poucos ia explodindo em cor. Entrava então o refrão de abertura, “love, love, love”, e lá estavam juntos, ao vivo, penetrando lares do mundo inteiro, John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, afirmando que “tudo o que você precisa é amor”. A canção foi composta por Lennon e McCartney especialmente para o evento. Ganhou o mundo e os corações das pessoas devido à mensagem simples e profundamente relevante que carrega. Porque tanto há 49 anos quanto hoje, cada vez mais, tudo o que precisamos é amor, sim, pelamordedeus!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de junho de 2016)

quinta-feira, 23 de junho de 2016

O dilema da quentura do sagu

Agora, cá entre nós, prestimosa leitora, honorabilíssimo leitor, convenhamos, francamente: onde já se viu, comer sagu quente? Sagu é coisa que se come fria! Sagu é sobremesa e sobremesas degustam-se frias, ou geladas. Basta aplicar a lógica do paralelismo, que consiste em substituir o termo em análise por outros semelhantes e observar a lógica existente na equação. Substitua sagu por sorvete, por exemplo. Sagu é sobremesa e sorvete também. Come-se sorvete quente? Hein? Pois é!
Insistamos um pouco no exercício proposto. Substitua agora sagu por Chico  balanceado. Ou por pudim. Ou por compota de pêssego. Já comeu alguma dessas sobremesas quente? Pavê de chocolate! Que tal pavê de chocolate quente, hein? Encararia? E salada de frutas? Você chega na lancheria da rodoviária, passa os olhos pelo balcão e depara ali com aquela taça colorida de salada de frutas. O que você faz? Aponta com o dedo e pede para o atendente meter aquilo no forno de micro-ondas antes de servi-lo a você? Aham! Sei. Vai nessa. Salada de frutas: sobremesa. Sobremesa: degusta-se fria. Inclusive sagu. E tenho escrito.
Mas vai dizer isso para a senhora minha esposa. Não tem jeito. Ela gosta de comer sagu é quente mesmo. Não só quente, mas quentíssimo. De preferência, ainda fumegando, ao sair da panela de cima do fogão. Fico só olhando. Senta ao meu lado no sofá com a tigela repleta daquela substância gelatinosa avermelhada, a fumacinha invadindo o ambiente da sala, a colher em uma das mãos e os olhinhos brilhando, me olhando de lado, repletos de prazer enquanto abocanha a primeira de uma sucessão de colheradas de sagu... quente! Fico só olhando. Olhando e pensando: “o que faz uma criatura preferir o sagu quente ao invés de deliciosamente geladinho, como eu”? E concluo que não tem explicação. Cada um com seus gostos. A mim, só me resta esperar algumas horas até que o sagu esfrie, para que chegue minha vez de saboreá-lo.

Isso se sobrar para mim até lá, claro. E isso se o sagu, ao longo do processo de esfriamento, não embolotar, como às vezes acontece. Porque eu quero comê-lo frio. Ou como-o frio ou não o como. E, na maioria das vezes, acabo ficando na vontade, porque foi devorado quente pela sanha saguzeira da esposa ou porque, ao final, embolotou. São coisas assim que fazem a gente ficar refletindo sobre o sentido da vida e os paralelismos que podem existir entre o viver e as condições climáticas das bolinhas de sagu. Deve haver alguma analogia. Haverei de descobrir, já que é o que se espera de um mundano cronista. Se descobrir, aviso. Até lá, o sagu haverá de ter esfriado.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de junho de 2016)

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Faca nas costas à sombra do vulcão

Recebi muitos cumprimentos por ter escrito ontem, aqui neste mundano espaço, a respeito do gesto social conhecido como “aperto de mãos”, por meio do qual demonstramos as intenções amistosas que temos ao nos aproximarmos de alguém. Os cumprimentos chegaram por e-mails, por curtidas nas redes sociais, por manifestações “in box” e por abordagens orais. Ninguém apertou minha mão por causa disso, por sinal, mas tudo bem, deixemos esse detalhe pra lá, não fiquei frustrado; sou mundano mas não sou volúvel.
Porém (sempre o “porém”, némesmo, madama minha?), agregado aos cumprimentos recebidos, chegaram também muitas manifestações em mesmo tom provenientes de madamas leitoras, de senhoras e senhorinhas leitoras, de moçoilas leitoras, de raparigas leitoras, de senhoritas leitoras e leitoras e mais leitoras. Todas elas afirmando reconhecerem a verdade do exposto na crônica (de que o aperto de mãos é um cumprimento ancestral, universal e praticado pela humanidade desde cavernosas eras), mas que elas, mulheres, via de regra, não o desdenham, porém, preferem adotar outras formas de cumprimento social, como o beijinho no rosto, ou os três beijinhos, o meio-abraço, essas coisas.
Ora, pois, aberto que sou à voz das ruas e, especialmente, das leitoras, pus-me a pensar. Mas como penso e logo desisto, resolvi aprofundar as pesquisas sobre o tema e eis que mais descubro sobre as origens do aperto de mão que, como vimos ontem, surgiu entre os povos primitivos para demonstrar a intenção amistosa e desarmada dos homens, pois que homens andavam armados com paus e pedras e tinham de largá-las se quisessem ser bem recebidos pelos outros, apresentando a mão livre. As mulheres, por sua vez, desde os primórdios menos belicosas do que os homens, não portavam armas, dedicando-se a outras atividades familiares, sociais e agregadoras em volta dos vulcões. Por isso, não precisavam oferecer as mãos abertas em sinal de desarme na hora do cumprimento, porque eram, em essência, mais confiáveis do que os homens. Por isso, no geral, cultivam até hoje essa ancestral preferência por outras formas de cumprimento.

Quase tudo tem explicação lá nos primórdios das eras, em torno das fogueiras acesas ao redor dos vulcões primitivos. Ugh sorridente, apertando a mão de Ogh. Agga preferindo trocar beijinhos nas faces de Igga. Ugh apertando a mão de Ogh, mas escondendo uma traiçoeira faca na cintura para apunhalá-lo logo depois, pelas costas, e roubar-lhe a paleta de mastodonte. Essas coisas humanas, que foram nascendo com a civilização, a senhora sabe. Tudo ali, em torno dos vulcões...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de junho de 2016)

terça-feira, 21 de junho de 2016

Mão estendida desde a caverna

Remonta a tempos cavernosamente pré-históricos esse nosso hábito diário (e civilizado) de apertarmos as mãos uns dos outros como forma de cumprimento. “Eis a primeira mão de um homem honesto que aperto neste dia”, brincou alguém comigo, dia desses, em certo lugar, já no avançar da tarde. Ele estava brincando, naturalmente. Não que eu não seja honesto (eu sou, né, pô!). Mas certamente a minha não foi a única mão apertada pela dele ao longo do dia até o instante de nosso encontro. É pouco provável que, até aquele momento, não tenha apertado a mão de ninguém. De qualquer forma, mesmo sem perceber, meu amigo evocava, por meio do chiste, a verdadeira essência da origem desse cumprimento tão presente em nosso cotidiano, gesto ao qual o dia de hoje, por sinal, é dedicado.
Oh, sim, senhora, madama; sim, senhora, hoje é o Dia do Aperto de Mão. Não fique balançando assim a mãozinha em sinal de descrença. A senhora não acredita em mim, madama? Quéisso! Cuidado para não desautorizar a frase de meu amigo, citada ali em cima, hein! Mas é a mais pura verdade. Dia do Aperto de Mão. Hoje, 21 de junho. Falemos, então, sobre isso, pois que cronista mundano que se preze precisa ficar atento a essas peculiaridades da existência, a fim de receber os devidos cumprimentos por seu trabalho, em especial, apertos calorosos de mãos.
Ao nos aproximarmos amistosamente de alguém que conhecemos, ou mesmo de alguém que estamos em vias de conhecer, automaticamente estendemos nossos braços com a mão direita aberta, pronta para receber nela a mão do outro, envolvê-la com os dedos, apertá-la de leve e sacudir durante alguns momentos aquele emaranhado de mãos intimamente unidas. Assim se dá um aperto de mãos, impressionantemente descrito por meio de palavras, coisa que nem mesmo o mundano cronista aqui se imaginava capaz de fazer. E apertamos nossas mãos em forma de cumprimento há milênios, desde as mais antigas tribos de homens pré-históricos, em sinal de amizade e de bons propósitos em relação ao outro. Sim, porque, ao estendermos ao outro a mão aberta, demonstramos estarmos desprovidos de armas (pedras, paus, facas, notas promissórias) com as quais poderíamos ferir e machucar.

Apertar a mão é um sinal de boa vontade, e há uma arte especial nisso. O aperto precisa ser preciso; nem muito forte a ponto de esmagar os dedos, nem muito flácido a ponto de murchar o cumprimento. Existe técnica e ciência até em um prosaico aperto de mãos. O que há milênios não muda é a necessidade que temos de verificar, entre nossos semelhantes, gestos genuínos de boa vontade. Toca aqui, madama.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de junho de 2016)

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Cartão vermelho aos impostores

Neste final de semana, fiz uma coisa que há tempo eu não fazia. Acompanhei pela televisão, do começo ao fim, a uma partida da Seleção Brasileira de Vôlei Masculino em jogo válido pela Liga Mundial, que está rolando no Rio de Janeiro. Brasil e Estados Unidos em quadra. Eu sequer sabia os nomes de nossos atletas. Agora sei os de alguns, devido à alta performance demonstrada por eles. A partida se estendeu até a uma e meia da madrugada de domingo e me segurou ali, ligadão, torcendo e sofrendo. Sofrendo, não, pelo contrário. Torcendo e vibrando, porque havia motivos de sobra para torcer e vibrar, independentemente do resultado final, aliás, favorável ao Brasil, já que vencemos por três sets a um.
Vencemos e convencemos. O Brasil jogou bem. Muito bem. Deu gosto sofrer por cada bola, a cada lance. Mesmo quando o ponto era do adversário, percebia-se que a bola havia sido disputada de igual para igual. Ficou nítido que nossos atletas do vôlei treinam a sério. Treinam. Treinam. Treinam. Ficou nítido também que a Seleção Brasileira de Vôlei Masculino é composta pelos melhores jogadores existentes no país, e não por aqueles impostos por interesses empresariais e de marketing. Ficou nítido que ali, na quadra, quem impera é o amor pelo esporte e não pelo dinheiro, pela fama, pela celebridade gratuita. Ficou nítido que ali ainda existe garra genuína. Coisa que se perdeu em alguns dos esportes mais queridos pelos brasileiros, como o futebol e a Fórmula-1, modalidades que aprecio muito e às quais, há anos, não dedico mais a preciosidade de meu tempo.

Quando entra em campo a Seleção Brasileira de Futebol (masculino) ou é dada a largada a uma corrida de Fórmula-1, peço licença e vou para outro canto ler um livro, que eu ganho mais. Bem mais. Já a seleção Brasileira de Vôlei Masculino, essa agora merece a minha atenção pelo tempo que for necessário. Porque ali não há engodo. Porque ali não tenho a impressão de estar sendo ludibriado por impostores. Não gosto de impostores. Não gosto de impostores no futebol, nem na Fórmula-1, nem na política, nem no mercado de trabalho, nem nas artes, nem no convívio social. Tenho asco a impostores. Descobri, dia desses, que existe uma doença raríssima, conhecida como Síndrome de Capgras, que atinge apenas 0,00001% da população mundial (1,3 mil pessoas) e que consiste no seguinte: a pessoa que sofre dela olha para todos a seu redor e acha que são impostores. Do jeito como anda o Brasil, tenho a impressão de que esse índice tende a aumentar. Quem nos redime ainda é a Seleção Brasileira Masculina de Vôlei.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de junho de 2016)

sexta-feira, 17 de junho de 2016

O verdadeiro Dia dos Namorados

A bem da verdade, o Dia dos Namorados deveria ser celebrado em 17 de junho, cinco dias depois da data atualmente consagrada a fazermos agrados a quem amamos, nossa cara-metade, a pessoa que detém a posse de nossos corações - que a ela entregamos de forma espontânea - e a quem direcionamos o melhor de nossas essências. A data deveria ser hoje, 17 de junho, em função da carga simbólica que dela deriva e que vai ficando mais clara à medida em que agregamos conhecimento histórico.
Por que 17 de junho? Ora, porque foi nessa data que morreu, 385 anos atrás, em Agra, na Índia, uma bela, caridosa, inteligente e encantadora princesa, chamada Mumtaz Mahal. Essa personagem, devido aos fatos que a envolvem e com o passar do tempo, acabou se transformando em um símbolo da dedicação amorosa de que alguém pode ser alvo. E ela foi alvo de uma das mais belas e imponentes declarações póstumas (e eternas) de amor já feitas por alguém: seu marido, Shah Jahan (1592 – 1666), o quinto governador do Império Mogol. Mumtaz Mahal é um codinome que, em persa, significa “a joia do palácio”. Seu nome real era Arjumand Bano Begum (1593 - 1631) e se casou com o imperador em 1612, aos 19 anos, sendo sua segunda esposa. Diz a História que casaram por amor verdadeiro e não por contrato ou obrigação.
Parceira do imperador em todas as suas ações e revelando-se uma perspicaz conselheira, ela induzia-o a ser bom e indulgente com os povos sob seu domínio, sendo muito amada pelos súditos. Deu ao rei 13 filhos e, por ocasião de seu 14º parto, acabou morrendo (aos 38 anos), o que deixou o rei arrasado. Foi então que ele decidiu construir, sobre o túmulo da amada, o mais belo palácio de que se tem notícia na História do Mundo. A obra foi erguida ao longo de 20 anos, tendo sido concluída em 1653, toda em mármore branco, imponente, cercada de belas árvores, a cúpula ornamentada com fios de ouro e com um espelho d´água em sua entrada.

O monumento está em pé e intacto até hoje e é classificado como Patrimônio da Humanidade pela Unesco. É conhecido como Taj Mahal e reconhecido como a maior prova de amor do mundo. Por isso, defendo a data da morte da princesa, 17 de junho, como uma data genuína para celebrarmos nossos amores, já que foi a morte dela que inspirou o soberano a materializar sua obra. Nós, que não somos reis mas que também sabemos amar, podemos ofertar aos nossos amores Taj Mahals simbólicos diários, dentro da convivência que com eles estabelecemos. Às vezes, um singelo “bom dia” embalado em um sorriso tem o mesmo poder de encantamento que um imponente palácio de mármore.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de junho de 2016)

quinta-feira, 16 de junho de 2016

A chave está na autoestima

Autoestima é tudo na vida. Claro, autoestimada leitora, que a frase, assim posta, não passa de um artifício para conferir intensidade ao argumento. Autoestima não é tudotudotudo na vida, sabemos disso, mas é parte importante dela. Seria raso e prepotente querer sustentar que re-al-men-te (liçãozinha básica de separação silábica de graça em meio à mundana crônica, para gáudio do leitor que gosta de ler textos dos quais possa extrair algum proveito e não tem tempo a perder com futilidades literais), que realmente (retomo a linha de raciocínio interrompida pela intercalação do parênteses) autoestima seria na vida tudo. Já escutei arquiteto afirmar que “tudo na vida é arquitetura”; jornalista dizer que “tudo na vida é informação”; cronista mundano escrever que “tudo na vida é mundanismo crônico” e até filósofo ponderar que “tudo na vida é nada e o nada é tudo”, mas, nesse caso, fiquei boiando e saí de fininho, para não passar recibo de anta. Sou anta, mas não passo recibo.
Não passo recibo porque, sim, tudo é mesmo uma questão de autoestima, e agora reafirmo o axioma um pouco mais assertivo e convicto. Gostamos de poder ir dormir à noite, deitar a cabeça no travesseiro e deixarmos se aproximar o sono, de mansinho, imersos em um sorriso de satisfação por julgarmo-nos seres interessantes, bacaninhas, especiais, únicos, agradáveis e passíveis de receber todo esse amor que por nós mesmos cultivamos. É bom sermos possuídos por doses sadias de autoestima, pois que ela age como um bálsamo para os males do espírito e como combustível para recompor as forças de que necessitamos para enfrentar as batalhas que se nos apresentam em diversos campos ao longo dos dias.
As redes sociais parecem cumprir um papel importante na geração de instrumentos capazes de amplificar nossa autoestima, quando nos oferece brincadeirinhas nas quais devemos ingressar em um determinado site, responder a algumas perguntas e pimba: é revelado aquilo que somos, ou com o que parecemos. Entre os animais, você pode ser um brioso cavalo ou um misterioso felino; entre os objetos, um charmoso livro a ser decifrado ou uma saborosa taça de vinho; entre as flores, uma delicada rosa ou um perfumado jasmim. Há delícia maior do que ir dormir imaginando-se um perfumado jasmim? Tudo de bom para a autoestima.

Já eu, nunca respondo a esses questionários. Fico temeroso quanto ao resultado. Não quero ir dormir sabendo que não passo de um gafanhoto faminto, uma pantufa rasgada ou uma samambaia seca. Minha autoestima não suportaria. Já basta ser cronista mundano.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de junho de 2016)

quarta-feira, 15 de junho de 2016

A lógica foi para o beleléu

Foi relativamente cedo na trajetória de minha evolução pessoal que decidi priorizar a lógica e a razão como ferramentas primordiais a guiarem e conduzirem os meus destinos. O processo se deu gradualmente e aos poucos se apoderou da forma como eu venho tentando nortear as decisões que tomo, pesando os prós e os contras de cada situação. Mas isso sem radicalismos, deixando sempre uma margem estratégica para dar ouvidos, de quando em vez, às vozes da intuição, da emoção, do sentimento, das percepções que nascem no coração. Porque nem só de razão vive o homem e nem só de lógica ele é constituído. Isso se aprende, às vezes, a duras penas.
Aprende-se a duras penas e, de tempos em tempos, é necessário passar por um choque de consciência a fim de reavivar essa compreensão, quando ela se vê sufocada por sucessões ininterruptas de lógica. Nem sempre a lógica tem a resposta. Vamos ao exemplo. Nesses ininterruptos dias de frio islândico a que estivemos submetidos, expressei em uma sequência de crônicas geladas o meu desconforto com as baixas temperaturas, elencando minhas razões. Foram dias que amanheceram com os campos, os gramados e os telhados das casas cobertos por aquela fina camada de gelo conhecida como geada. Aplicando-se os passos do raciocínio lógico, podemos, então, depreender que: se o mundano cronista detesta frio e se a geada é uma das expressões do frio, então, o mundano cronista detesta geada, certo? Sim, lógico e correto.
Mas há um porém e, se não houvesse porém, não haveria crônica (isso, sim, é absolutamente lógico). O porém é o seguinte: o mundano cronista aqui descobriu, lendo a coluna Caixa-Forte, publicada diariamente neste mesmo jornal, que uma sequência de geadas faz muito bem (mas muitíssimo bem) para os parreirais da Serra que, depois, irão produzir excelentes vinhos. Ora, amiga leitora, o mundano cronista aqui é um dedicado apreciador de vinhos, especialmente quando excelentes. Aplicando-se, então, a mesma fórmula da lógica, devemos depreender que: se o mundano cronista gosta de vinhos e se os parreirais dependem de geada para produzir bons vinhos, então, o mundano cronista precisa também gostar de geada. E geada, como vimos anteriormente, é uma das expressões do frio, que o mundano cronista afirma detestar.

E agora, José (Deon), como é que fica? É nessas horas que a lógica precisa pegar passagem para o beleléu. Vá ao beleléu, lógica, e abra caminho para o coração. Viva a geada, que trará os bons frutos da videira. Que haja geada sem frio e que a lógica vá para o beleléu e de lá não volte tão cedo!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de junho de 2016)

terça-feira, 14 de junho de 2016

Uma lista de desconvidados

Alguns leitores ficaram um pouco alvoroçados com a história que declinei en passant ontem aqui neste espaço, abordando algumas peculiares características de Uvanova, aquela simpática, acolhedora e pequena cidade de colonização italiana encravada ao pé da Serra Gaúcha, banhada pelas barrentas águas do Rio das Antas, vizinha de Tapariu, de Vila Faconda, de Nova Brócola e de Cotiporã. Falava eu de como a morte dos cidadãos uvanovenses é acolhida pela comunidade como evento social e de como isso representa a manutenção de um valor humano esquecido pelas gentes das grandes cidades, expresso pela capacidade de compreender e vivenciar a dor da perda sentida pelos próximos. Os uvanovenses exercitam a empatia.
Mas, às vezes, exageram um pouco, afinal, também são humanos, e é aí que surgem as histórias, como a daquela senhora que mantém, em um caderninho, listas atualizadas de pessoas a serem convidadas a velórios vindouros de alguns de seus parentes que, devido ao avanço da idade e/ou ao assomo de doenças terminais, em breve estarão dados aos braços do destino comum a todos os seres viventes e não escaparão de protagonizarem esses eventos de despedida tristes, porém, necessários. Vamos chamá-la de dona Ernestina, a fim de lhe resguardar o anonimato, apesar de que, em Uvanova, não há quem não a conheça (aliás, não há uvanovense que não seja conhecido por todos os demais uvanovenses, outra característica marcante da cidade).
Dia desses, morreu o segundo-primo de um concunhado da dona Ernestina. Ela não conhecia o falecido, porém, condoeu-se com a perda e imediatamente fretou um micro-ônibus para levar seus vizinhos até o enterro, que seria realizado em cidade distante, onde o dito adefuntado residia, quando em vida. Problema é que nenhum dos vizinhos atendeu à convocação. Um tinha de tratar os bois, outro precisava podar as parreiras, outro prometera cravar uns palanques e fazer uma cerca. Ninguém, enfim, foi, e dona Ernestina ficou uma arara. Ficou tão brava e sentida que, na volta do enterro, apareceu de casa em casa, de vizinho em vizinho, desconvidando por antecipação todos eles ao futuro velório de sua amada mãezinha que já estava com 99 anos e muito fraquinha, coitadinha, desse inverno não passaria.

Passada a raiva, revisitou-os um a um e recolocou-os na lista, afinal, não poderia correr o risco de ver esvaziar o futuro velório da mãe. Que segue, aliás, vivíssima e esbanjando saúde, segundo os últimos informes recebidos de Uvanova. São assim as coisas por lá. Pena que eu sempre tenha de voltar...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de junho de 2016)

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Viver e morrer em Uvanova

Uvanova, como já disse aqui algumas vezes - mas sempre repito porque não é possível mensurar o alcance da fama já atingida pelas crônicas referentes ao povoado -, é uma pequena cidade de colonização italiana encravada na Serra Gaúcha às margens do Rio das Antas, fazendo divisa, ao sul, com Vila Faconda; ao norte, com Tapariu; ao oeste com Cotiporã e a leste com Nova Brócola. Visitar a cidade resulta em uma experiência semelhante a pagar passagem de primeira em uma cápsula do tempo e ser transportado para uma época e uma região em que antigos valores humanos ainda são cultivados e regem as relações das pessoas no cotidiano. É assim que me sinto sempre que respiro os ares de Uvanova, de quando em vez.
Em minhas observações uvanovenses, tenho detectado, por exemplo, que o ato de morrer em Uvanova reveste-se na condição de acontecimento social da mais alta importância. Morrer é algo que, ali, não passa batido jamais e não se morre anonimamente, de jeito nenhum. Ao longo de sua vida, o cidadão uvanovense até pode correr o risco de, por alguma razão ou outra, ser ignorado por parte de seus concidadãos, ou por não professar a mesma fé que a maioria, ou por não gostar de dançar nos bailes, ou por não saber falar o dialeto local. Mas, no dia em que ele se botar a morrer, jamais será ignorado pelos demais em sua condição de defunto. Assim são as coisas em Uvanova.
Isso assim se dá por uma simples razão: porque todos se conhecem em Uvanova. Ou, ao menos, conhecem alguém que conheça intimamente o falecido em questão, sofrendo também com a sua perda, já que os uvanovenses cultivam o dom (esquecido pelos povos das cidades grandes) de serem solidários com a dor alheia. Todos os que morrem em Uvanova são parentes de alguém, ou vizinhos, ou amigos. Isso ou, no mínimo, são parentes de vizinhos, ou amigos de parentes ou vizinhos de amigos. Não tem como não haver relação com o morto e sempre haverá uma forma de estabelecer com ele alguma espécie de elo. Em Uvanova, não se morre só. Pode-se viver só, mas, ao menos, ao morrer, o caixão não jazerá solitário ao longo do velório.

Alguns mantêm atualizadas as listas de convidados para velórios vindouros (os seus próprios ou os de entes queridos). E ai de quem ousar ausentar-se em estando vivo e sem oferecer justificativa plausível. Essa é apenas uma das várias facetas pelas quais costuma se manifestar a solidariedade humana que ainda respira nos corações dos uvanovenses. Há outras, que vou descortinando por meio da observação. Pena que eu sempre tenha de fazer a viagem de volta...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de junho de 2016)

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Bem pior do que nos filmes

Eu tenho medo do mal. Começo a crônica já antecipando a conclusão a que chegarei lá embaixo, a fim de poupar tempo e fôlego ao atarefado leitor e à apressada leitora, uma vez que poucos têm paciência e disposição para ficar desvendando entrelinhas. Lá vai, então, desde já, a entrelinha desfraldada e a solução da interpretação do texto: o mundano cronista, além de friorento, tem medo do mal. E não estou sozinho nisso, ao menos. Menos mal (antecipo já também o trocadilho final, pelos mesmos motivos).
Agora, vamos ao recheio, para quem tiver ânimo de seguir lendo, acompanhado por um cafezinho quente. Cheguei à conclusão de que tenho medo do mal depois de muito refletir sobre o inexplicável pavor que se apossa de mim sempre que assisto a filmes cujo mote seja a possessão demoníaca. Basta entrarem em cena todos os ingredientes desse tipo de clichê cinematográfico que eu gelo de terror: uma moça bonita transfigurada, voz grossa, os olhos esbugalhados e injetados de sangue, a vomitar gosmas verdes, descabelada, agressiva, cuspindo palavrões e insultos. Se de repente ela voar de costas contra a parede e sair engatinhando pelo teto, então, eu me enfio debaixo do sofá. Não gosto. Tenho medo.
Aliás, sequer assisto a essa espécie de filme. Porque, mesmo sendo racional como sou, desacreditador de possessões demoníacas na vida real, sabedor de que tudo aquilo não passa de truques e efeitos especiais, eu simplesmente me ralo de medo. Dia desses, o colunista de Zero Hora, David Coimbra, escreveu crônica revelando sofrer do mesmíssimo pavor e da mesmíssima incompreensão, uma vez que ele também se arvora um ser racional e também se pela de medo diante de filmes de possessão demoníaca. Entro no assunto porque viralizou na internet essa semana uma pegadinha que o SBT de Sílvio Santos fez com algumas pessoas, a fim de divulgar a exibição do filme “Invocação do Mal 2”. Na pegadinha, candidatas respondem a um anúncio de jornal solicitando cuidadora para uma pessoa doente e, por meio de efeitos especiais, simulam uma possessão demoníaca, quase as matando de susto. Fosse eu, morria mesmo.

Não achei graça nas pegadinhas. Não assistirei ao filme. E, caro Coimbra, acho que a explicação para nosso pavor é essa mesmo: temos medo do mal, do verdadeiro mal, que, nesses filmes, se apresenta de forma exagerada e inverossímil, mas serve para extrair, do fundo de nossas racionalidades, a consciência de que ele habita, sim, a essência humana e, na vida real, se manifesta de formas bem mais assustadoras do que uma donzela possuída cuspindo sangue. Deve ser isso.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de junho de 2016)

quinta-feira, 9 de junho de 2016

O inventor do fogão a lenha

Ontem ou antes de ontem, não chego a lembrar direito, andei escrevendo aqui sobre o fogão a lenha, esse tão útil utensílio doméstico (utensílio, móvel ou aparelho?) cuja importância dentro de nossas casas se eleva à medida em que despenca o nível da temperatura nos termômetros, dentro e fora dos lares. Ontem, né, madama, que falávamos sobre isso, e abordávamos o fato surpreendente de tanto eu quanto a senhora desconhecermos a identidade do inventor do dito aparelho (utensílio?). Ah, antes de ontem. Correto, então. Pois é.
O que acontece é que o assunto parece ter esquentado (ao menos um pouco) as rodas de pinhão entre alguns leitores a ponto de eu ter recebido singelas fotografias dos fogões a lenha que habitam e aquecem as residências de alguns deles (felizardos e sortudos), sobre cujas chapas chiam chaleiras de água fervente para o chimarrão, sapecam-se pinhões e polentas são brustoladas. Agradeço a todos e prometo visitas para conhecer cada um deles (os fogões a lenha) em sistema de rodízio de noites transbordantes de frio polar, em escala a ser oportunamente divulgada entre os diretamente interessados (eu mesmo sou o principal diretamente interessado).
Por outro lado, vários leitores e leitoras manifestaram o mesmo desejo meu e da madama em desvendar a identidade de tão importante inventor que legou a essa parcela gelada da humanidade (nós, os habitantes do Rio Grande do Sul no outono/inverno) tão vital, importante e quentinho invento: o fogão a lenha. Quem terá sido? Existe essa autoria específica ou o fogão a lenha, assim como tantos outros inventos cruciais da História da humanidade, é fruto de um processo coletivo e anônimo de criação que resultou no formato hoje amplamente aceito e difundido na sociedade? É um mistério difícil de resolver, a que este cronista mundano, ao longo do tempo em que perdurar (por imposição do clima) essa série das Crônicas Que Vieram do Frio, se dispõe a tentar desvendar. Haveremos, madama, de chegar a alguma conclusão a respeito.

Caso contrário, poderemos nos dedicar a tentar desvendar os autores de outras invenções importantes para o avanço do processo civilizatório humano, entre objetos e atos, como a cadeira, os talheres, o banquinho, o guarda-chuva, o palito-de-dente, a gemada com vinho, a ceroula, a cortesia no trato interpessoal, o travesseiro, o saca-rolhas, o ralador de cenouras, a lixa de unha (“coloca aí a base e o esmalte de unha”, pede a esposa), a base, o esmalte de unha, o abraço, o sorvete de queijo, a paleta mexicana... Pronto! Gelou de novo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de junho de 2016)

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Sim, ele veio para ficar...

Eu até que tentei, e juro que tentei, escrever hoje sobre outro tema, variar o assunto, o enfoque, a abordagem, mas não teve jeito, não consegui. Fazer o que se, aqui pela Serra, “só se fala em outra coisa”, como diz a tia de um amigo meu? Não tem como escapar: o assunto da hora é o frio e ponto. Ninguém escapa do frio em si e, por tabela, não há como escapar de comentar sobre ele com todos, o tempo todo. Até porque, do jeito como ele está irado (o frio), se faz notar o tempo todo, em cada centímetro de nosso corpo, por mais agasalhados que estejamos. Sendo assim, nevada leitora, ártico leitor, falemos de frio.
Meus dedos gelados arremessam contra as teclas do notebook onde diariamente procuro enfileirar estas mal digitadas linhas e, a cada toque, um ai! Um “ai!” de frio, resultante do contato, mesmo que efêmero, da ponta do dedo (repleta de terminais nervosos) com a frieza morta da tecla, na qual a baixa temperatura repousa, pronta para cravejar-me de microscópicas estalagmites pontiagudas que penetram meu corpo pela extremidade afinada da mão e vão se instalando por completo. É frio. Mais e mais frio. Ele vem, ele sobe, ele me vai possuindo e dominando e só penso nele, em como desejaria que sumisse de vez. Sim, tem sol hoje lá fora, o dia está até bonito, claro, iluminado. Só que frio. Barbaridade, tchê, que frio!
Externo minha reclamação e alguém me aconselha a enfileirar pensamentos calorosos, a fim de combater a sensação térmica psiquicamente e, assim, fazer com que ondas de calor invadam meu ser e me tragam de volta o equilíbrio. Tento, então. Começo pensando em um fogão a lenha. Aceso. Agora, eu enfiando a mão dentro do fogão aceso. O braço. Os dois braços. Começo a tentar entrar todo e... Bom, aí a coisa fica bizarra. Apaga tudo. Penso no sol. Adianta pouco, pois, como já disse, há sol e, mesmo assim, faz um frio de renguear cusco. Penso então em uma sopa quente. De capeletti. Seguida por outro prato de sopa de agnoline. Começa a esquentar. Uma dose de graspa, para acompanhar. Está funcionando. Pensarei em mais coisas quentes. O Inferno de Dante. Um camelo comendo cebolitos no deserto do Saara (não, isso dá é sede). Um prato de feijoada regado a pimenta malagueta. Luvas. Toucas. Cachecóis. Estufas. Gatos enrodilhados nas pernas. Sauna a vapor. Sauna seca. Sorvete de creme. Paletas mexicanas... Opa! Paletas mexicanas? Droga, esfriou de novo, não dá para descuidar.

Recebo um telefonema. Entre outros assuntos, vem no embalo o informe de que a temperatura ficará abaixo de zero na sexta-feira. Deponho as armas. Amanhã, falarei de outra coisa.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de junho de 2016)

terça-feira, 7 de junho de 2016

Papo quente à beira da chapa

A amiga leitora, se me permite uma perguntinha aqui no intervalo do sapeco desse punhado de pinhão sobre a chapa quente... A amiga leitora sabe me dizer, assim, de pronto, quem foi o inventor do fogão a lenha? Hein? Não sabe? Tudo bem, não se ourice, a pergunta era apenas retórica, não precisa já ir se queimando. Economizemos calor para outras coisas, que hoje o frio está de lascar. Seus conhecimentos gerais não estão em teste aqui e nem poderiam, pois que a uma modesta crônica mundana não se permite tamanha pretensão, como a de querer testar os saberes e des-saberes de seus leitores. Pinhãozinho?
Mas, assim, então, amiga leitora, falando em coisas elevadas... A senhora sabe quem inventou o foguete que levou o homem a pisar na Lua? Um cientista, né? Isso, a senhora está esquentando... A resposta, madama, a sua resposta está ficando quente. O quê? Está esquentando mesmo? Mas sai de tão perto do fogão, mulher; puxa a cadeira de palha e vai mais pra lá! Isso! Então, sabe? Sim, era norte-americano o tal cientista, verdade. Naturalizou-se, porque, antes, era alemão. A senhora está afiada nessas coisas lunáticas, parabéns! Como é? Lembrou até o nome dele? Como era, então, madama, compartilha com a gente. Werner Von Braun! Isso mesmo! A senhora sabia que sabia! Foi só questão de ir aquecendo as ideias!
Pois, falando em aquecer... Pinhãozinho, madama? Falando em aquecer, a senhora lembrou - agora que está com a mente atilada - quem foi o inventor do fogão a lenha? Ainda não... Que coisa... O quê? Se eu sei? Não, eu não sei não, madama, que é isso? Não passo de um cronistinha mundano. Perguntei por imaginar que a senhora soubesse. Afinal, se até o nome do inventor do foguete a senhora sabe, poderia ser que, também, né... Pinhãozinho?

É que eu fico aqui pensando que a gente é esse bicho estranho, mesmo, né, madama. Sabemos tanta coisa que não nos diz respeito e ignoramos parte daquilo que faz a diferença em nosso dia-a-dia. Ou a senhora pretende um dia viajar até a Lua? Não, né, até porque, lá é frio que chega a doer e nunca soube de astronauta voltar dizendo ter avistado fogão a lenha por aquelas desolanças lunares. Um grupo de marcianos dentro de uma cratera comendo pinhão na chapa de um fogão a lenha na Lua, que acha, madama? A gente ia voando até lá se juntar a eles, não ia? Ao menos, o nome do inventor do foguete a gente saberia dizer para se escalar na viagem. Já o nome do criador do fogão a lenha... Vai que fosse necessário saber para ser admitido na cratera dos marcianos? Acho bom estudarmos melhor esse caso. Pinhãozinho?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de junho de 2016)

segunda-feira, 6 de junho de 2016

A voz de Ali no ringue da vida

Encontrei o mestre do boxe internacional Muhammad Ali uma vez na vida, apenas. Foi em maio do ano passado, em Londres, e nosso encontro não teve nada de planejado, foi fruto do acaso e da surpresa. Fiquei eu mais surpreso do que ele, naturalmente, pois que não estou habituado a deparar com um Muhammad Ali a cada vez que vou a Londres (apesar de que a estatística está a meu favor, uma vez que encontrei Muhammad Ali em 100% das vezes em que visitei a capital inglesa: uma só!) e ele estava acostumadíssimo a deparar com Zés-Ninguéns que ficavam estupefatos em sua presença. Zé-Ninguém de carteirinha que sou, pus-me plenamente estupefato diante dele.
Nosso encontro foi breve e pautado pelo silêncio. Ele não disse nada, tampouco eu lhe dirigi a palavra. Apenas, pelo canto da boca, sussurrei à minha esposa, que portava a câmera fotográfica, e pedi que registrasse aquele encontro, o que ela logo fez. Antes disso, olhamo-nos (Ali e eu) nos olhos. Fiquei, sim, face a face com o rei do boxe internacional, três vezes campeão dos pesos-pesados, um matador, um ícone de seu tempo. Como que movido por algum instinto indecifrável, logo me pus em guarda, em posição de ataque, meus dois punhos fechados apontando para ele que, com suas luvas, parecia preparado para levantar a guarda e desferir um murro definidor no queixo de qualquer oponente que a ele se apresentasse, inclusive eu, Marcos-Ninguém.
Ficamos assim por alguns segundos até que a esposa batesse a foto para registrar o encontro para a posteridade e segui adiante pelas galerias do Museu da Madame Tussaud, pronto para outros surpreendentes encontros com bonecos de cera a personificar os ídolos de todos os tempos. Quis bater a foto porque Muhammad Ali personificou para mim, desde sempre, a abnegação de um homem em constante luta. Ele lutou não só contra seus adversários de ringue, mas protagonizou uma vida inteira de lutas ao longo de seus 74 anos encerrados na última sexta-feira: contra o racismo, contra a discriminação, a favor da igualdade social e dos direitos civis, contra a guerra, contra o Mal de Parkinson. Seu boneco de cera no museu londrino conseguia perpassar a intensidade de sua alma lutadora, de alguma forma, e fui tocado por ela.

Não imaginava ficar sabendo de sua morte pouco mais de um ano após aquele encontro bizarro. Mas o legado que Muhammad Ali deixa é a necessidade de sempre sabermos extrair de dentro de nós mesmos as forças para combater nossas lutas pessoais e cotidianas. A minha, agora, é contra a gripe. Haverei de nocauteá-la como todo o bom Zé-ninguém sabe fazê-lo. Vamos ao próximo assalto.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de junho de 2016)

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Fórmula para não desnortear

Foi meu pai quem me ensinou a situar os pontos cardeais. Certo dia, ainda manhã cedo, como eu andasse a encher-lhe os tubos fazendo perguntas (dizem as lendas familiares que eu meio que já nasci fazendo perguntas e, crendo nelas, mais tarde decidi transformar o traço de caráter em instrumento crucial de profissão ao mergulhar na carreira jornalística, por meio da qual consigo ganhar a vida fazendo perguntas), levou-me para fora de casa, na varanda, e me posicionou voltado para o tronco de uma enorme timbaúva que dominava todo o pátio. “Estende os braços”, ordenou. Estendi e, na posição de espantalho preparado para afugentar uma dúvida, botei-me a aprender.
Aquela posição fazia com que meu braço esquerdo apontasse diretamente para o sol que vinha há poucas horas fazendo mais uma de suas modorrentas caminhadas pelo céu, mastigando calmamente mais um dia da história do mundo. “Teu braço esquerdo aponta para o sol nascente. Sempre que posicionares teu braço esquerdo para o sol nascente, lá será o leste”, disse meu pai. Eu ouvi e gravei. “Teu braço direito, portanto, aponta para o lugar onde vai descer o sol no fim do dia. Lá é o oeste”, continuou ele. Escutei e gravei. “O sol nasce no leste e morre no oeste”, sublinhou, definindo o final da primeira etapa da lição.
“Fácil”, pensei. “Tudo morre no oeste, especialmente índios e mocinhos, nos filmes e gibis de Velho Oeste”. Pronto. Fiz relação com meu mundo e gravei a lição. “Agora”, continuou, “posicionado assim, você está olhando para o sul. Leste à esquerda, oeste à direita, sul à frente. Sempre. De noite voltaremos aqui e você vai ver no céu, nessa posição, a constelação conhecida como Cruzeiro do Sul. Quando for noite com céu claro e você quiser saber os pontos cardeais, basta ficar de frente para a Cruzeiro do Sul e saberá as localizações”. Escutei e gravei. “E, por último, nas suas costas, o norte”. Escutei, gravei e baixei os braços. Estava aprendida a lição.

Sempre que desejo localizar os pontos cardeais, me transporto para o pátio da casa da infância, abro os braços mentalmente defronte à timbaúva, o esquerdo apontando para o nascente, e pimba: me transformo em bússola humana a detectar norte, sul, leste e oeste. Nunca falha. Pelo menos nesse aspecto cardeal posso dizer que fui bem orientado na vida, o que me ajuda a não me perder nem em Uvanova, nem em Stratford-Upon-Avon. Tá, mas e quando está nublado e não se enxerga nem sol de dia e nem constelação à noite? Ah, também aprendi a ser prevenido e desconfiar de minha pressuposta autossuficiência. Carrego sempre uma bússola no bolso.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de junho de 2016)

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Um copo de boa literatura

“Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse ‘para onde estamos indo?’ – não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: ‘estamos indo sempre para casa’”.
O trecho foi extraído das páginas iniciais de um livro chamado “Lavoura Arcaica”, de autoria do escritor paulista Raduan Nassar. A passagem não foi escolhida ao acaso. É uma das muitas sublinhadas por mim em meu exemplar. Não fosse essa, poderia ser qualquer outra, que o propósito de abrir esta crônica oferecendo ao leitor uma degustação da qualidade literária do autor seria contemplado. Poderia mesmo abrir o livro ao acaso e, em qualquer das outras páginas, deparar com passagens do mesmo quilate. Poderia, ainda, fazer o mesmo com qualquer dos outros livros de sua autoria: “Menina a Caminho” e “Um Copo de Cólera”, já que uma literatura de alto nível transborda em suas linhas. Essa pequena tríade de reluzentes pérolas literárias compõe toda a obra de Raduan Nassar, que não publica mais desde 1997.
Mesmo tendo publicado tão pouco, esse recluso paulista de 80 anos se configura em um dos melhores escritores brasileiros vivos, uma vez que sua obra marcou o cenário literário nacional desde o momento em que foram lançados, na década de 1970, seus dois primeiros títulos, as novelas “Um Copo de Cólera” e “Lavoura Arcaica”. Os contos de “Menina a Caminho” vieram à luz em 1997, quando tive o prazer de conhecer sua vigorosa obra. E, desde então, o autor se recolheu, deixando para nós, leitores, a tarefa (em nada ingrata) de revisitar indefinidamente as poucas páginas de sua autoria.

Esta semana, o nome de Raduan Nassar voltou à cena: na segunda-feira, foi anunciado como o vencedor do Prêmio Camões de Literatura deste ano, um dos maiores reconhecimentos para autores de língua portuguesa, sendo concedido pelos governos de Brasil e Portugal. A organização desta 28ª edição do Prêmio Camões (que já laureou 12 autores brasileiros, contando Nassar) anunciou o vencedor equiparando seu talento a nomes consagrados da literatura brasileira como Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Reconhecimento mais do que merecido. Vai que agora ele se anime e escreva mais um pouquinho para a gente...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de junho de 2016)

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Paciência pesca o melhor peixe

Cheguei à conclusão de que a parte do corpo humano que mais mata é a boca. Morre-se de tudo, é verdade, mas muito se morre pela boca. Morre-se, por exemplo, por comer demais e também por comer de forma errada. Morre-se ainda pela falta de haver o que a boca comer, que é a mais triste das mortes possíveis neste mundo de injustiças. Morre-se por não se higienizar corretamente a boca, propiciando o surgimento de doenças. Morre-se pela boca também metaforicamente, como quando “caímos de boca” sobre alguma prática ou hábito que se revela pernicioso e fatal a nós mesmos, no final. E morre-se figurativamente pela boca quando falamos demais. Óbvio que, em se tratando isto aqui de crônica literária mundana, é sobre esse último tipo de morte figurada pela boca que vou me debruçar nas próximas linhas.
Morrer pela boca é falar (ou escrever) o que não deve, de forma impensada, antecipando-se aos fatos e às luzes que melhor poderiam clarear um assunto caso nos resguardássemos a refletir mais sobre ele antes de abrirmos a bocarra e sairmos dando pitaco a torto e a direito sobre qualquer tema, conduzidos pela ânsia de nos fazermos notar. A morte figurativa pela boca decorre, na maioria dos casos, da necessidade de exposição que possui o ego humano (e seu narcisismo inerente), quando não devidamente controlado. Nesses casos, somos iguais aos peixes que não pensam duas vezes em meter a boca na saborosa minhoca que não passa de isca a esconder o anzol fatal que lhes arrancará das águas nas quais até então navegavam e os transformará em banquete na mesa dos pescadores. E bom pescador, bem o sabemos, precisa ser paciente. Peixe de boca grande vira banquete na mesa de pescador paciente. Bonita a metáfora.

Paul McCartney, o ex-Beatle, deu nos dedos (ou na boca?) do extinto grupo Oasis, esta semana. Lá pelos idos de 1996, no auge do sucesso, Noel Gallagher, vocalista do Oasis, cometeu a imprudência de afirmar que sua banda era maior do que os Beatles. Vinte anos depois, McCartney sussurra palavras de sabedoria, deixando estar: “O Oasis era jovem, fresco, eles estavam escrevendo boas canções, mas acho que o grande erro que eles cometeram foi quando disseram 'nós seremos maiores que os Beatles’. Pensei: 'tantos já disseram isso, e esse é o beijo da morte'. Seja maior que os Beatles, mas não diga. Quando você diz isso, tudo o que fizer a partir de então será visto à luz dessa declaração”. Em resumo: ser mais e dizer menos. Fazer mais e falar menos. Pensar mais e falar menos. Uma boca silenciosa e paciente pode render o melhor dos peixes no jantar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de junho de 2016)